COLETORES DE OSTRAS,
EM CANANÉIA,
LUTAM CONTRA A EXCLUSÃO SOCIAL
Panorama Ambiental
São Paulo (SP) - Brasil
Dezembro de 2001
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No extremo sul do litoral
paulista, onde os caminhos acabam sempre no mar ou na
beira dos rios, o progresso se resume aos postes de luz,
que não chegam nem mesmo aos sítios um pouco
mais distantes. Mesmo o telefone, nestes tempos de Internet,
é raro, condenando os moradores da região
a um isolamento, que passa a ser sinônimo de exclusão.
Confinadas entre o Atlântico e as encostas da serra,
as comunidades caiçaras sempre sobreviveram de
uma agricultura rudimentar, que se resumia a uma roça
de milho, mandioca, feijão ou arroz, cujos excedentes
eram comercializados no próprio mercado local.
Os produtos da pesca artesanal ou da extração
de ostras, caranguejos e outros organismos que abundam
nos ricos manguezais da região, aviltados, acabavam
nas mãos dos atravessadores.
Francisco Coutinho:
A luta contra a exclusão. "Vendíamos
a dúzia de ostras a menos de R$ 1,00", lembra
Chico, Francisco de Sales Coutinho. O produto, depois
de passar pelos atravessadores, chegava ao consumidor
por no mínimo R$ 10,00 e nos restaurantes custava
mais de R$ 15,00.
Chico é testemunha e protagonista de uma história
que, há quase dois séculos, mantém
a sua família vítima da dependência
econômica e exploração. Tudo começou
quando um grande senhor de terras teve um filho com uma
escrava, o menino Francisco Vicente Mandira que acabou
herdando a área de 1.200 alqueires, em Cananéia,
no valor de 200 mil réis. Uma meia-irmã,
Celestrina Benícia de Andrade, ao deixar a região,
fez a doação registrada em cartório
em 4 de setembro de 1868.
É nesse local, numa área de 52 alqueires,
cuja posse lograram manter, que se localiza o Bairro Mandira,
onde moram 18 famílias, com pouco mais de cem pessoas,
descendentes de Francisco Vicente Mandira.
Os mais antigos se lembram dos tempos em que "a gente
tirava ostra de canoa, tirava caxeta, a ostra a gente
desmariscava e vendia", como diz Frederico Mandira,
71 anos, pai de nove filhos, bisneto de Francisco.
Henrique Bernardo Coutinho, pai de Chico, mora no bairro
há 50 anos, desde que se casou com Judith Maria,
uma dos Mandiras. "Estou 'correndo' 72 anos",
tempo em que criou doze filhos com o que a natureza lhes
punha à disposição. "Antigamente,
a gente pescava, caçava no mato, paca, tatu. Hoje,
não deixam cortar nem um pau", diz.
O desenvolvimento econômico causou um forte impacto
na cultura dos caiçaras. Segundo um estudo do antropólogo
Renato Rivaben de Sales, "o Estado, para defender
os contínuos remanescentes de Mata Atlântica,
impôs severas restrições às
práticas tradicionais, especialmente a agricultura
de sobrevivência". Coube aos mais jovens buscar
saídas.
"Eles têm outra sabedoria", salienta o
velho Frederico, referindo-se ao sobrinho Chico, que preside
a Cooperativa dos Produtores de Ostras de Cananéia
- Cooperostra, e ao filho José Bonifácio,
que dirige a Associação dos Moradores da
Reserva Extrativista do Bairro Mandira. E, efetivamente,
uma nova consciência está se formando buscando
meios de sobrevivência com a exploração
racional dos recursos naturais em uma área que,
só em território paulista, se estende por
aproximadamente 2.500 km2, denominados Complexo Estuarino-Lagunar
de Iguape-Cananéia, considerado um dos mais importantes
berçários de espécies marinhas de
todo o mundo.
Nas áreas de manguezais, estimadas em 250 km2,
a produtividade calculada é de 20 ton de alimentos
por hectare, com espécies de alto valor comercial
como tainha, robalo, corvina, camarões, caranguejo,
siris, mariscos e ostras. Diz Rivaben que os moradores
tradicionais, dadas as restrições de acesso
aos recursos que exploravam, ficaram mais dependentes
da economia de mercado. Com reduzido poder de negociação
e sem ter como escoar os produtos para os grandes centros,
acabavam nas mãos dos atravessadores, especialmente
no caso das ostras.
A primeira tentativa de transformar esse cenário
partiu do próprio Rivaben, então na CPLA,
após o encerramento do Macro Zoneamento do Litoral
Sul, em 1989, e culminou com a proposta de criação
da Reserva Extrativista do Bairro Mandira, em 1994, para
salvaguardar a área para o benefício dessa
comunidade, para, de forma sustentável, explorar
os seus recursos.
O processo se encontra em tramitação no
Ibama - Instituto Brasileiro da Amazônia e dos Recursos
Naturais Renováveis, mas suscitou outras ações
como o Programa de Ordenamento da Exploração
da Ostra do Mangue em Cananéia, iniciado em 1996
pela Gerência de Desenvolvimento Sustentável
da Fundação Florestal, órgão
vinculado à Secretaria Estadual do Meio Ambiente.
Esse programa enfoca questões ecológicas,
sociais e econômicas e, não por acaso, encontra-se
sob a responsabilidade do próprio Rivaben.
Envolvendo outros organismos como o Centro de Estudos
Ecológicos Gaia Ambiental e o Instituto de Pesca,
da Secretaria Estadual da Agricultura e Abastecimento,
o programa desenvolveu um estudo, em 1999, estimando em
11,2 milhões de dúzias a população
de ostras - Crassostrea brasiliana - nos manguezais da
região.
Desse total, 8,6% tem tamanho comercial, ou seja, 969
mil dúzias de ostras com mais de 5 cm. Com esse
dados, os pesquisadores concluíram que a região
sustenta a produção de aproximadamente 80
mil dúzias por mês. Isso pode ser o indicativo
de que a quantidade atualmente extraída esteja
próxima da capacidade máxima de exploração
dos bancos naturais.
Um levantamento apontou a existência de 128 coletores
de ostras, distribuídos em mais de duas dezenas
de comunidades, além do Mandira, em todo o Município
de Cananéia. "Mas só vendíamos
para os atravessadores", salienta Chico. Com o apoio
dos órgãos oficiais, foi viabilizado o aporte
de recursos provenientes da Shell Brasil, por intermédio
da Fundação Margareth Mee, do Projeto de
Execução Descentralizada - PED e do Projeto
Demonstrativo tipo "A" - PD/A, ambos do Ministério
do Meio Ambiente, o que possibilitou a construção
e operação de uma estação
depuradora de ostras, em Cananéia, fundamental
para que o produto ganhasse o certificado do Serviço
de Inspeção Federal - SIF.
Nessa instalação, as ostras passam de três
a oito horas filtrando água esterilizada para eliminar
possíveis contaminações em seu organismo,
garantindo um produto de qualidade ao consumidor. Os recursos
permitiram ainda a compra de um barco, motor, diversos
equipamentos e material para a construção
por, da mesma forma que a depuradora, meio de mutirão
da sede da Associação dos Moradores do Bairro
Mandira.
Outro passo, dado em 1997, foi a constituição
da Cooperativa dos Produtores de Ostras de Cananéia
- Cooperostra, hoje, com 43 associados (todos os que ajudaram
a construir a depuradora), mas estudando a adesão
de novos membros.
Um primeiro reflexo dessa organização: "antes
o atravessador pagava R$ 0,50 ou R$ 0,60 a dúzia
de ostras, lembra Chico, depois passou a pagar R$ 1,30.
A cooperativa paga R$ 1,70 pela média e R$ 2,50
pela dúzia das ostras grandes". A cooperativa
luta para ganhar definitivamente a confiança dos
coletores, saltando das atuais quatro mil dúzias,
que chegam a oito mil no verão, para 20 mil dúzias
de ostras comercializadas por mês.
A região produzia aproximadamente 35 mil dúzias
na década de 70, chegando a 60 mil na década
de 90 e estabilizando-se hoje em 40 mil dúzias,
sustentando ainda uma rede de atravessadores. "Mas
os coletores já ganham mais", salienta Chico.
Outro fator que estimulou a produção foram
os viveiros de engorda, que consistem de tabuleiros de
telas plásticas onde os moluscos coletados, com
menos de 5 cm, são mantidos até alcançar
tamanho comercial. Em quatro meses, afirmam, alcançam
os 7 ou 8 cm, além de ganhar um formato mais adequado
para comercialização. Os viveiros são
instalados nos próprios manguezais, submetendo
as ostras aos mesmos regimes de marés para obterem
os nutrientes necessários.
A auto-estima também registrou ganhos. Diz Chico
que "antes de começar a criar, o pessoal tinha
vergonha de ser tirador de ostra. Hoje, eles vêem
a atividade como uma profissão que dá dinheiro".
Outra grande vantagem é que as ostras nos viveiros
constituem estoques que podem ser comercializados no período
de reprodução, de dezembro a fevereiro,
quando a coleta é proibida, mas a demanda é
maior por coincidir com a temporada de verão.
Chico, refletindo a própria mudança de postura,
diz que "a questão é de marketing",
necessitando anunciar o produto nos meios de comunicação.
Mas para isso é necessária uma estrutura
eficiente para escoar a produção e alcançar
os grandes centros, como São Paulo. A esperança
é a obtenção de novos recursos que
possibilitarão a compra de um novo veículo.
A socióloga Wanda Maldonado, da Fundação
Florestal, que atua nesse programa, lembra que já
estão sendo realizadas experiências de cultivo,
para capacitar as pessoas para o momento seguinte, quando
o crescimento da produção implicará
um inevitável aumento da pressão sobre os
bancos naturais de ostras.
"A demanda do mercado nos próximos anos poderá
comprometer a sustentabilidade dos estoques naturais",
observa. Por isso, o projeto prevê o manejo de forma
consorciada, aliando a coleta, a engorda e o cultivo para
proteger os bancos naturais, gerar empregos e atender
à demanda do mercado também com ostras cultivadas.
O grande ganho, no entanto, foi a organização
da comunidade. O próprio Chico diz que "mudou
o modo de ser da gente", mostrando ser um hábil
negociador na busca de recursos para o desenvolvimento
do projeto. E a consciência de sua realidade, lembrando
que "nossos antepassados já cuidavam desta
área, nós queremos cuidar também",
resguardando-a da exploração predatória
feita por pescadores industriais vindos de outras regiões.
Ao mesmo tempo, luta pela afirmação da comunidade,
buscando o reconhecimento oficial como quilombola, que
poderá representar recursos para a preservação
da sua cultura, especialmente a restauração
da casa de pedra, um antigo engenho cujo construção
data do século XIX.
José Bonifácio Mandira, presidente da associação,
dá a sua contribuição para que as
manifestações tradicionais não se
percam. Para isso, continua organizando a Festa de Santo
Antônio, que acontece em junho, todos os anos, o
Terço Cantado ou Terço de Sétimo
Dia, por ocasião da Festa de Santo Antônio,
a Bandeira do Divino e o Carnaval, em que o pessoal dança
o fandango à noite e de dia "borra os outros
com pó de café e lama".
De um lado, Chico, lutando para sedimentar novos comportamentos,
dando dignidade ao trabalho dos coletores de ostras, e
de outro, José, para que o patrimônio mais
importante da comunidade, que é a sua cultura,
não feneça.
Fonte: SMA – Secretaria Estadual de Meio
Ambiente de São Paulo (www.ambiente.sp.gov.br)
Reportagem: Newton M. Miura