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OBRIGADO,
MST
Panorama
Ambiental
São Paulo (SP) - Brasil
Maio de 2004
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No
artigo abaixo, publicado originalmente no Observatório
da Imprensa, o sociólogo Cândido Grzybowski,
diretor do Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas (Ibase), além
de criticar a condenação praticamente
unânime do Movimento dos Sem-Terra (MST) na
imprensa, relaciona a reforma agrária à
possibilidade de um desenvolvimento democrático
sustentável no Brasil, que se contrapõe
ao modelo predominante, excludente e com riscos
socioambientais cada vez maiores não só
para os sem-terra, mas para outros diversos atores,
como os povos indígenas.
Sei que estou indo contra a corrente dominante na
opinião pública. Aliás, opinião
única, pois nenhuma dúvida existe
na condenação praticamente unânime
do MST na imprensa, nenhum contraponto, nada ou
quase nada do ponto de vista dos próprios
integrantes do movimento ou, ainda, dos que de uma
perspectiva democrática buscam saídas
para a desigualdade e a exclusão que marcam
nossa estrutura social.
Que jornalismo é esse? Lamentável!
Podemos discordar do movimento, de seus ideais,
de seus métodos, mas tentar entender a questão
em jogo é o mínimo que se espera no
debate público.
Provavelmente, não existe tabu maior no Brasil
do que a questão agrária – questão
velha de séculos. Mas nada mais atual, pois
não se limita ao campo em si, à sua
população. Racismo, machismo, desigualdades
de todos os tipos e tantas outras das nossas mazelas
têm, lá bem escondidas, as suas raízes
na estrutura agrária. E, o que de longe é
mais grave, o nosso futuro se decide no modo como
hoje definirmos a nossa relação com
o enorme patrimônio comum que temos, o território
e seus recursos.
Questão complexa, sem dúvida. Mas
onde está o debate? Será que o sacrossanto
privilégio de uns poucos em colocar cerca
em volta de parcelas do território – muitas
vezes baseadas no roubo legalizado por meios escusos
– está acima do bem comum?
O centro de debate
A modernidade do
MST está em nos interpelar sobre isto, sobre
o passado de nossa matriz agrária e sobre
o futuro no uso dos nossos recursos naturais, tendo
a terra no centro. A sua luta social não
pode ser vista fora de tal quadro. Mesmo enfrentando
diretamente os donos de terras, gado e gente – pois
esta é ainda uma lamentável característica
dos proprietários no campo – os sem-terra,
ao fazer ocupações de fazendas, trazem
à tona um aspecto fundamental sobre a possibilidade
de um desenvolvimento democrático sustentável
no Brasil. Somos, dos grandes países do mundo,
o de menor densidade demográfica, o mais
privilegiado em termos de recursos naturais – terra,
água, biodiversidade – e, ao mesmo tempo,
o mais desigual e, tragicamente, o mais predador.
Até quando, em nome de uma visão ainda
estreita, poderemos sustentar o direito de agir
nesta parte do Planeta Terra de forma tão
irresponsável social e ecologicamente?
O futuro, o nosso futuro e não só
o dos sem-terra, depende de uma mudança fundamental
na relação com o patrimônio
natural que temos. Sem-terra, seringueiros, quebradeiras
de coco, os próprios povos indígenas,
heranças de um passado selvagem e excludente,
com suas lutas de resistência estão
chamando atenção para a forma devastadora
e insustentável de nossa estrutura e do processo
de desenvolvimento no campo.
O sucesso de nossa agropecuária atual, apregoada
como expressão de nosso domínio de
tecnologias de produção e de nossa
competitividade – no chamado modelo agroindustrial
exportador – esconde uma verdadeira tragédia.
Juntando com a extração e exportação
de minerais, com o deserto verde das florestas homogêneas
de eucalipto para celulose, que nos tornam imbatíveis
no mercado mundial, a nossa agricultura exporta
para o mundo a seiva viva da nação,
tanto da vida natural como da sociedade, em troca
de um duvidoso superávit nas transações
comerciais. Estamos comprometendo o presente de
muita gente excluída do processo e, o que
é pior, o futuro de nossos(as) filhos(as)
e netos(as), o futuro de muitos para além
das fronteiras nacionais.
O centro de debate sobre o impacto da ação
do MST deveria ser o caráter antidemocrático
e insustentável, do um ponto de vista ambiental,
da atual forma de apropriação da terra
e de seus recursos. Na luta dos sem-terra está
a questão da degradação dos
rios, da destruição das florestas,
da agressão à biodiversidade e à
sua privatização, dos duvidosos benefícios
dos transgênicos, tudo muito além do
monopólio da propriedade da terra, em si
algo intrinsecamente absurdo na perspectiva dos
direitos humanos, minha referência. Está
em questão o modo como nos relacionamos com
a terra e o que ela contém.
Berço
de um novo Brasil
Talvez o mais triste
na conjuntura atual, de novo recrudescimento das
ocupações do MST, seja tentar tapar
o Sol com a peneira. Limitar o debate a uma discutível
agressão à propriedade da terra ou,
mais genericamente, às leis e instituições,
é recusar-se a ver de frente uma lei férrea
constitutiva da sociedade brasileira: os privilégios
adquiridos de proprietários privados do patrimônio
coletivo contra direitos de cidadania e contra a
reversão de um modelo predador e excludente.
Leis são feitas para serem respeitadas, sem
dúvida. Mas leis exprimem relações.
Na história humana não faltam exemplos
de mudanças e avanços que precisam
ser feitos para que leis dêem conta da nova
realidade. E os movimentos sociais, como o MST,
em sua truculência, acabam funcionando como
o anúncio da mais radical modernidade que
clama por emergir.
Não tenho dúvidas em afirmar que na
luta dos sem-terra é, acima de tudo, o nosso
futuro que está em questão. E não
o passado. Afirmo isto mesmo reconhecendo que a
forma da luta tem muito de primitivo e condenável.
Sou um radical pacifista, praticante incondicional
da não-violência. Mas fico em dúvida
se a possível violência dos sem-terra
é da natureza de sua luta por um novo modo
de relação com a terra ou tem mais
a ver com as formas como os proprietários
de séculos reagem na defesa de seus inegáveis
privilégios.
Obrigado ao MST por nos fazer pensar no futuro e
na possibilidade que ainda temos de rever isto.
Coragem, Lula, o momento é de inverter uma
lógica e democratizar o campo, tornando-o
o berço de um novo Brasil democrático
e sustentável. Aliás, a pressão
do MST é bem-vinda. Quem sabe o governo e
nós todos acordemos para o fato de que não
dá mais para adiar medidas no sentido de
mudar o rumo de uma estrutura agrária que
nos está levando ao desastre.
Fonte: Isa – Instituto Socioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa