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ONDE ESTÁ
A POLÍTICA INDIGENISTA DO GOVERNO
LULA?
Panorama
Ambiental
São Paulo (SP) - Brasil
Abril de 2004
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Com
persistentes conflitos em relação
à homologação de TIs, especialmente
da TI Raposa/Serra do Sol (RR), o governo ultrapassa
15 meses sem uma política indigenista consistente,
comprometendo as expectativas em relação
ao seu mandato.
Quem espera por uma
política indigenista consistente do atual
governo federal tem razões de sobra para
duvidar de que ela se efetive ainda neste mandato,
algo que já foi questionado no especial Cem
Dias a Espera de Uma Política Indigenista,
elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) em
abril do ano passado. Refém de compromissos
com interesses contraditórios entre si, o
presidente Lula patina há mais de 15 meses,
sem conseguir traduzir em realidade uma intenção
que manifestou no período eleitoral, registrada
no caderno temático Compromisso com os Povos
Indígenas: "Definir, em conjunto com
as comunidades indígenas, os indigenistas,
especialistas e setores políticos sinceros
e interessados, uma política indigenista
clara, democrática, objetiva, coerente, visando
ao respeito e à garantia plena dos direitos
à terra e à autodeterminação
dos povos indígenas".
Desde que Lula assumiu, houve, é verdade,
providências quanto ao comando da Fundação
Nacional do Índio (Funai). Eduardo Almeida,
jornalista e indigenista ligado à Secretaria
Nacional de Movimentos Populares do Partido dos
Trabalhadores (PT), foi nomeado presidente do órgão
em fevereiro de 2003. Aparentemente pouco afinado
com o ministro a que estava subordinado - Márcio
Thomaz Bastos, da Justiça -, Almeida permaneceu
na direção da Funai apenas até
agosto do mesmo ano. Após breve período
de interinidade, o lugar foi ocupado pelo antropólogo
Mércio Pereira Gomes, que, assim como o ministro
da Integração, Ciro Gomes, e os governadores
Blairo Maggi (Mato Grosso) e Eduardo Braga (Amazonas),
é filiado ao Partido Popular Socialista (PPS),
da base aliada do governo. Gomes segue à
frente da Funai desde setembro de 2003.
A permanência de um presidente da Funai no
cargo configura uma situação, todavia,
insuficiente para que pudesse indicar estabilização
e início de definição no setor.
Desde o começo da década de 90, algumas
atribuições da Fundação,
como a atenção à saúde
e à educação escolar indígena,
foram transferidas para outros órgãos
da máquina estatal. Debilitada por esta e
por outras razões, não é de
hoje que a Fundação tem-se mostrado
incapaz de coordenar as ações indigenistas
oficiais. Desse modo, interferir na sua linha de
comando é pouco. Pode-se dizer que, embora
na estrutura hoje vigente do Estado brasileiro não
seja possível fazer política indigenista
sem a Funai, tampouco se pode fazê-la apenas
por meio da Funai.
Falta de coordenação e de articulação
das ações
A candidatura Lula à Presidência da
República apresentou algumas propostas inovadoras
quanto à política indigenista, as
quais, entretanto, não se converteram em
execuções do novo governo. Em meio
a disputas, indefinições e/ou falta
de sinergia entre setores do próprio governo,
o compromisso de realizar a Conferência Nacional
de Política Indigenista, preferencialmente
no primeiro ano de mandato, não se cumpriu.
A criação de uma nova instância,
que fosse capaz de articular as várias áreas
do governo responsáveis por questões
indígenas, a qual chegou a ser chamado de
"Conselho Superior" ou "Comissão"
de Política Indigenista, ficou igualmente
apenas no papel. Na realidade, o governo Lula tem-se
caracterizado, desde o início, por colocar
diversos e pouco integrados de seus membros para
investir na construção - ou, ao menos,
para se ocupar da discussão - de diretrizes
indigenistas de caráter mais geral.
Além da Funai e do Ministério da Justiça,
distintos segmentos do Ministério do Desenvolvimento
Agrário, bem como a Comissão Intersetorial
de Saúde Indígena - ligada ao Conselho
Nacional de Saúde, de natureza interministerial
e com participação da sociedade civil
-, engajaram-se em proposta herdada do governo anterior:
o desenho de uma Política Nacional de Etnodesenvolvimento
e Segurança Alimentar dos Povos Indígenas.
Após 17 oficinas regionais por todo o Brasil,
seguidas por um Fórum Nacional em novembro
de 2003, em Brasília, tal processo não
teve maiores desdobramentos. O que de mais concreto
e semelhante ao seu tema aconteceu desde então
foi o início de tratativas entre a Secretaria-Geral
da Presidência da República e o novo
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome - produto da reforma ministerial de
janeiro de 2004 - por um lado, o Banco Mundial,
por outro, e lideranças indígenas,
por um terceiro, visando a que o programa de transferência
de renda denominado Bolsa-Família seja estendido
a populações indígenas.
Em torno de assuntos indígenas, estruturas
governamentais diretamente ligadas à Presidência
da República, foram mobilizadas também
em outros momentos e direções. A Secretaria-Geral
da Presidência da República, sob a
direção do ministro Luiz Dulci, foi
chamada a cuidar da reversão do tensionamento
político promovido pelo movimento indígena
da Amazônia, que, ao final de 2003, em Manaus,
chegou a fazer uma queima simbólica, em praça
pública, do documento Compromisso com os
Povos Indígenas.
Ainda nos primeiros meses do novo governo, o Conselho
de Defesa Nacional (CDN) - órgão de
Consulta do Presidente da República nos assuntos
relacionados à soberania nacional e à
defesa do estado democrático - e a Câmara
de Relações Exteriores e Defesa Nacional
do Conselho de Governo (CREDEN) - outro órgão
de consulta do presidente, voltado à formulação
de políticas, estabelecimentos de diretrizes
e acompanhamentos de programas relacionados a populações
indígenas e direitos humanos, integração
fronteiriça, entre outros - foram indicados
pela Casa Civil para analisar a homologação
de Terras Indígenas, procedimento que não
faz parte do processo demarcatório previsto
pelo Decreto 1.775/96, tendo caráter eminentemente
político: o de protelar o reconhecimento
de direitos territoriais indígenas.
São diferentes movimentações
num mesmo espaço de poder, o do governo Lula.
Carecendo de uma orientação comum,
levam a questionar quem, neste governo, determina
e quem determinará os rumos do indigenismo.
Afinal, onde está e para onde caminhará
sua política indigenista?
Negociações e poucas realizações
Por enquanto, não há respostas animadoras.
É de se notar que boa parte da atenção
governamental indigenista nesses últimos
15 meses voltou-se para persistentes conflitos de
interesses envolvendo demarcações
de terras. As soluções aventadas ou
praticadas nesses casos - dentre os quais releva-se
o da Raposa/Serra do Sol, em Roraima -, assim como
as negociações no Congresso Nacional
daí derivadas, manifestam claro compromisso
com setores contrários aos direitos territoriais
dos índios.
De resto, o governo pouco fez. Promoveu um polêmico,
preocupante e ainda em curso processo de alteração
da sistemática de execução
dos serviços de atenção à
saúde dos índios. Nos mandatos do
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a saúde
indígena havia sido reestruturada, passando
a ser gerida por meio de convênios regionalizados
entre a Fundação Nacional de Saúde
(Funasa), de um lado, e secretarias estaduais, prefeituras
municipais, organizações indígenas
e ONGs, de outro, no âmbito dos chamados DSEIs
(Distritos Sanitários Especiais Indígenas).
Nesse sistema, a Funasa pactuava com suas conveniadas
linhas de atuação a serem seguidas
em cada DSEI, repassava a elas recursos públicos
federais e fiscalizava os gastos efetuados. A intenção
dos atuais comandos do Ministério da Saúde
e da Funasa é que, agora, esta mesma Fundação
execute diretamente as ações do setor
em todos os DSEIs, restando a seus parceiros, governamentais
e não-governamentais, atuar de uma forma
dita "complementar", mas que ainda não
foi consensuada. Novos convênios, portanto,
em novas bases, estão sendo propostos e negociados
Brasil afora pela Funasa.
Alegando cumprir ordens do judiciário e do
Ministério Público Federal, bem como
reivindicações dos próprios
povos indígenas e de ONGs conveniadas, a
atual direção da Funasa, com essa
iniciativa, propõe retornar a uma situação
de execução direta que já foi
tentada, de modo fracassado, no passado recente
e para a qual reconhecidamente carece de recursos
humanos qualificados. Acrescente-se que a Funasa
promove essa reforma administrativa sem um processo
claro e transparente de debate das novas bases do
sistema junto aos povos indígenas e sociedade
civil.
Embora ainda indefinido, o resultado das mudanças
sinaliza na direção da desmobilização
social, da desconsideração dos acúmulos
e experiências positivas de convênios
de gestão dos DSEI - como é o caso
do convênio com a organização
Urihi, de apoio à saúde do povo Yanomami
- e da transferência de ônus administrativos
e trabalhistas a ONGs e organizações
indígenas de controle social.
No campo da educação escolar indígena,
o novo comando do setor pertinente do Ministério
da Educação (CGEEI/ MEC) tem-se empenhado,
sobretudo, em garantir que informações
referentes aos múltiplos e complicados mecanismos
de financimento do setor cheguem à "ponta"
- aos professores e organizações indígenas,
e também às ONGs e outros assessores
do campo. Trata-se de uma disposição
da CGEEI, certamente necessária mas insuficiente,
em fomentar o chamado controle social dos gastos
que Secretarias estaduais e municipais estão
obrigadas por lei a efetuar com a educação
escolar indígena, mas que em muitos casos
não se realizam adequadamente.
A novidade mais substantiva nessa área é
recente; seus efeitos ainda não se fazem
notar. Após a substituição
do ministro da Educação - Cristovam
Buarque por Tarso Genro -, a CGEEI foi reposicionada
no organograma do MEC. Ela passa a estar subordinada
à recém-criada Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECAD), também responsável pelos
assuntos escolares relativos a setores rurais, a
afro-descendentes e a questões de gênero.
Além do já mencionado, há iniciativas
tímidas e por enquanto pouco desenvolvidas
no sentido de estender a política de educação
escolar indígena aos níveis médio
e superior, por parte do MEC, e, por parte do Ministério
do Meio Ambiente, de incluir as Terras Indígenas
em estratégias globais de conservação
e gestão da biodiversidade. A responsabilidade
pelas ações do governo federal na
área de assistência técnica
e extensão rural indígena, alocadas
no Ministério da Agricultura durante o período
FHC, foram, por sua vez, transferidas ao Ministério
do Desenvolvimento Agrário.
Muito pouco, repita-se, com ainda reduzido grau
de concretude e com diminuta integração
entre as diferentes ações. É
sempre possível argumentar que a falta de
política já é, em si, uma política.
No campo específico aqui comentado, o argumento
conduziria a considerar que a ausência de
uma política indigenista geral do governo
Lula, até agora, pode ser a contraface de
políticas outras. Fortemente compromissado
com o setor dos agronegócios e dos grandes
proprietários rurais, imerso no ideário
do crescimento econômico a qualquer preço
e dependente de apoios vários para aprovar
matérias de seu interesse no Congresso Nacional,
o governo relega a segundo plano as demandas indígenas;
e mais grave: parece utilizá-las como "moeda
de troca" conforme situações
específicas de negociação política,
fazendo barganha com direitos dos índios
garantidos na Constituição Federal.
Processo demarcatório de Terras Indígenas
Numa contabilidade geral, o governo Lula chega a
um placar relativamente positivo no quesito demarcação
de Terras Indígenas (TIs). Desde que sentou
na cadeira presidencial, Lula assinou decretos de
homologação - que correspondem ao
último ato de reconhecimento oficial de uma
TI - de 33 delas, perfazendo um total de 4.846.481
hectares (ha). Hoje (19/4), Dia do Índio,
foram homologadas oito TIS, conforme o quadro abaixo.
Terra
Indígena |
Povo |
Extensão |
Município |
UF |
Coatá Laranjal |
Munduruku |
1.153.210 |
Borba |
AM |
Fortaleza do Patauá |
Apurinã |
743 |
Manacapuru |
AM |
Igarapé Grande |
Kambeba |
1.539 |
Alvarães |
AM |
Juma |
Juma |
38.351 |
Canutama |
AM |
Porto Praia |
Ticuna |
4.769 |
Uarini |
AM |
Tenharim do Igarapé
Preto |
Tenharim |
87.413 |
Novo Aripuanã |
AM |
Tupã- Supé |
Ticuna |
8.589 |
Alvarães e Uarini
|
AM |
Caieiras Velha II |
Tupiniquim, M’byá |
57 |
Aracruz |
ES |
Total |
|
1.294.671
|
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Já o desempenho
do ministro da Justiça, Márcio Thomaz
Bastos, responsável pela etapa anterior no
processo de demarcação de TIs - a
assinatura de Portarias declaratórias da
posse permanente indígena de territórios
previamente identificados pela Funai -, configura-se,
até o momento, como bem menos animador: foram
apenas quatro portarias, somando 93.842 ha. Thomaz
Bastos ainda protagonizou um caso inédito,
reduzindo a extensão da TI Baú, de
índios Kayapó, no município
de Novo Progresso, Pará, que havia sido anteriormente
definida. Em 1998, o ministro da Justiça
do governo FHC declarou essa terra com 1.850.000
ha. Em Portaria de 08/10/2003, Thomaz Bastos reduziu-a
para 1.543.460 ha, seguindo a orientação
de um acordo com madeireiros, mineradores e políticos
locais que os Kayapó, com o intermédio
da Funai e do Ministério Público Federal
(MPF), viram-se constrangidos a aceitar. O próprio
MPF questiona a legalidade do acordo. O procurador
que esteve envolvido no caso foi chamado a prestar
esclarecimentos sobre sua conduta à 6a Câmara
e ao Procurador Geral da República.
A pendência
da homologação da TI Raposa/Serra
do Sol
No montante das homologações
feitas por Lula, incluem-se 22 das 23 TIs cujos
processos de homologação aguardavam
a assinatura do presidente desde o governo anterior.
Algumas das TIs nessa situação foram
objeto da já aludida apreciação
irregular por parte do Conselho de Defesa Nacional.
Mas o único caso em que Lula prolongou a
omissão do seu antecessor muito além
do esperado, comprometendo gravemente seu placar
de demarcações, foi o da TI Raposa/
Serra do Sol, com mais de 1,6 milhão de hectares
em área contínua no nordeste de Roraima,
em região de fronteira entre Brasil, Guiana
e Venezuela. Nesta Semana do Índio de 2004,
a Raposa/Serra do Sol ainda não teve sua
demarcação garantida pela homologação
presidencial.
Fortemente questionada pelos poderes constituídos
de Roraima, que se converteram em neo-aliados do
governo federal e alinham-se com os rizicultores
que na década de 11000 invadiram a área
secularmente ocupada por índios Makuxi, Tauarepang,
Patamona, Ingarikó e Wapixana, a longa indefinição
quanto a essa homologação expõe
com clareza o quanto à retórica do
"respeito e garantia plena" dos direitos
indígenas à terra, preconizada no
programa de governo, está condicionada por
compromissos outros assumidos pelo Palácio
do Planalto.
Ao longo desses mais de 15 meses, a atuação
do núcleo do poder federal quanto à
situação da Raposa/Serra do Sol foi
de natureza francamente indecisa e protelatória.
O ponto de indefinição é saber
se vale ou não a pena, em termos políticos,
homologar a área na sua integridade, tal
como identificada pela Funai em 1993 e declarada
pelo Ministério da Justiça em 1998
como sendo de posse permanente dos índios
que lá habitam.
Ao início do novo governo, houve a remissão
do caso ao Conselho de Defesa Nacional e, por intermédio
desse, ao Senado Federal. Em audiência pública
realizada no Congresso Nacional, em 20/05/2003,
o ministro Márcio Thomaz Bastos prometeu
resolver o caso ainda no primeiro semestre daquele
ano. No começo de junho, Thomaz Bastos encabeçou
uma comitiva federal de visita à região
da TI e continuou sustentando que haveria uma decisão
rápida. Em vez disso, assistiu-se à
inclusão do tratamento da questão
num cenário temático e institucional
mais amplo.
Em julho de 2003, foi criado um Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI) destinado a analisar a situação
fundiária de Roraima e a apresentar propostas
em relação às terras da União
situadas no estado, dentre elas, a TI Raposa/Serra
do Sol. Oficializado apenas em setembro, o GTI só
viria a tomar alguma atitude concreta no início
de 2004.
Antes disso, em novembro, durante a abertura da
Conferência Nacional do Meio Ambiente, foi
o próprio presidente Lula quem afirmou que
a TI seria homologada na sua extensão integral,
e que seriam adotadas providências concomitantes
para indenizar ou reassentar os ocupantes não-índios
que permanecem na área. Seguindo a rota da
fala presidencial, o ministro Thomaz Bastos anunciou,
em 23/12/2003, que o decreto homologatório
seria assinado em janeiro. Nesse meio tempo, veio
à tona em Roraima aquilo que ficou conhecido
como o "escândalo dos gafanhotos",
que consistia em usar funcionários fantasmas
para desviar recursos da folha de pagamento do estado,
e que levou o governador Flamarion Portela, sob
investigação, a desligar-se do PT.
O ano de 2004 iniciou-se com uma violenta reação
dos rizicultores ao anúncio da homologação
em área contínua. Contando com o apoio
de alguns índios - coincidentemente ou não,
incluídos no esquema dos "gafanhotos"
-, o grupo promoveu a invasão da sede da
Funai na capital roraimense, Boa Vista, a destruição
de uma missão religiosa situada na TI, a
prisão de três padres, que foram feitos
reféns, e o bloqueio das estradas que dão
acesso à capital. A gravidade desses fatos
certamente contribuiu para a criação,
em 09/01/2004, de mais um ente governamental: o
Comitê de Viabilização Econômica
de Roraima. Com representantes de seis ministérios
- Justiça, Desenvolvimento Agrário,
Integração Nacional, Planejamento,
Casa Civil e Meio Ambiente -, da Funai, do governo
de Roraima e da Subchefia de Assuntos Federativos
da Presidência da República, esse Comitê
destina-se a analisar questões mais práticas
relativas à homologação da
TI, como as que envolvem indenização
e remoção de não-índios,
e não se confunde com o referido GTI. A situação
de tensão provocada pelos arrozeiros também
levou a que, dias depois, em 24/01/2004, a equipe
do GTI empreendesse visita a Boa Vista, quando ouviu
diversos atores locais - organizações
indígenas e indigenistas, órgãos
do governo, políticos e empresários,
entre outros - sobre a homologação.
Não bastasse essa profusão de arranjos
institucionais do poder executivo, o caso Raposa/
Serra do Sol voltou novamente a ser apreciado no
Congresso Nacional em fevereiro, quando tanto a
Câmara dos Deputados como o Senado criaram
comissões especiais para avaliá-lo.
A Comissão da Câmara foi mais efetiva
do que a do Senado. Seu relatório final,
a cargo do deputado Lindberg Farias (PT/ RJ), foi
entregue para votação em abril. Afinado
com os interesses contrários à homologação
contínua e manifestando uma surpreendente
adesão à ideologia de soberania nacional
que vê nos direitos territoriais indígenas
um risco, o texto do deputado governista propõe
que a TI seja demarcada deixando de fora: as porções
invadidas pelos arrozeiros, a sede do município
de Uiramutã - criado depois que a Funai já
havia concluído seus estudos de identificação
da área, com o deliberado objetivo de obstaculizar
a própria demarcação - e um
"cordão de isolamento" de 15 quilômetros
ao longo da divisa dos territórios brasileiro,
venezuelano e guianense, que seria destinado à
"vivificação das fronteiras"
e à "ocupação produtiva"
da região.
A despeito do desastrado relatório de Lindberg
Farias, a novela da homologação da
TI Raposa/ Serra do Sol parece estar chegando perto
de um final - e feliz, do ponto de vista dos direitos
indígenas. No momento em que se escreve este
texto, as informações são de
que o Palácio do Planalto não seguirá
as sugestões do relatório e, que,
para que chegue à tão demorada definição
do caso, só espera dispor de condições
para anunciar, até o fim do mês, um
pacote de medidas de caráter fundiário
em Roraima que o acompanharia.
Contudo, ao manifestar tamanha vacilação
diante do caso roraimense, arrastando sua resolução
por tanto tempo, os atuais ocupantes do poder executivo
contribuíram para que proliferassem, por
parte de parlamentares da base governista, de governadores
de estados e de outros de seus aliados, reiterados
questionamentos do processo de demarcações
de TIs em geral.
Alterações no Decreto 1.775/96, que
define o procedimento administrativo para a demarcação
das TIs, e mesmo no artigo 231 da Constituição
Federal, que trata dos direitos territoriais indígenas,
têm sido aventadas com uma certa recorrência
desde o início de 2003. É preocupante
que não se perceba uma firme disposição
do núcleo do poder federal em frear essas
tendências. O que se nota, ao contrário,
é o terreno franqueado a elas - há
cerca de um mês, o próprio ministro
da Defesa, José Viegas, andou pronunciando-se
nessa direção. De modo que cabe alertar:
será em tudo lamentável se, no campo
da política indigenista, a contribuição
mais substancial de um governo "democrático
e popular" acabe consistindo num grande passo
atrás em termos do grau de reconhecimento
dos direitos indígenas que já foi
efetivado pelo Estado brasileiro.
A garantia aos índios de suas terras é
o que se pode chamar de "pré-história"
de uma política indigenista que se pretenda
coerente - condição necessária
para a implementação de ações
em áreas como educação, saúde,
segurança alimentar, produção
econômica, gestão ambiental ou manejo
de recursos naturais. Na falta de uma política
definida para as demarcações, o governo
Lula se arrisca a ficar patinando na lógica
do conflito, sem uma política indigenista
que integre esses vários setores, comprometendo
as expectativas em relação ao seu
mandato.
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Fernando Vianna, com a colaboração
de Márcio Santilli, Fernando Mathias e Fany
Ricardo