ANTROPÓLOGO DO MUSEU NACIONAL CRITICA ESTUDO DE
EMPRESA SOBRE LOCAL SAGRADO NO ALTO XINGU

Panorama Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Setembro de 2006

06/09/2006 - Relatório encomendado por empresa que está construindo uma hidrelétrica no rio Culuene, um dos principais formadores do rio Xingu, no Mato Grosso, conclui que o local da obra não é o mesmo apontado por lideranças indígenas como o lugar sagrado onde ocorreu o primeiro ritual do Quarup da mitologia alto-xinguana. Carlos Fausto, antropólogo do Museu Nacional, porém, identifica em artigo uma série de inconsistências nas premissas, metodologias e procedimentos adotados pelos cientistas contratados.

O antropólogo Carlos Fausto, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, instituição ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), analisa em artigo o relatório “Programa de Patrimônio Cultural”, que trata de locais sagrados para as comunidades indígenas do Alto Xingu, no Mato Grosso. O estudo foi produzido pela empresa Documento Arqueologia e Antropologia por encomenda da Paranatinga Energia S/A, holding que está construindo no rio Culuene, um dos principais formadores do rio Xingu, a Pequena Central Hidrelétrica Paranatinga II.

Protocolado em abril no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o relatório é parte dos estudos pedidos pela Justiça para avaliar os impactos socioambientais do empreendimento sobre os povos indígenas do Alto Xingu.

A construção da PCH é considerada por muitas lideranças indígenas da região como uma ameaça a seu patrimônio cultural, pois estaria sendo realizada em local sagrado onde, de acordo com a mitologia alto-xinguana, teria ocorrido o primeiro Quarup, hoje uma das principais cerimônias dos povos indígenas da região, cuja realização anual homenageia suas lideranças falecidas. Saiba mais.

O relatório da empresa conclui que o local sagrado do primeiro Quarup, chamado Sagihenhu, não seria no ponto do rio onde a barragem está sendo erguida. Mas sim em outra localidade, sete quilômetros à jusante do eixo da PCH. A localização exata do Sagihenhu de acordo com o relatório, portanto, vai ao encontro dos interesses da empresa que o encomendou e que já gastou mais de R$ 5 milhões na obra.

O antropólogo Carlos Fausto, um dos maiores especialistas nos povos do Alto Xingu e autor de um laudo antropológico sobre a cartografia sagrada da região, critica a metodologia, as premissas e os procedimentos utilizados pelos pesquisadores, fechando seu artigo com um alerta: “É preciso cuidar para que a ciência não seja utilizada de forma a obscurecer nossa compreensão dos problemas socioambientais concretos... Especialistas e especialidades não podem ser improvisados. Trabalhos cuidadosos não podem se dar a toque de caixa”. Leia, a seguir, o artigo na íntegra.

Ciência de Contrato e o Contrato da Ciência: Observações sobre o laudo da empresa Documento sobre a PCH Paranatinga II (rio Culuene, MT)

Por Carlos Fausto*

Recentes notícias jornalísticas sobre o laudo encomendado pela Paranatinga Energia à empresa Documento Antropologia e Arqueologia obrigam-me a interromper meus trabalhos de pesquisa, para tecer novas considerações sobre o caráter indígena da área onde está sendo construída a PCH Paranatinga II, no alto rio Culuene, bem como sobre o conteúdo do referido laudo. Isto porque as interpretações dadas nas matérias jornalísticas são equivocadas em dois aspectos: primeiro, quanto à qualificação da equipe e o caráter do laudo; segundo, quanto às conclusões que se podem retirar do estudo.

Embora seja indelicado fazer considerações sobre a qualificação da equipe que executou os trabalhos, não posso me furtar a fazê-lo diante da imagem que vem sendo veiculada na imprensa e utilizada em diversos fóruns. Não pretendo analisar o currículo de todos os membros da equipe, composta por 20 pessoas, sendo quatro delas doutores. Interessa-me apenas focalizar a única antropóloga da equipe com titulação, Gláucia Buratto de Mello. Especialista em antropologia da religião e do imaginário, escreveu uma dissertação de mestrado sobre Caetano Veloso e um doutorado sobre comunidades alternativas religiosas no Brasil e sobre o milenarismo contemporâneo.

Seus artigos mais recentes, conforme consta do Curriculum Lattes (CNPq/MCT), são “Comunidades neoesotéricas: aspiração e ação para um mundo melhor” e “Imaginário e prática do viver em comunidade: o desafio de juntar uma utopia a uma realidade”. Trata-se, pois, de alguém sem nenhuma experiência de pesquisa em área indígena, assim como sem nenhum conhecimento de línguas indígenas ou treinamento em lingüística para aprendizado de línguas ágrafas. Por que razão, então, teria sido contratada? Talvez pela razão de ter trabalhado sobre mitos e a questão da barragem envolver reivindicações indígenas baseadas, entre outras coisas, em narrativas míticas. Mas será que o fato de ter escrito uma dissertação entitulada “Caetano Veloso: Um Estudo de Símbolos e Mitos”, a qualificaria para um trabalho como este?

É evidente que temos um caso aqui que merece atenção, inclusive da Associação Brasileira de Antropologia, que, como se sabe, já se posicionou contrariamente ao envolvimento de profissionais da área, em trabalhos remunerados de grande impacto sobre os destinos de populações tradicionais, sem terem o devido conhecimento e a devida especialidade para fazê-lo. Para que se compreenda o disparate de uma situação como esta, basta pensar em um ortopedista que aceite realizar um laudo sobre um problema neurológico, ou ainda em um engenheiro naval que emita um laudo sobre um reator nuclear.

O desconhecimento da antropóloga é patente ao longo do laudo e mereceria uma análise mais detalhada. Limito-me, porém, a apontar dois momentos do imenso e verboso laudo, de substância científica, porém, escassa. No capítulo 6 (“Estudos da Mitologia Sagrada dos Povos Xinguanos”), que parece ter cabido à antropóloga, lemos o seguinte comentário “reflexivo” sobre o processo de coleta de dados: Os indígenas são, via de regra, muito cuidadosos sobre o que falam e têm excelente memória, mas nem sempre é assim. Tivemos a oportunidade de testar algumas vezes a atenção deles sobre o que falam e observamos que, às vezes eles repetem simplesmente o que falamos, às vezes falam qualquer coisa e, sobretudo, não gostam de ser interrompidos (p. 109).

Essa passagem dispensa maiores comentários, mostrando não apenas uma completa inadequação teórico-metodológica, como um completo desconhecimento dos modos narrativos indígenas. O trecho torna-se ainda mais iluminador quanto aos procedimentos metodológicos, quando o comparamos com a “entrevista” com um pajé kalapalo da aldeia do Tanguro, que ocorre no próprio sítio denominado Cachoeira do Avelino ou Adelino (o laudo oscila entre as duas grafias o tempo todo), apontada pelos autores do estudo como o local da origem do Kwaryp. Cito:

Gláucia: Depois daquele primeiro Kwarup foi feito mais algum Kwarup aqui? Pajé do Tanguro [para Gláucia]: É, Kwarup!! Gláucia: Houve outros? Pajé do Tanguro [para Gláucia]: Houve. Aqui Kwarup! Gláucia: Primeiro? Pajé do Tanguro [para Gláucia]: Primeiro rapaz!!

Como se vê, não-cientistas não devem deixar-se obnubilar pela suposta capa de “cientificidade” deste laudo. A enorme bibliografia (aliás, citada e utilizada de modo eclético e pouco controlado), as fotos, os mapas, o jargão, fazem parte de um aparato técnico que serve para esconder a fragilidade científica do trabalho. Porém, será que essa observação é válida também para a arqueologia? Não tenho aqui a capacidade técnica necessária para tecer um juízo acurado. A responsável pelo estudo e pela empresa Documento, Erika Robrahn-González, é uma profissional tecnicamente competente, especialista em análise cerâmica, particularmente naquela do Brasil Central. Alguns pontos, no entanto, devem ser destacados.

Em primeiro lugar, é evidente o caráter preliminar do levantamento arqueológico realizado. Pelo que se depreende do laudo, os trabalhos consistiram basicamente em localizar possíveis sítios arqueológicos ao longo do rio Culuene e a fazer “incursões perpendiculares” ao rio em “linhas de caminhamento” com 1.000 a 5.000m de extensão. Trocando em miúdos, em determinados pontos, a equipe andava da margem do rio em direção ao interior por 1 a 5 kms, realizando coleta de superfície (i.e., buscando cacos de cerâmica no chão). Como não há detalhamento da metodologia no laudo, pode-se imaginar que o trabalho arqueológico consistiu basicamente nesse levantamento inicial de possíveis sítios a serem estudados. O termo usado no laudo é “prospecção”, mas não sabemos o que isso significa exatamente, pois nada indica que tenham sido feitas sondagens, não há perfis de escavações, enfim, não há nada que possa nos indicar um trabalho arqueológico mais cuidadoso.

Em segundo lugar, é curiosa a escolha dos pontos de prospecção. Todos eles se encontram a jusante da barragem, quando se sabe que o impacto maior sobre as margens ocorrerá a montante, na área de alagamento e ainda mais acima, pois a barragem levará a uma nova dinâmica de erosão nos sedimentos menos consolidados das terras firmes. Ora, esse impacto se dará sobre a área xavante, povo que é contemplado no laudo do ponto de vista antropológico, mas não do ponto de vista arqueológico.

Em terceiro lugar, há um notável descompasso entre a proposta teórica do laudo, todo ele voltado para o que hoje se denomina antropologia da paisagem, e os estudos efetivamente realizados. Estes pouco têm a ver com uma consideração sobre a paisagem, que implicaria uma visão integrada das transformações do meio natural realizadas por um determinado grupo humano, seja na forma do manejo consciente, seja como resultado não-intencional de atividades repetidas. É preciso lembrar que esse é, justamente, um dos pontos fortes das pesquisas de nossa equipe, cuja parte arqueológica é coordenada por Michael J. Heckenberger da Universidade da Flórida. Nossos estudos sobre a paisagem xinguana são bem conhecidos, tendo sido inclusive publicados na revista Science e objeto de várias matérias jornalísticas.

Em quarto lugar, é preciso notar que a comparação que o laudo realiza entre a Cachoeira do Avelino e o Eixo da Barragem – com o objetivo de escolher entre eles o local mais provável de origem do Kwaryp – sofre de dois problemas sérios: o primeiro, e mais óbvio, é que a área da barragem já está completamente desfigurada e destruída. Há um estudo anterior realizado no momento do licenciamento da obra, mas ele é apenas citado no laudo, sem qualquer detalhamento. Ou seja, aqui se comparam situações claramente incomparáveis. O segundo problema, menos óbvio, é que, do ponto de vista de uma antropologia da paisagem, esses dois locais formam um complexo integrado e querer decidir-se por um deles é evidentemente um artifício retórico e não científico.

Apesar dos problemas que apontamos no levantamento arqueológico, ele ao menos produz algum conhecimento sobre a região. Há um primeiro mapeamento que já aponta numa direção clara. Todos os dados apresentados no laudo da Documento, tendem a corroborar o que já afirmávamos em laudo ao Ministério Público Federal do Mato Grosso, no ano de 2004, com base apenas no conhecimento oral dos índios. A saber: a)que a área a montante, desde a fronteira sul do Parque Indígena do Xingu até a barragem é território tradicional xinguano; b)que Sagihengu e Kamukwaká constituem os pontos limites desse território, e seu caráter sagrado está associado a essa função. Eles marcam a fronteira entre o complexo xinguano e os povos jê do Brasil Central.

O levantamento trouxe evidências arqueológicas de ocupação densa ao longo do Culuene, bem como confirmou uma detalhada cartografia indígena. Embora não tenha sido feita uma análise cuidadosa da cerâmica, o estudo sugere que essa região foi palco do encontro de diferentes tradições, provavelmente uma associada aos xinguanos e outra aos povos de língua macro-jê. Os dados, portanto, indicam tratar-se mesmo de uma área limítrofe, inclusive do ponto de vista ecológico, cuja importância cultural foi marcada por meio de sítios naturais com características particulares: um abrigo rochoso (Kamukwaká) e um complexo de cachoeiras e lajedos (Sagihengu). E a palavra correta aqui é mesmo esta: complexo. Como nossos estudos no Alto Xingu vem mostrando, a cartografia indígena e a construção da paisagem não são feitas de marcos isolados, mas de complexos interligados não apenas por estradas concretas, como também por narrativas míticas.

Finalizo, enfim, com um alerta: é preciso cuidar para que a ciência não seja utilizada de forma a obscurecer nossa compreensão dos problemas socioambientais concretos. Ela não deve ser mais um ruído em nossa democracia imperfeita. A ciência, evidentemente, não é absolutamente neutra – mas há princípios éticos que regem a atividade, assim como há procedimentos metodológicos que devem ser seguidos. Especialistas e especialidades não podem ser improvisados. Trabalhos cuidadosos não podem se dar a toque de caixa.

É preciso tomar muito cuidado com a “ciência de contrato”, pois ela facilmente se sobrepõe ao contrato com a ciência. Por isso, sugiro à Associação Brasileira de Antropologia, à Sociedade de Arqueologia Brasileira, à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e à Academia Brasileira de Ciência, que iniciem uma discussão profunda sobre o problema, que atinge hoje não apenas a antropologia e a arqueologia, mas toda a construção do conhecimento científico no país.

*Carlos Fausto é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional (UFRJ) e pesquisador do CNPq. Realizou pós-doutorado no Laboratoire d'Anthropologie Sociale (Collège de France/CNRS) e foi professor-visitante na École Pratique des Hautes Études, na École des Hautes Études en Sciences Sociales e na Universidade de Chicago. Desenvolve projetos científicos em colaboração com o Musée de Quai Branly, a Universidade da Flórida e o Max Planck Institut Für Psycholinguistik. Realiza pesquisas na Amazônia desde 1988, tendo publicado vários livros e artigos sobre povos indígenas, no Brasil e no exterior.

 
 

Fonte: ISA – Instituto Socioambiental (www.isa.org.br)
Assessoria de imprensa

 
 
 
 
 
 

 

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