Na noite de 19 de dezembro, Carlito
foi assassinado a tiros, de tocaia, quando chegava em
sua casa, na cidade de Aripuanã, em Mato Grosso,
distante 976 quilômetros de Cuiabá. Líder
indígena, filho do cacique Mario Parakida, da
aldeia Taquaral, era ele quem negociava a madeira de
seu pai com os madeireiros
A população de Aripuanã,
no Mato Grosso, está com medo. Sente-se desamparada.
Não é para menos. Desde que o índio
Carlito Kaban Cinta-Larga foi assassinado com tiros
na cabeça já se passaram dezessete dias
e muito pouco ou quase nada foi feito para investigar
as circunstâncias do crime.
A caminhonete da qual Carlito tinha descido para abrir
o portão de sua casa ao ser assassinado continua
no mesmo lugar, sem vistoria e sem que qualquer perícia
tenha sido realizada. Um inquérito foi instaurado,
um delegado da Polícia Civil esteve na cidade
tomando vários depoimentos e foi-se.
Tensão e medo
Até hoje, 5 de janeiro, a Polícia
Federal não havia enviado peritos ao local do
crime. "As coisas estão mal-paradas por
aqui, muito tensas. Parece que qualquer pessoa pode
ser morta sem que nada aconteça", relata
a indigenista Maria Inês Hargreaves. Ela estava
em Aripuanã terminando a implantação
de um projeto de saúde quando o assassinato aconteceu.
Por conta disso, adiou sua volta à Brasília.
Distante 976 quilômetros da capital Cuiabá,
Aripuanã tem pouco mais de 14 mil habitantes
e destes cerca de 1200 são índios. Em
2001, Aripuanã foi desmembrado em dois municípios,
dando origem ao município de Colniza. Ambos somam
65 mil quilômetros quadrados. Há quatro
terras indígenas (Tis) em Aripuanã e a
aldeia de Carlito, a Taquaral, localiza-se na TI Aripuanã.
Ali existem 268 índios dispersos ao longo de
11 aldeias em uma área de 1000 mil hectares.
Líder indígena era negociador
duro
Filho do cacique Mario Parakida Cinta-Larga,
Carlito tinha 28 anos, era pai de um filho de dois anos
e sua mulher, que não é índia,
está grávida. Ela é testemunha
da emboscada e está apavorada.
"Todas as aldeias Cinta-Larga comercializam madeira
e funcionam com o dinheiro que recebem por conta disso.
Carlito negociava a madeira do pai Parakida", conta
o antropólogo João Dal Poz, da Universidade
Federal de Mato Grosso, que há 20 anos trabalha
com os Cinta-Larga. Dal Poz acredita que a morte de
Carlito foi queima de arquivo. "Ele era um negociador
duro com os madeireiros e sabia demais."
Denúncias contra exploração
ilegal de madeira
Em setembro de 2001, Carlito fizera
denúncias ao Ministério Público
Federal contra a exploração ilegal de
madeira em aldeias indígenas da região.
Aliás, pouco resta ali de madeira nobre. "O
mogno já acabou e a cerejeira e o ipê também
estão escasseando", constata Dal Poz.
Depois das denúncias, a Polícia Federal
mandou uma equipe à região para investigar
mas não encontrou ninguém. Os agentes
acharam apenas uma balsa e a afundaram a tiros. De pouco
adiantou, já que na semana seguinte a balsa estava
de novo em funcionamento.
Dias depois desse episódio, Parakida saiu para
caçar com o povo da aldeia e encontrou equipamentos
para extrair madeira como um trator skid. Sem hesitar,
o grupo tocou fogo neles provocando a fúria dos
madeireiros, que passaram a ameaçar Parakida
de morte. "Porém, em vez do pai, o assassinado
foi o filho, que era o negociador", diz Dal Poz.
Secretário de Direitos Humanos
vai pedir providências
Diante do descaso das autoridades,
as pessoas estão assustadas, abandonadas à
própria sorte e temem o pior. Na sexta-feira,
dia 4 de janeiro, a reportagem do ISA procurou insistentemente
por autoridades da Polícia Federal em Mato Grosso,
para saber as providências que estavam sendo tomadas,
mas em função das festas natalinas não
encontrou quem pudesse prestar informações.
Mas, conseguiu falar com o Secretário de Estado
de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça,
em Brasília, Paulo Sergio Pinheiro, que relatou
já ter pedido informações por escrito
às autoridades competentes do Estado de Mato
Grosso. “Segunda-feira (07/01) vou falar com o ministro
Aloysio Nunes Ferreira”, afirmou. Paulo Sergio Pinheiro
quer providenciar rapidamente o envio da Polícia
Federal e de técnicos ao local e verificar o
andamento do inquérito. “Também vou levar
esse caso à próxima reunião do
CDDPH, que deverá ocorrer depois de 20 de janeiro”,
garantiu o secretário.
Enquanto isso, só resta esperar que nada mais
trágico aconteça em Aripuanã. Lideranças
indígenas, vereadores e autoridades do município
encaminharam em 24 de dezembro um abaixo-assinado (que
em breve estará disponível no site do
ISA para ser assinado por outros) ao presidente da Funai,
Glênio Perez, solicitando providências.
“Com a morte de meu sobrinho estamos perdidos, sem assistência.
Não sabemos quem foi, como foi”, conta Paulo
Kaban Parakida, com quem a reportagem do ISA conversou
por telefone. “Meu irmão só fala em vingar
o filho e em morrer e a polícia daqui não
tem como investigar, precisam de ajuda”.
Inês Zanchetta
Mais um massacre
Sobre o caso do assassinato de Carlito
Kaban Cinta-Larga, o antropólogo João
Dal Poz escreveu o texto que reproduzimos abaixo:
Os territórios dos povos
Cinta-Larga, Zoró, Gavião e Suruí,
nos estados de Rondônia e Mato Grosso, vêm
sendo saqueados por firmas madeireiras, praticamente
impunes, há quase vinte anos. Sem planos de manejo
ou medidas de controle ambiental, nunca lhes faltou,
todavia, autorizações e guias fiscais
para o transporte, o comércio interestadual e
até a exportação das tábuas
e toras de mogno, cerejeira, angelim, ipê e demais
madeiras nobres ali extraídas de forma criminosa.
Desde 1987, quando diversos contratos irregulares foram
assinados pela própria FUNAI, então sob
a presidência de Romero Jucá, atual senador
pelo PSDB de Roraima, a omissão, a conivência,
a corrupção e a extorsão passaram
a dominar as instâncias locais dos órgãos
federais e estaduais, sujeitando seus dirigentes e funcionários
aos interesses predatórios dos madeireiros. Ao
longo de todos esses anos nem a FUNAI, o IBAMA ou as
Secretarias de Fazenda tomaram qualquer medida eficaz
para impedir o aliciamento das lideranças indígenas,
os danos ambientais e o esbulho do patrimônio
público.
O resultado não poderia ser mais trágico,
em todos os sentidos. O alcoolismo, as drogas, a prostituição,
a desnutrição e a desagregação
social vêm solapando a vida comunitária
e as tradições culturais dos povos indígenas.
E a degradação ambiental pode abater mais
de 3,5 milhões de hectares de floresta amazônica,
se providências urgentes não forem tomadas.
Estima-se que a maior parte da madeira extraída
nos municípios de Juina e Aripuanã seja
oriunda das terras indígenas. Os empresários,
comerciantes e políticos envolvidos são
bem conhecidos; alguns deles já foram inclusive
denunciados a autoridades policiais ou apontados em
notícias de jornal.
O brutal assassinato de Carlito Kaban Cinta-Larga, na
cidade de Aripuanã (MT), na noite de 19 de dezembro
último, reproduz no século XXI a série
de violências que tem marcado a história
das relações da sociedade brasileira com
os povos indígenas. Em particular, faz recordar
o tristemente célebre "massacre do Paralelo
11", promovido em 1963 por seringalistas contra
uma aldeia dos Cinta-Larga, às margens do rio
Aripuanã. Trata-se no presente caso, porém,
não apenas de uma tentativa de "limpar a
área" de obstáculos ao saque das
riquezas naturais dos territórios indígenas,
mas provavelmente uma "queima de arquivo",
já que Carlito Kaban conhecia profundamente os
meandros das atividades ilegais de exploração
madeireira naquela região. A almejada paz, tão
distante no Oriente Médio e em outras partes
do mundo, infelizmente falta-nos também aqui
no Brasil!