701.462 brasileiros se auto-identificaram
como "índios" aos recenseadores
do IBGE em 2000. Isso significa um aumento surpreendente,
o dobro do total apurado pelo Censo de 1991. Como
explicar?
Só em 1991, o questionário da amostra
do censo demográfico do IBGE incluiu a categoria
“índio” na variável cor da pele, acrescentando-a
às tradicionais categorias de “preto”, “amarelo”,
“branco” e “pardo”. Todas são categorias
excludentes de auto-identificação,
à disposição dos entrevistados
por amostragem.
Antes de 1991, os que se auto-identificavam como
índios eram incluídos pelo IBGE na
categoria “pardos”, mimetizados nessa categoria
residual criada para classificar aqueles que não
fossem brancos, pretos ou amarelos. Os países
que realmente querem conhecer a composição
étnica da população fazem censos
específicos para cada etnia, pelas línguas
faladas, por exemplo, como ocorre no México.
Nos Estados Unidos, são realizados censos
por etnias específicas nas quais os American´s
indians se enquadram como Sioux , Crow etc. Há
outros casos em que são feitos censos específicos
para as diferentes etnias, como no Paraguai, Colômbia
e Venezula.
No Brasil, o questionário do censo demográfico
do IBGE de 2000 não contempla a questão
da etnia. Portanto, não dá para saber
se, de fato, os que se auto-classificaram como “índios”
no censo 2000 reconhecem vinculação
específica a uma etnia ou são apenas
"índios genéricos".
Certamente a explicação para a duplicação
da população que se considera indígena
nos dez anos entre os censos é uma composição
de fatores que inclui: (a) o crescimento demográfico
real da maior parte das 218 etnias sobre as quais
há informações confiáveis
mesmo através de outras fontes que não
o IBGE; (b) o fato de que populações
indígenas urbanas que normalmente escapam
aos censos tradicionalmente feitos para povos indígenas
específicos se declararam como tais aos recenseadores
do IBGE; (c) o aparecimento de um contingente de
pessoas que se classificaram genericamente como
“índios”.
Parte daqueles “índios” recenseados nas cidades
pode estar inflacionando os cômputos finais
do IBGE, pelo fato de que hoje em dia se pode observar
o fenômeno da multilocalidade de alguns povos
indígenas, os quais mantêm um domicílio
na cidade e outro na comunidade situada dentro de
uma terra indígena, por exemplo. Isso pode
ter causado dupla contagem.
Mesmo considerando tudo isso, faltam explicações
ao fato novo que os dados preliminares do IBGE revelam.
As informações que o ISA vêm
divulgando permanentemente sobre populações
indígenas baseiam-se em um conjunto de recenseamentos
completos feitos em campo por diferentes fontes
e referem-se apenas a povos indígenas específicos,
que se reconhecem e são reconhecidos como
tais. Frequentemente, a parte da população
que se encontra fora das aldeias e das terras indígenas,
vivendo em cidades, sobre as quais há estimativas
vagas, costuma escapar da contagem desses censos
étnicos. Porém, mesmo as estimativas
mais otimistas, nunca passaram de 550 mil. Portanto,
o patamar de 700 mil divulgado agora pelo IBGE é
uma novidade que merece explicações
apropriadas, o que somente será possível
com análises dos dados decupados por localização,
por exemplo.
Enquanto esses dados não vêm, vale
especular sobre o que poderia explicar esse aumento
surpreendente: o Brasil viveu na última década
um tempo de valorização étnica,
que teve início com o crescimento do movimento
indígena pós- Constituição
de 1988, passou pelos 500 anos da América
e do Brasil.
Pode-se somar a isso o possível impacto da
divulgação dos resultados de pesquisas
genéticas no imaginário da população.
Uma pesquisa para identificar o "DNA dos brasileiros"
feita na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
cujos resultados foram amplamente divulgados pela
mídia, revelou que cerca de 45 milhões
de brasileiros têm descendência indígena.
Além do mais, desde 1999, com a implantação
de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas
em todo o país, pode-se supor que uma onda
de expectativa de acesso diferenciado a serviços
médicos possa ter animado muita gente declarar-se
"índio". Esse ambiente pode reforçar,
por vários caminhos, a "síndrome
da avó indígena" o que, de resto,
seria tão legítima quanto o movimento
de descendentes italianos de quarta geração
que buscam obter passaporte europeu na esperança
de facilidades para uma vida melhor.
Marta Azevedo e Fany Ricardo