Artigos reunidos
em livro que acaba de ser publicado procuram desvendar
como 16 sociedades indígenas contemporâneas
da Amazônia (*) compreendem o contato com
os brancos.
Leia a seguir, a apresentação
que a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha
escreveu, resumindo o conteúdo da obra organizada
pelos antropólogos Bruce Albert e Alcida
Rita Ramos.
"Os sinais precursores são objetos manufaturados
e germes. Antes mesmo do contato em carne e osso
com os brancos, trava-se uma guerra biológica:
não é de espantar que brancos e doenças
fiquem indissoluvelmente ligados.
É um remake permanente. Alguns grupos viveram
o roteiro há séculos, outros estão
só nas primeiras cenas. Mudam os trajes,
os atores e a linguagem. Como a tragédia
clássica, essa que não se repete como
farsa, o primeiro contato é um drama que
se entende em qualquer época.
Daí em diante, tudo é particular:
cada uma das sociedades indígenas elabora
à sua maneira e em vários registros
sua entrada na modernidade. Em pensamento, palavras,
ações e omissões, cada uma
participa da construção de sua história,
nossa história.
Por várias vezes, em lugares e momentos diferentes,
grupos indígenas declararam ter "pacificado
os brancos", arrogando para si a posição
de sujeitos e não de vítimas. "Pacificar
os brancos" significa várias coisas:
situá-los, aos brancos e aos seus objetos,
numa visão de mundo, esvaziá-los de
sua agressividade, de sua malignidade, de sua letalidade,
domesticá-los em suma; mas também
entrar em novas relações com eles
e reproduzir-se como sociedade, desta vez não
contra, e sim através deles, recrutá-los
em suma para sua própria continuidade.
Todos esses aspectos - a cosmologia, a história
e a política -, contrariamente ao que se
usa fazer, são tratados aqui de forma integrada.
É essa uma das grandes contribuições
deste livro, que fará dele uma referência
obrigatória.
Dezesseis sociedades do Norte da Amazônia
estão aqui falando de nós fazendo
sua própria antropologia. De nós.
De nós e de nossas emanações.
E o projeto deste livro é entender essa antropologia
dos outros, é colocar-nos como objetos de
outras subjetividades, é compreender o modo
pelo qual somos compreendidos.
A antropologia da última década andou
muito entretida com seu umbigo, tentando entender
seu entendimento dos "outros", relegados
para tanto à posição de ectoplasmas
de nossos próprios preconceitos e imaginação.
Este livro magistral, esperado há vários
anos, é um alívio. Mostra como é
fecundo se analisar o trabalho simbólico
e político de sociedades indígenas,
trabalho que resulta em suas "cosmologias do
contato" e na forma específica pela
qual se apropriam da história e do mundo
contemporâneo. "
Pacificando o branco - Cosmologias
do contato no Norte-Amazônico, organizado
por Bruce Albert, do Institut de recherche pour
le developpement (IRD) e Alcida Rita Ramos da Universidade
de Brasília, é uma co-edição
da Editora da UNESP (Universidade Estadual Paulista),
do IRD (Institut de recherche pour le developpement)
e da Imprensa Oficial do Estado, 2002, São
Paulo, 531 páginas.
(*) Baniwa, Desana, Arapaço, Ticuna, Matis,
Kaxinawá, Wakuénai, Yanomami, Makuxi,
Wapishana, Waiwai, Waimiri Atroari, Wayana-Aparai,
Waiâpi, Arara, Kali´na