Artesanato com subprodutos da Fauna
silvestre versus Festival
"Bateram os tambores na Baixa,
jaraqui subiu o rio.....", sinais tradicionais
que marcavam o início dos preparativos do
maior festival folclórico do Brasil - o Festival
dos Bumbás de Parintins. Nos últimos
dez anos muita coisa mudou. Muita coisa cresceu
neste festival, que tomou dimensões mundiais.
Hoje, boi já é o ano todo. A criatividade
dinamizou as alegorias e o respeito ecológico
sintetizou as plumagens e penas em um gesto de grande
amor dos bumbás pela natureza amazônica.
Todavia, aqueles mesmos sinais, infelizmente hoje,
representam um início de outro festival.
Nas águas escuras do Marao, do Andirá,
do Uaicurapá e do Alto Nhamundá, nos
lagos turvos e barrentos do Macuricanã, do
Caldeirão e do Macurani, nas águas
revoltas do Amazonas, nos meandros das Ilhas das
Onças, dos Guaribas, por entre os paranás
do Mamuru e do Caburi, o que se ouve e o que se
sente é um lamento de morte, que mancha as
águas de um vermelho escuro de sangue talhado.
Neste período, araras, papagaios, maracanãs,
garças, socós, piaçocas e gaviões
tentam, em vão, escapar da sanha daqueles
que, sem uma melhor alternativa de renda, alimentam
a verdadeira indústria que se formou pela
especulação do sonho de "voltar
a ser índio" - ilusão criada
no turista que vai a Parintins.
Um verdadeiro extermínio vem sendo praticado
sistematicamente todos os anos, para alimentar a
indústria de cocares, brincos, colares, e
toda gama de artesanato feito com subprodutos da
fauna, vendidos aos milhares de turistas que participam
da saga dos bois. Se por um lado os bois cresceram,
se conscientizaram, tornaram-se ecológicos
não só nos poemas e toadas mas e fundamentalmente,
em seus atos, passando a confeccionar suas indumentárias,
cocares e fantasias com material sintético
ou penas e plumas de aves domésticas, por
outro lado, a demanda criada pelos artefatos que
transmutariam o turista manauara ou estrangeiro
em "índios de três dias"
incrementaram em muito a indústria local
de artesanato.
Culturalmente, no Amazonas além de algumas
tribos isoladas, apenas os Hyskarianos e os Wai-wai,
tinham a tradição da arte plumária.
Há dez anos atrás participavam das
festividades em Parintins os índios Sateré-Mawé,
por já estarem mais adaptados na lida com
os brancos. Nesta época o artesanato que
se via era o de colares, brincos de miçangas,
sementes, madeira e, no máximo, pequenas
plumas (provavelmente restantes de aves eventualmente
consumidas). A grande procura por cocares cada vez
maiores e mais enfeitados de penas, levou os Sateré-Mawé
a descaracterizarem seu artesanato (os cocares cada
vez mais se assemelham aos dos Sioux americanos)
e a negociarem com os Hyskarianos sua própria
cultura, trazendo-os para o festival, amparados
pelos próprios órgãos oficiais.
Longe de entrarmos em discussões filosóficas
sobre aculturamento e comercialização
das tradições, reflitamos sobre as
conseqüências que esses fatos trouxeram
para o meio ambiente.
No período que antecede ao festival os índios
não caçam mais para sua subsistência
e não procuram mais a proteína animal,
mas buscam sim, as penas, plumas, bicos, dentes
e peles dos animais nativos de seus territórios.
Além do considerável aumento na caça
realizada pelos índios, a "industrialização"
dos artefatos indígenas tornou lugar comum
suas técnicas de fabricação,
resultando num verdadeiro exército de artesãos,
não indígenas, que se aperfeiçoaram
na confecção em escala deste tipo
de artesanato.
Nas várzeas, furos e paranás que cercam
Parintins e os municípios vizinhos de Nhamundá,
Barreirinha e Terra Santa, caboclos sem opção
de renda se apegam às encomendas que estes
artesãos e os lojistas de Parintins lhes
fazem para a caça ilegal de animais silvestres.
O que acontece então, é de fazer chorar
o mais fanático torcedor dos bumbás.
Em nome desta sub indústria do festival,
essas pessoas invadem ninhais, depredam ninhos,
incendeiam árvores, matam filhotes indefesos
ou abatem seus pais. Espécies mais bonitas
e raras são mais valorizadas, mas qualquer
ave está sujeita a levar um tiro neste período,
basta que tenha um pouco de cores em suas penas.
O número de denúncias pelos comunitários
locais, pelos donos de terras e pelos agentes ambientais,
vem crescendo assustadoramente. A indignação
e a revolta dessas pessoas, entretanto, tem passado
desapercebida pelas multidões que perambulam
pela Ilha cantando "Não mate a mata
seu moço, Deus Tupã disse que não...."
ou ainda "La se vai a Saracura fugindo dessa
quentura e não vai mais voltar...",
ou como antigamente, "Silêncio! Toda
selva está chorando, passarinhos só
cantam os seus lamentos de dor..". Com seus
"kits de índio", ninguém
parou para pensar ou se perguntar de onde vêm
tantas penas ? Quem produziu esses dentes? Será
que houve dor e sofrimento dos animais de onde esse
material foi retirado?
A visão ecológica e toda a beleza
da natureza amazônica traduzidas pelo festival
caem por terra. O que nós, amantes da cultura,
das tradições e de toda a grandiosidade
deste festival queremos ? Queremos um festival verde
e ecológico, que siga os passos de nossos
ancestrais indígenas ao não agredir
o meio ambiente, ou queremos continuar com esse
"Festival de Sangue" que invade ninhais,
restingas e beiradões ? Precisamos de enfeites
para ser "índios"? Por que não
nos contentarmos com o caldeirão étnico
que pulsa em nossas veias, e com a alegria de brincar
boi-bumbá?
"Não, não queremos acabar com
o festival!", como aquelas mentes estreitas
e interesseiras dos que ganham rios de dinheiro
com esse comércio que destrói a fauna
e explora índios e caboclos poderão
bradar. Queremos um festival livre de traumas e
de dramas de consciência. Um festival que
cante e viva a conservação da Amazônia,
de seu povo e de suas tradições. Queremos
brincar pulando livres de enfeites, livres de sofrimento
e dor.
Não deixe os filhos da mata morrerem!!!!
Por Paulo Andrade