Panorama
 
 
 

MOVIMENTO DOS SEM HISTÓRIA:
VEJA O ARTIGO ESCRITO AOS PRESIDENCIÁVEIS

Panorama Ambiental
Belém/Pará - Brasil
Outubro de 2002

Há sinais de inteligência na Mídia: nem tudo é domingão do Povão. Pannis et circens. Campeonatos infinitos ou circo e mais circo pegando fogo. Na falta de pão, a floresta de antenas e o riso farto fatal sobe o morro ao alto entre o baile funk de balas e crianças perdidas... Haja Deus e reinos universais para salvar tantas almas penadas/ lesadas!...
Hoje assisti na TV-Cultura do Pará, o jornalista Dirceu Brisola entrevistar o professor de história Carlos Guilherme Mota, da USP; durante emissão do programa Opinião Nacional quando o entrevistado deixou no ar a frase - 'existem os sem história' - que me provoca a expressar esta opinião regional.
O texto aqui é basicamente o mesmo que eu havia mandado aos presidenciáveis de 2002 (sabe Deus se chegou ao destino). Por isto, já me dirijo ao Presidente eleito da República Federativa do Brasil, em busca de uma ação afirmativa em favor da Cidadania dos caboclos ribeirinhos.
Oxalá o Presidente eleito em 2002 (qualquer que seja ele pela boca das urnas) fique na História do futuro como aquele que resgatou o fundamento dos direitos humanos do povo brasileiro na Amazônia, e aboliu assim o mito colonial do "espaço vazio", de infeliz (des)memória.
Dando volta ao passado. No ano de 1783, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira veio de Portugal ao Grão-Pará a fim de realizar a monumental Viagem Filosófica. Sem descansar nem reclamar do Oceano ele iniciou o seu mister pela ilha grande do Marajó. A mesma ilha-monumento natural e arqueológico "descoberta" por Pinzón em 1500, talvez "achada" por Duarte Pacheco Pereira em 1498; antes de Cabral no Descobrimento de Porto Seguro... Em Marajó, o sábio viajante declarou o perigo da travessia da baía - a qual os caraíbas tupinambás da demanda da Terra sem Mal, impedidos de atravessar pela braveza da correnteza e das ondas, assim que das armas tapuias inimigas, chamaram-na com temor o Pará-Uaçu; o "grande mar" de água doce (em português Grão-Pará).
Daquela arriscada travessia do século XVIII resultou, a Notícia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó como separata da Viagem Filosófica. Primeiro passo do grandioso empreendimento científico que até hoje está longe de ter chegado ao fim. Documento de iniciação científica da Amazônia em seu portal marítimo-fluvial do tempo arqueológico emendado pelo sentimento de filhos da terra Tapuia. E, finalmente, pela conseqüência da razão dos visitantes. É ver/ler para crer.
Esta Notícia Histórica do encontro ultramarino das águas do Amazonas com o Atlântico, no Século das Luzes; convém distribuir às escolas do país-continente, junto doutros textos da amazonidade. Os quais, muitas vezes, restam entregues à troça das traças sem divulgação pública. Enquanto alguns patriotas reclamam da contrapropaganda e de forjados mapas estrangeiros que plantam a apartação da Amazônia, disseminando boatos da internacionalização do Trópico Úmido.

Senhor Presidente eleito,

Permita Vossa Excelência ao caboclo que vos fala dar à República má notícia: a grande ilha do Marajó - coração pulsante da amazonidade - tem um dos piores índices de desenvolvimento humano (IDH) das Américas. Quando deve ser ela salão de visitas da Amazônia oriental, se houver doravante mais atenção da pátria amada à brava gente marajoara.
Abram a Ilha sem medo com selo (e zelo) da UNESCO. Patrimônio da Humanidade. Por que não? O Brasil não sabe a história desta Ilha invicta, todavia humilhada pelos séculos coloniais, inclusive este começo do século XXI. Se os brasileiros conhecerem o seu Norte, com certeza o Brasil proclamará sobretudo sua principal condição de país amazônico.
O plano-piloto de Brasília é declarado patrimônio mundial, não apresenta ele por isso risco algum à soberania nacional, mas pelo contrário a reforça perante o mundo. Também a Torre Eiffel na França, por exemplo, goza justamente desse ambicionado título universal. Então, não é na verdade a presença estrangeira na Amazônia ou a avassaladora perspectiva das multinacionais yankees na ALCA, o problema da nossa vulnerabilidade nacional. Mas, sim a ausência na Amazônia (e noutras regiões periféricas do arquipélago Brasil) de cidadania das populações tradicionais duma região cobiçada por potências externas antes mesmo de 1500. Com outras palavras: índios, quilombolas e caboclos prefigurados como súditos no antigo Império do Brazil - por motivo de segurança nacional -, deveriam já ser Cidadãos brasileiros plenos, desde 1930 (para não falar na "derrota" da Cabanagem de 1835/40).
O que sabem os brasileiros (notadamente o Congresso Nacional) sobre a fronteira norte, a respeito deste seu Extremo-Norte, que o maior escritor da Ilha do Marajó, Dalcídio Jurandir; desenhou no romance-mapa, num grande painel da Amazônia inteira aqui retratada no espaço eco-cultural do Ver-o-Peso?
Neste fim e meio do mundo, ao redor de 26 de janeiro de 1500, o navegador espanhol Vicente Pinzón inaugurou a história do Brasil de modo infame: capturou logo na chegada os primeiros "negros da terra" (escravos indígenas) dentre índios marajoaras. Um infeliz exemplar de mucura fêmea com seus filhotes mortos em alto mar, foi no embrulho chamado de animal monstruoso. Sendo este marsupial da ilha de Marinatambal (Marajó), a primeira notícia biogeográfica da América do Sul.
Pois bem, há ao menos três coisas na Ilha do Marajó cuja ignorância e desmazelo pátrio clamam aos céus:

A primeira delas é a dívida histórica do Brasil à gente marajoara na esquecida Paz do rio Mapuá de 26 de agosto de 1659, negociada sabiamente pelo padre Antônio Vieira e os Sete Caciques do Marajó. Com esta paz e vassalagem ao rei Dom João IV de Portugal, entre graves riscos e incertezas buscadas; houve termo do invencível bloqueio dos índios das Ilhas à colonização portuguesa no vale amazônico.
Foi assim que pôde se encerrar o perigoso comércio entre nheengaíbas e holandeses, ao mesmo tempo que Portugal perdia aos invasores suas colônias na Ásia e tinha o Nordeste brasileiro sob ocupação. E o perigo fora tanto que, na Europa, o próprio Vieira em posto diplomático na Holanda não trepidou em sugerir ao embaixador dom Francisco Coutinho, a entrega de Pernambuco ou o Maranhão para conservar o resto do Brasil e a independência do reino lusitano. Então, isto não vale nada para estar neste silêncio mato adentro, entregue às malárias e roncos dos guaribas pelos estreitos de Breves, enquanto a Universidade brasileira ainda soletra o velho ditado mazombo da ex-colônia portuguesa? Pois, era mais valioso fundar o futuro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa e revitalizar a amizade dos povos luso-brasileiros e ibero-americanos, assim eu creio.
Sem aquela longínqua e esquecida paz de 1659, entre brancos e índios; não estaríamos aqui eu e o leitor a nos inquietar de "Amazônia" nenhuma... Pelo menos da minha parte, e os mais "caboclos brasileiros" jamais teríamos vindo ao mundo... Se isto não é História, então o que é?
A Paz de 1659 é base autóctone do uti possidetis de mais de mil anos antes de Jesus Cristo. Transmitido aos chefes lusitanos, praticamente em comodato histórico pelos chefes indígenas da foz do Amazonas, para sustentação jurídica da posse luso-brasileira de 10000, ancorada no tempo arqueológico da amazonidade.
Assim, o Brasil gigante esteve a ponto de morrer no berço da sua natural ancestralidade. Salvaram-no da mortalidade infantil o missionário João de Souto Maior e o diplomata jesuíta Antônio Vieira, neto de uma "serviçal mulata" para não dizer negra africana, doméstica do solar do Conde de Unhão.
Falta agora, para definitiva consolidação da história do povo brasileiro, recuperar e tombar nos limites de Anajás e Breves, nas profundezas da Ilha invicta, o sítio histórico da Igreja do Santo Cristo. Lugar de memória do acordo entre índios tupis e nuaruaques desavindos desde a pré-história, harmonizados por via deste encontro com os colonizadores debaixo da bandeira da Restauração da independência portuguesa.
A despeito da famosa viagem de Pedro Teixeira a Quito, a ocupação lusa que não marcharia sem arredar antes - por bem ou por mal - a feroz resistência dos Nheengaíbas. Cuja conquista talvez ficasse embargada para sempre, não fosse a arriscada negociação diplomática entre o Colégio de Santo Alexandre e os Sete Caciques nheengaíbas. Foi assim que se abriu o portão do rio das amazonas à soberania de Portugal transmitida depois ao Brasil independente pela Adesão do Pará em 1823.

O segundo escândalo é a formidável dívida ao desconhecido bon sauvage da conquista do rio das amazonas. Cujos herdeiros vegetam agora, na pele dos caboclos seus descendentes, no marasmo social e na marginalidade econômica entregues ao deus dará. Fato histórico ignorado pelo Brasil moderno ingrato da sua enorme territorialidade possibilitada pelos arcos de guerra do povo Tupinambá.
E que se refere à falta de tombamento do sítio Araquiçaua (literalmente, "o lugar onde o sol ata sua rede de dormir"), no ciclo mítico da Terra sem Males (tema da Campanha da Fraternidade 2002, da CNBB). Este sítio, na foz do rio Arari, é um dos vários lugares do "porto do Sol". Que, no passado pré-histórico atraíram, ao longo do caminho dos séculos, os caraíbas do Sul do país do pau-brasil até o destino final da utopia selvagem, além da linha tordesilhana nos confins da Amazônia.
Foi o lugar onde o mito naufragou ou foi engolido pela Cobra grande. Mas a Terra sem mal (aspiração universal de toda a humanidade) não morreu. No futuro, através da ciência e tecnologia do Trópico Úmido, ela ainda poderá ser achada. Falam da mitologia, por diversos modos: Curt Nimuendaju, Métraux, Florestan Fernandes, Pierre e Hélène de Clastre, Darcy Ribeiro, Ronaldo Vainfas e outros. Precisamos agora continuar a saga dos antepassados aborígenes pela conexão da Etnologia com a História, através da ponte de uma política eco-cultural inovadora e consistente.

Por fim, o mais triste escândalo e mágoa da gente marajoara é o assalto e ruína do nosso patrimônio arqueológico. Pretérita certidão de nascimento e de identidade da mais brilhante civilização neotropical em terras do Brasil.
Por isto, todo nosso afeto ao Museu do Marajó. Obra comunitária malsinada, nascida da humildade e valentia da vila de pescadores do Jenipapo, na margem do grande Lago Arari - berço da Civilização Marajoara - por iniciativa de um obstinado italiano de nascimento, marajoara de coração e corpo inteiro: Giovanni Gallo. Por antigo édito, a pedra colonial será salva: mas, a idade do barro ao barro retornará....
Porém, o tempo arqueológico vive em nosso inconsciente coletivo e revigora a civilização marajoara a toda hora. É a Cobra grande, a telúrica Tuluperê dos Wayaná, a maruana suspensa no círculo cosmo-equatorial pelo cinturão mágico de asas de borboleta. Suas grandes datas e acontecimento são as vértebras do espaço-tempo em infinita reconstrução. Surdem-se como ilhas de aluvião que cavalgam e navegam o Rio-Mar em busca do mundo lá fora, com ânsia universalizante da feição neotropical desta terra Tapuia.

Excelência,

A candidatura do Ver-o-Peso à lista mundial da UNESCO deve ter vosso apoio. Mas, sem Marajó à ilharga ela há de ficar faltando o principal da amazônica proeza. Só a incorporação do Marajó à lista do patrimônio da humanidade nos livrará da humilhação arqueológica no Norte. Região saqueada e desmemoriada, enquanto cheia de sonho e esperanças.
Quem sabe, estas varzeanas letras marajoaras possam chegar às cumeadas das Águas Emendadas do planalto brasiliense. Símbolo da integração continental pelos grandes rios: unir as bacias Amazônica, Platina e do São Francisco. Despertar a alma brasileira e o espírito sul-americano. Encurtar a distância que separa Brasília dos Brasis. Fazer deste arquipélago de regiões dispersas, um País amazônico.
Enfim, a globalização não é apenas um bode preto de cornos dourados. Ela também pode servir para dar ao mundo as notícias da Ilha Grande do Marajó, eu creio. Antes mesmo da inauguração da Alca e da construção da ponte sobre o rio Oiapoque ou de Vicente Pinzón, na lição do Barão do Rio Branco; em nome da cooperação da Europa com o Mercosul no Amapá. E quem diz Amapá deve pensar logo em Trinidad e Guianas, onde Marajó se enlaça pelo fato do circum-Caribe.
Com a lembrança do Timor (onde a solidariedade do Brasil e Portugal foi levar favores da ONU) e o sentimento da despedaçada civilização marajoara, sigo pensando estas coisas antes de me calar para sempre. Como os antepassados que jazem no frio do esquecimento no úmido silêncio dos tesos de camutins, nas cabeceiras de rios e campos desconhecidos entregues ao abandono. Entre contumazes contrabandos, roubos, pirataria, devastação ecológica, febres de malária e pisoteio de rebanhos de búfalos indiferentes.
Fonte perene do desesperado êxodo que se transforma em invasão, filas sem fim nos ambulatórios, cadeias superlotadas, assaltos à luz do dia, escolas que não bastam e nem ensinam, lixo em quantidade disseminando moléstias por baixadas e favelas. E, ainda, a imigração clandestina transfronteiriça de sempre... Tudo isto numa ilha maior do que a Bélgica e a Holanda.
O marco da fronteira do Oiapoque reza o seguinte: aqui o Brasil começa. O medo é que sem esta leitura em Brasília, pelo mesmo começo o gigante possa se acabar.
Respeitosamente me despeço de Vossa Excelência, animado de que esta notícia possa seguir caminhos imprevistos, como a garrafa de um náufrago confiada à corrente; e chegando a bom destino sejam as vossas ordens o melhor porto que se poderia esperar.

Belém do Grão-Pará, Amazônia, 1º de outubro de 2002

Fonte: José Varella

 
 
 
 

 

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