Internado
desde o dia 14/11 no Hospital Albert Einstein, em
São Paulo (SP), o mais célebre indigenista
do Brasil, conhecido como o "Pai do Xingu",
faleceu nesta quinta-feira de falência múltipla
dos órgãos. O enterro será
realizado amanhã, às 14 horas, no
Cemitério do Morumbi.
Orlando Villas Bôas morreu
aos 88 anos, tendo vivido mais de três décadas
na região que hoje abriga o Parque Indígena
do Xingu (MT), dos quais é um dos idealizadores.
Em 1999, o Instituto Socioambiental (ISA) apresentou
ao indigenista os resultados do Diagnóstico
Socioambiental dos Formadores da Bacia do Rio Xingu.
O sertanista se mostrou perplexo e bastante preocupado
com os resultados do estudo que demonstram que,
devido à ocupação indevida
do entorno, com o estabelecimento de atividades
agropecuárias e o cultivo de soja, entre
outros impactos socioambientais, o parque se tornará
insustentável a longo prazo. Em entrevista
à Agência Estado, Márcio Santilli,
integrante do Conselho Diretor do ISA, comenta:
"em relação ao Orlando, nós
do ISA já levamos à frente seu compromisso
de preservar o Parque Indígena do Xingu,
uma de suas heranças para as futuras gerações
deste país".
Do interior de SP ao Xingu
Nascido em Santa Cruz do Rio Pardo
(SP), Orlando passa a viver em meados da década
de 20 na capital do Estado. Com a morte dos pais
em 1941, busca uma oportunidade para voltar ao interior.
Em junho de 1943, o ministro João Alberto
Luís de Barros, da extinta pasta de Coordenação
e Mobilização Econômica, anuncia:
"no próximo 15 de julho partirá
uma grande expedição para a Serra
do Roncador, rumo às cabeceiras do Xingu,
abrindo, pelo interior, o caminho que ligará
a Amazônia ao resto do país".
O projeto integrou a Marcha para o Oeste, parte
do programa de governo do então presidente
Getúlio Vargas, que priorizou a interiorização
do Brasil, que à época abrigava uma
população conhecida de 43 milhões
de habitantes, a maior parte vivendo na faixa litorânea.
Com percurso definido entre Leopoldina (GO) e Manaus
(AM), percorrendo mais de 3 mil quilômetros
do Centro-Oeste brasileiro, a expedição
tinha como principal objetivo construir campos de
pouso, abrir estradas e denifir pontos de colonização.
Desmotivados com o dia-a-dia em São Paulo,
os irmãos Claúdio, Leonardo e Orlando
animam-se com o projeto, tentam integrá-lo,
mas são rejeitados, pois considerava-se que,
como "homens da cidade", não se
adaptariam à vida no mato. Procuravam-se
analfabetos, sertanejos. Inconformados, seguem para
o Mato Grosso, mudam a aparência e conseguem
se juntar à expedição. Iniciam
a participação com trabalhos braçais
e após serem "descobertos" assumem
tarefas administrativas, papel de destaque na "pacificação"
dos índios e a liderança da expedição
a partir de 1949, durante o governo de Eurico Gaspar
Dutra.
Estabelecem contatos amistosos com mais de cinco
mil índios, de 14 etnias. Os povos do Xingu
representam para os Villas Bôas "índios
de cultura pura", que deveriam ser preservados
das frentes de expansão econômica que
estavam sendo inauguradas na região. Neste
sentido, iniciam no começo da década
de 50, com o apoio de Marechal Rondon, do sanitarista
Noel Nutels e do antropólogo Darcy Ribeiro,
entre outros, e forte oposição do
governo e dos fazendeiros de Mato Grosso, uma campanha
para a demarcação das terras indígenas
locais. Quase dez anos depois, em 1961, o trabalho
resulta na criação do Parque Nacional
do Xingu, posteriormente chamado Parque Indígena
do Xingu, por meio de um decreto assinado pelo presidente
Jânio Quadros.
"De todos os contatos, acho que o único
bem que fizemos para os índios do Xingu foi
fechá-los dentro de uma determinada área,
não permitindo que ali se repetisse o que
aconteceu com todos os índios do Brasil",
afirmou Orlando em uma entrevista à imprensa.
"É preciso observar que, com a criação
do Parque Indígena do Xingu, demos impulso
à nossa política indigenista, que
partia da premissa de que os índios deveriam
ser protegidos pelo governo federal das frentes
de ocupação, em parques e reservas
de acesso restrito, para ser gradativamente integrados
à sociedade e à economia do Brasil."
Criação do Parque
Indígena do Xingu
"O Parque Indígena
do Xingu foi um híbrido impensável
à época por misturar proteção
natural e proteção dos índios
numa área de 2 milhões de hectares",
afirma André Villas-Bôas, coordenador
do Programa Xingu do ISA, que, apesar do sobrenome
e do campo de atuação profissional,
não tem parentesco com Orlando. Sobre as
críticas relacionadas ao protecionismo excessivo
aos índios, comenta: "Orlando foi paternalista,
sim. Ele controlava a entrada e saída dos
índios do parque, não queria misturá-los
com brancos, para não colocá-los em
risco, para que não contraíssem doenças,
por exemplo. Mas, devido ao isolamento e à
fragilidade dos índios naquele momento, era
uma proteção que fazia sentido, uma
vez que sua atuação permitiu que esses
povos metabolizassem melhor os impactos da sociedade
branca. Já o Estado se apropriou disso de
uma outra maneira, vendendo o Xingu como o cartão
de visitas do Brasil, quando a situação
dos índios em outras parte do país,
de uma maneira geral, era bem diferente".
Outro fato polêmico relacionado à atuação
dos Villas Bôas como sertanistas do Xingu,
especialmente Cláudio e Orlando, foi a transferência
dos povos Kayabi, Ikpeng, Tapayuna e Panará
para o parque, como se este representasse a única
casa segura para os índios.
Direção do parque,
livros e homenagens
Orlando ocupou a direção
do parque por 17 anos, da data de sua criação
até 1978. Estabeleceu por lá um programa
de assistência médica aos índios
por meio de um convênio com Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), existente até
hoje, e quando conheceu a enfermeira Marina Lopes
de Lima, com quem se casou em 1969 e teve dois filhos
- Orlando Villas Bôas Filho e Noel Villas
Bôas.
Posteriormente, dedicou-se a descrever a experiência
como sertanista e indigenista em artigos e 12 livros,
entre os quais A Marcha para o Oeste - A Epópeia
da Expedição Roncador -Xingu. A Metalivros
e a Agência Estado lançaram em 05/12
O Xingu dos Villas Bôas, publicação
de 200 páginas, com mais de 300 fotos, depoimentos
e textos informativos sobre os irmãos Villas
Bôas e o Parque Indígena do Xingu.
O indigenista recebeu diversas honras acadêmicas,
cidadanias, títulos honorários e homenagens,
como a medalha da Royal Society of London, a medalha
Grau Oficial da Ordem do Rio Branco e a Medalha
de Direitos Humanos, entregue pelo presidente Fernando
Henrique Cardoso. Foi indicado em 1976 para o Prêmio
Nobel da Paz pelo resgate das tribos xinguanas.
Para André Villas Bôas, o grande marco
de Orlando foi o de fazer com que a classe média
brasileira começasse a perceber os índios
de uma outra maneira, num momento difícil,
em que eram vistos como uma coisa do passado, algo
a ser superado.
"O lado bom de Orlando foi se preocupar em
preservar a nossa cultura, demarcar a nossa terra
e começar a unir os povos indígenas
dessa região para uma luta só em defesa
do nosso ecossistema. Se ele não tivesse
essa preocupação, eu e outros jovens,
com certeza, não teríamos uma infância
divertida e uma adolescência tranquila, afirma
Kanawayuri Marcello, professor indígena do
Parque Indígena do Xingu.
Para a sociedade brasileira, Orlando é visto,
de uma maneira geral, como o grande defensor dos
povos indígenas do Brasil.
Depoimentos sobre Orlando Villas
Bôas
Antônio Houaiss (1915-1999),
filólogo, escritor, tradutor e membro da
Academia Brasileira de Letras: "Os brasileiros
de minha idade (e os poucos de mais...) e os de
menos, até os nascituros, não podem
ignorar os ideais que estão enlaçados
com a história do Parque Nacional do Xingu,
nem podem desconhecer a vida-saga dos irmãos
Villas Bôas, cuja devoção à
causa da redenção dos índios
e do desenvolvimento do nosso Oeste é matéria
que deve perdurar no nosso imaginário coletivo.
Deles, já tivemos - além da epopéia
que vêm sendo sua vida e luta - textos esplêndidos.
Isso me garante que estou antecipando entusiasmos
não gratuitos para com as páginas
que se lerão a seguir: é que neles
tudo tem sido amor pela causa dos nossos semelhantes,
com uma compreensão profunda do amor à
natureza não violentada e de esperança
de um futuro menos triste para esta nossa sofrida
raça, digo, gênero, digo espécie,
digo ser, o humano". - Extraído da apresentação
do livro A Marcha para o Oeste - A Epopéia
da Expedição Roncador-Xingu Darcy
Ribeiro (1913-1997), educador, escritor, senador
e membro da Academia Brasileira de Letras: "Orlando,
Cláudio e Leonardo compuseram as vidas mais
extraordinárias e belas de que tenho notícia.
Pequenos-burgueses paulistas, condenados a vidinhas
burocráticas medíocres, saltaram delas
para aventuras tão ousadas e generosas que
seriam impensáveis, se eles não as
tivessesm vivido. Só se compara à
de Rondon a façanha desses três irmãos
que se meteram Brasil adentro por matas e campos
indevassados ao encontro de índios intocados
pela civilização. Usando do subterfúgio
de se fazerem passar por caboclos goianos, conseguiram
incorporar-se a uma expedição oficial
de penetração no centro do Brasil.
Tomaram conta da expedição, transcederam
dela e viveram mais de 30 anos nas matas que que
vão do Xingu ao Tapajós, convivendo
com povos indígenas que eles souberam amar
e respeitar. Entre seus feitos assinala-se a coragem
com que, arriscando suas vidas, atraíram
diversos povos indígenas à civilização.
Triste coisa para estes povos. Menos má,
porém, porque sua pacificação
foi conduzida pelos Villas Bôas, que souberam
defendê-los, garantindo-lhes uma sobrevivência
melhor do que a dos povos chamados ao nosso convívio.
Sua façanha mais extraordinária, a
meu ver, foi a criação, ou recriação,
de todo um povo - os Yawalapitis, que só
existiam dispersos nas várias aldeias xinguanas,
até que os Villas Bôas os juntassem
novamente, para retomarem seu Destino de uma das
caras do fenômeno humano." - Extraído
da apresentação do livro A Marcha
para o Oeste - A Epopéia da Expedição
Roncador-Xingu
José Porfírio Carvalho, indigenista
e coordenador do Programa Waimiri Atroari : "O
que eu destaco no Orlando e no Claúdio é
a dedicação deles em relação
aos povos indígenas. Muito do que temos hoje
devemos a eles, o Parque do Xingu é um exemplo,
é uma vitrine, um espelho que acabou por
criar na sociedade brasileira um espírito
em defesa dos povos indígenas. Por isso,
qualquer referência que se faça ao
indigenismo no Brasil passa necessariamente pelos
irmãos Villas Bôas".
Yanama Kuikuro, professor indígena do Parque
Indígena do Xingu: "Há muito
tempo, antes de Orlando Villas Bôas chegar
aqui no Parque Indígena do Xingu, as aldeias
eram todas longe umas das outras: Kuikuro, Kalapalo,
Mehinaku, Waurá, Aweti, Nahukua, Yawalapiti
e Kamaiurá. Também as aldeias de outros
povos como o Ikpeng, Trumai, Kaiabi, Suyá,
Yudjá e Panará eram longe umas das
outras. Quando Orlando chegou e abriu o posto Jacaré,
começou a ajuntar os povos de cada etnia
próximos ao Jacaré. Orlando começou
a falar para as pessoas de cada povo para não
irem longe, para fazerem aldeias perto umas das
outras. Foi assim que os povos indígenas
foram se familiarizando".
Wary Kamaiurá, professor indígena
do Parque Indígena do Xingu: "A época
de Cláudio e Orlando Villas Bôas foi
boa, mas teve um pouco de ameaça. Naquela
época meu avô era rapaz, ele morava
no posto Jacaré, junto com Orlando Villas
Bôas. No posto Jacaré cultivavam alimentos
como por exemplo: abóbora, banana, melancia,
laranja etc. Meu avô era amigo do Orlando.
Orlando sempre trazia presentes para o meu avô.
Orlando começou a ajuntar os Kamaiurá
no posto Jacaré, os Kamaiurá fizeram
aldeia lá. Orlando começou a estimular
muita festividade. Outras etnias vinham participar
da festa e Orlando também dava muitos presentes
para eles. Nesse tempo aconteceu um pouco de tumulto
entre eles por causa dos alimentos que Orlando cultivava.
Pessoas do povo Kamaiurá começaram
a roubar os alimentos a noite. Orlando foi para
o posto Leornardo e os Kamaiurá mudaram para
o Ypawu. O Jacaré é um lugar sagrado,
faz parte da nossa história".
Kauawayuri Marcelo, professor indígena do
Parque Indígena do Xingu: "O contato
concreto do povo Kamaiurá com homem branco
foi uma fase muito difícil. Porque quando
viram os objetos novos, queriam para eles, por exemplo,
chapéu, roupas, botas, redes, cobertores,
miçangas, facões, machados e sabão.
Mas o Orlando não dava essas coisas de qualquer
jeito. Ele tinha material para o cacique fazer distribuição
na aldeia periodicamente. O pessoal conta que uma
vez um cacique foi solicitar o jipe para levá-lo
com sua família para aldeia, mas o Orlando
mandou-o ir embora a pé, alegando que se
andassem só de carro de posto para aldeia,
ou vice-versa acabariam se acostumando. Só
liberava o jipe para atender o paciente. Quer dizer,
o Orlando era muito rigoroso na sua administração.
Ele não deixava os kamaiurá usarem
roupa, dizendo para não acabar costumes,
festas. Permitia só uso de anzol, linha,
fósforo e algumas coisas. Mas eu achei o
lado bom do Orlando de se preocupar em preservar
a nossa cultura, demarcar a nossa terra e de começar
a unir os povos indígenas dessa região
para uma luta só em defesa do nosso ecossistema.
Se ele não tivesse essa preocupação,
eu e outros jovens com certeza não teríamos
uma infância divertida e uma adolescência
tranqüila".
Matayá Trumai, professor indígena
do Parque Indígena do Xingu: "Há
muitos anos Orlando e seus irmão tiveram
contato com os índios do Xingu. Eles já
tinham feito contato com outros índios, já
estiveram em outras regiões, como no Amazonas.
No texto de Orlando ele conta sobre o contato com
os Kalapalo, depois encontram os Trumai e outros
povos, então eles acabaram ficando por aqui.
A intenção dos Villas Bôas não
era encontrar os índios aqui, a tarefa de
Orlando era fazer pistas de pouso, depois fazer
uma base aérea da Força Aérea
Brasileira, depois fazer mais pistas de pouso, até
Manaus. Mas eles encontraram os índios e
resolveram ajudá-los. Eles fizeram muitas
coisas boas aqui no Xingu, como o Posto Leonardo,
Diauarum e Jacaré, também a demarcação
da terra do Xingu".