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MORRE ORLANDO, O ÚLTIMO DOS IRMÃOS VILLAS BOAS

Panorama Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Dezembro de 2002

Internado desde o dia 14/11 no Hospital Albert Einstein, em São Paulo (SP), o mais célebre indigenista do Brasil, conhecido como o "Pai do Xingu", faleceu nesta quinta-feira de falência múltipla dos órgãos. O enterro será realizado amanhã, às 14 horas, no Cemitério do Morumbi.

Orlando Villas Bôas morreu aos 88 anos, tendo vivido mais de três décadas na região que hoje abriga o Parque Indígena do Xingu (MT), dos quais é um dos idealizadores.

Em 1999, o Instituto Socioambiental (ISA) apresentou ao indigenista os resultados do Diagnóstico Socioambiental dos Formadores da Bacia do Rio Xingu. O sertanista se mostrou perplexo e bastante preocupado com os resultados do estudo que demonstram que, devido à ocupação indevida do entorno, com o estabelecimento de atividades agropecuárias e o cultivo de soja, entre outros impactos socioambientais, o parque se tornará insustentável a longo prazo. Em entrevista à Agência Estado, Márcio Santilli, integrante do Conselho Diretor do ISA, comenta: "em relação ao Orlando, nós do ISA já levamos à frente seu compromisso de preservar o Parque Indígena do Xingu, uma de suas heranças para as futuras gerações deste país".

Do interior de SP ao Xingu

Nascido em Santa Cruz do Rio Pardo (SP), Orlando passa a viver em meados da década de 20 na capital do Estado. Com a morte dos pais em 1941, busca uma oportunidade para voltar ao interior.

Em junho de 1943, o ministro João Alberto Luís de Barros, da extinta pasta de Coordenação e Mobilização Econômica, anuncia: "no próximo 15 de julho partirá uma grande expedição para a Serra do Roncador, rumo às cabeceiras do Xingu, abrindo, pelo interior, o caminho que ligará a Amazônia ao resto do país". O projeto integrou a Marcha para o Oeste, parte do programa de governo do então presidente Getúlio Vargas, que priorizou a interiorização do Brasil, que à época abrigava uma população conhecida de 43 milhões de habitantes, a maior parte vivendo na faixa litorânea. Com percurso definido entre Leopoldina (GO) e Manaus (AM), percorrendo mais de 3 mil quilômetros do Centro-Oeste brasileiro, a expedição tinha como principal objetivo construir campos de pouso, abrir estradas e denifir pontos de colonização.

Desmotivados com o dia-a-dia em São Paulo, os irmãos Claúdio, Leonardo e Orlando animam-se com o projeto, tentam integrá-lo, mas são rejeitados, pois considerava-se que, como "homens da cidade", não se adaptariam à vida no mato. Procuravam-se analfabetos, sertanejos. Inconformados, seguem para o Mato Grosso, mudam a aparência e conseguem se juntar à expedição. Iniciam a participação com trabalhos braçais e após serem "descobertos" assumem tarefas administrativas, papel de destaque na "pacificação" dos índios e a liderança da expedição a partir de 1949, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra.

Estabelecem contatos amistosos com mais de cinco mil índios, de 14 etnias. Os povos do Xingu representam para os Villas Bôas "índios de cultura pura", que deveriam ser preservados das frentes de expansão econômica que estavam sendo inauguradas na região. Neste sentido, iniciam no começo da década de 50, com o apoio de Marechal Rondon, do sanitarista Noel Nutels e do antropólogo Darcy Ribeiro, entre outros, e forte oposição do governo e dos fazendeiros de Mato Grosso, uma campanha para a demarcação das terras indígenas locais. Quase dez anos depois, em 1961, o trabalho resulta na criação do Parque Nacional do Xingu, posteriormente chamado Parque Indígena do Xingu, por meio de um decreto assinado pelo presidente Jânio Quadros.

"De todos os contatos, acho que o único bem que fizemos para os índios do Xingu foi fechá-los dentro de uma determinada área, não permitindo que ali se repetisse o que aconteceu com todos os índios do Brasil", afirmou Orlando em uma entrevista à imprensa. "É preciso observar que, com a criação do Parque Indígena do Xingu, demos impulso à nossa política indigenista, que partia da premissa de que os índios deveriam ser protegidos pelo governo federal das frentes de ocupação, em parques e reservas de acesso restrito, para ser gradativamente integrados à sociedade e à economia do Brasil."

Criação do Parque Indígena do Xingu

"O Parque Indígena do Xingu foi um híbrido impensável à época por misturar proteção natural e proteção dos índios numa área de 2 milhões de hectares", afirma André Villas-Bôas, coordenador do Programa Xingu do ISA, que, apesar do sobrenome e do campo de atuação profissional, não tem parentesco com Orlando. Sobre as críticas relacionadas ao protecionismo excessivo aos índios, comenta: "Orlando foi paternalista, sim. Ele controlava a entrada e saída dos índios do parque, não queria misturá-los com brancos, para não colocá-los em risco, para que não contraíssem doenças, por exemplo. Mas, devido ao isolamento e à fragilidade dos índios naquele momento, era uma proteção que fazia sentido, uma vez que sua atuação permitiu que esses povos metabolizassem melhor os impactos da sociedade branca. Já o Estado se apropriou disso de uma outra maneira, vendendo o Xingu como o cartão de visitas do Brasil, quando a situação dos índios em outras parte do país, de uma maneira geral, era bem diferente".

Outro fato polêmico relacionado à atuação dos Villas Bôas como sertanistas do Xingu, especialmente Cláudio e Orlando, foi a transferência dos povos Kayabi, Ikpeng, Tapayuna e Panará para o parque, como se este representasse a única casa segura para os índios.

Direção do parque, livros e homenagens

Orlando ocupou a direção do parque por 17 anos, da data de sua criação até 1978. Estabeleceu por lá um programa de assistência médica aos índios por meio de um convênio com Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), existente até hoje, e quando conheceu a enfermeira Marina Lopes de Lima, com quem se casou em 1969 e teve dois filhos - Orlando Villas Bôas Filho e Noel Villas Bôas.

Posteriormente, dedicou-se a descrever a experiência como sertanista e indigenista em artigos e 12 livros, entre os quais A Marcha para o Oeste - A Epópeia da Expedição Roncador -Xingu. A Metalivros e a Agência Estado lançaram em 05/12 O Xingu dos Villas Bôas, publicação de 200 páginas, com mais de 300 fotos, depoimentos e textos informativos sobre os irmãos Villas Bôas e o Parque Indígena do Xingu.

O indigenista recebeu diversas honras acadêmicas, cidadanias, títulos honorários e homenagens, como a medalha da Royal Society of London, a medalha Grau Oficial da Ordem do Rio Branco e a Medalha de Direitos Humanos, entregue pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Foi indicado em 1976 para o Prêmio Nobel da Paz pelo resgate das tribos xinguanas.

Para André Villas Bôas, o grande marco de Orlando foi o de fazer com que a classe média brasileira começasse a perceber os índios de uma outra maneira, num momento difícil, em que eram vistos como uma coisa do passado, algo a ser superado.

"O lado bom de Orlando foi se preocupar em preservar a nossa cultura, demarcar a nossa terra e começar a unir os povos indígenas dessa região para uma luta só em defesa do nosso ecossistema. Se ele não tivesse essa preocupação, eu e outros jovens, com certeza, não teríamos uma infância divertida e uma adolescência tranquila, afirma Kanawayuri Marcello, professor indígena do Parque Indígena do Xingu.

Para a sociedade brasileira, Orlando é visto, de uma maneira geral, como o grande defensor dos povos indígenas do Brasil.

Depoimentos sobre Orlando Villas Bôas

Antônio Houaiss (1915-1999), filólogo, escritor, tradutor e membro da Academia Brasileira de Letras: "Os brasileiros de minha idade (e os poucos de mais...) e os de menos, até os nascituros, não podem ignorar os ideais que estão enlaçados com a história do Parque Nacional do Xingu, nem podem desconhecer a vida-saga dos irmãos Villas Bôas, cuja devoção à causa da redenção dos índios e do desenvolvimento do nosso Oeste é matéria que deve perdurar no nosso imaginário coletivo. Deles, já tivemos - além da epopéia que vêm sendo sua vida e luta - textos esplêndidos. Isso me garante que estou antecipando entusiasmos não gratuitos para com as páginas que se lerão a seguir: é que neles tudo tem sido amor pela causa dos nossos semelhantes, com uma compreensão profunda do amor à natureza não violentada e de esperança de um futuro menos triste para esta nossa sofrida raça, digo, gênero, digo espécie, digo ser, o humano". - Extraído da apresentação do livro A Marcha para o Oeste - A Epopéia da Expedição Roncador-Xingu Darcy Ribeiro (1913-1997), educador, escritor, senador e membro da Academia Brasileira de Letras: "Orlando, Cláudio e Leonardo compuseram as vidas mais extraordinárias e belas de que tenho notícia. Pequenos-burgueses paulistas, condenados a vidinhas burocráticas medíocres, saltaram delas para aventuras tão ousadas e generosas que seriam impensáveis, se eles não as tivessesm vivido. Só se compara à de Rondon a façanha desses três irmãos que se meteram Brasil adentro por matas e campos indevassados ao encontro de índios intocados pela civilização. Usando do subterfúgio de se fazerem passar por caboclos goianos, conseguiram incorporar-se a uma expedição oficial de penetração no centro do Brasil. Tomaram conta da expedição, transcederam dela e viveram mais de 30 anos nas matas que que vão do Xingu ao Tapajós, convivendo com povos indígenas que eles souberam amar e respeitar. Entre seus feitos assinala-se a coragem com que, arriscando suas vidas, atraíram diversos povos indígenas à civilização. Triste coisa para estes povos. Menos má, porém, porque sua pacificação foi conduzida pelos Villas Bôas, que souberam defendê-los, garantindo-lhes uma sobrevivência melhor do que a dos povos chamados ao nosso convívio. Sua façanha mais extraordinária, a meu ver, foi a criação, ou recriação, de todo um povo - os Yawalapitis, que só existiam dispersos nas várias aldeias xinguanas, até que os Villas Bôas os juntassem novamente, para retomarem seu Destino de uma das caras do fenômeno humano." - Extraído da apresentação do livro A Marcha para o Oeste - A Epopéia da Expedição Roncador-Xingu

José Porfírio Carvalho, indigenista e coordenador do Programa Waimiri Atroari : "O que eu destaco no Orlando e no Claúdio é a dedicação deles em relação aos povos indígenas. Muito do que temos hoje devemos a eles, o Parque do Xingu é um exemplo, é uma vitrine, um espelho que acabou por criar na sociedade brasileira um espírito em defesa dos povos indígenas. Por isso, qualquer referência que se faça ao indigenismo no Brasil passa necessariamente pelos irmãos Villas Bôas".

Yanama Kuikuro, professor indígena do Parque Indígena do Xingu: "Há muito tempo, antes de Orlando Villas Bôas chegar aqui no Parque Indígena do Xingu, as aldeias eram todas longe umas das outras: Kuikuro, Kalapalo, Mehinaku, Waurá, Aweti, Nahukua, Yawalapiti e Kamaiurá. Também as aldeias de outros povos como o Ikpeng, Trumai, Kaiabi, Suyá, Yudjá e Panará eram longe umas das outras. Quando Orlando chegou e abriu o posto Jacaré, começou a ajuntar os povos de cada etnia próximos ao Jacaré. Orlando começou a falar para as pessoas de cada povo para não irem longe, para fazerem aldeias perto umas das outras. Foi assim que os povos indígenas foram se familiarizando".

Wary Kamaiurá, professor indígena do Parque Indígena do Xingu: "A época de Cláudio e Orlando Villas Bôas foi boa, mas teve um pouco de ameaça. Naquela época meu avô era rapaz, ele morava no posto Jacaré, junto com Orlando Villas Bôas. No posto Jacaré cultivavam alimentos como por exemplo: abóbora, banana, melancia, laranja etc. Meu avô era amigo do Orlando. Orlando sempre trazia presentes para o meu avô. Orlando começou a ajuntar os Kamaiurá no posto Jacaré, os Kamaiurá fizeram aldeia lá. Orlando começou a estimular muita festividade. Outras etnias vinham participar da festa e Orlando também dava muitos presentes para eles. Nesse tempo aconteceu um pouco de tumulto entre eles por causa dos alimentos que Orlando cultivava. Pessoas do povo Kamaiurá começaram a roubar os alimentos a noite. Orlando foi para o posto Leornardo e os Kamaiurá mudaram para o Ypawu. O Jacaré é um lugar sagrado, faz parte da nossa história".

Kauawayuri Marcelo, professor indígena do Parque Indígena do Xingu: "O contato concreto do povo Kamaiurá com homem branco foi uma fase muito difícil. Porque quando viram os objetos novos, queriam para eles, por exemplo, chapéu, roupas, botas, redes, cobertores, miçangas, facões, machados e sabão. Mas o Orlando não dava essas coisas de qualquer jeito. Ele tinha material para o cacique fazer distribuição na aldeia periodicamente. O pessoal conta que uma vez um cacique foi solicitar o jipe para levá-lo com sua família para aldeia, mas o Orlando mandou-o ir embora a pé, alegando que se andassem só de carro de posto para aldeia, ou vice-versa acabariam se acostumando. Só liberava o jipe para atender o paciente. Quer dizer, o Orlando era muito rigoroso na sua administração. Ele não deixava os kamaiurá usarem roupa, dizendo para não acabar costumes, festas. Permitia só uso de anzol, linha, fósforo e algumas coisas. Mas eu achei o lado bom do Orlando de se preocupar em preservar a nossa cultura, demarcar a nossa terra e de começar a unir os povos indígenas dessa região para uma luta só em defesa do nosso ecossistema. Se ele não tivesse essa preocupação, eu e outros jovens com certeza não teríamos uma infância divertida e uma adolescência tranqüila".

Matayá Trumai, professor indígena do Parque Indígena do Xingu: "Há muitos anos Orlando e seus irmão tiveram contato com os índios do Xingu. Eles já tinham feito contato com outros índios, já estiveram em outras regiões, como no Amazonas. No texto de Orlando ele conta sobre o contato com os Kalapalo, depois encontram os Trumai e outros povos, então eles acabaram ficando por aqui. A intenção dos Villas Bôas não era encontrar os índios aqui, a tarefa de Orlando era fazer pistas de pouso, depois fazer uma base aérea da Força Aérea Brasileira, depois fazer mais pistas de pouso, até Manaus. Mas eles encontraram os índios e resolveram ajudá-los. Eles fizeram muitas coisas boas aqui no Xingu, como o Posto Leonardo, Diauarum e Jacaré, também a demarcação da terra do Xingu".

 
 
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental (www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa (Cristiane Fontes)
 
 
 
 
 
 

 

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