Recentemente,
foram lançados dois decretos tratando da
atuação das Forças Armadas
e da Polícia Federal sobre espaços
especialmente protegidos no país: o Decreto
nº 4.412 de 7 de outubro de 2002, que trata
da atuação dessas instituições
em terras indígenas e o Decreto nº 4.411,
também de 7 de outubro de 2002, que trata
do mesmo tema em unidades de conservação.
O alvo da análise será esse último
decreto
Antes de proceder a tal análise,
vale a pena cogitar sobre as origens de tais decretos.
Os militares afirmam que ambos são o resultado
de um acordo com setores do Ministério do
Meio Ambiente para a criação do Parque
Nacional Montanhas do Tumucumaque. Esse Parque,
o maior do país, localiza-se nos estados
do Amapá e Amazonas, na fronteira com a Guiana
Francesa e o Suriname. Seu decreto de criação
data de 22 de agosto de 2002 , a tempo de ser festejado
na Cúpula de Johannesburgo. Será que
ainda emergirão outros resultados dos acordos
que possibilitaram a criação do Parque
Nacional Montanhas do Tumucumaque?
A título de curiosidade, pode-se apontar
que os termos do artigo 1º do Decreto nº
4.411 são idênticos ao do artigo 6º
do decreto de criação de Tumucumaque
(decreto s/n de 22 de agosto de 2002) e que o artigo
5º desse último já menciona a
participação do Ministério
da Defesa e do Conselho de Defesa Nacional na elaboração
do plano de manejo de Tumucumaque. Como veremos
a seguir, esse dispositivo foi ampliado no Decreto
nº 4.411. Vale ainda ressaltar que os decretos
de criação de outros parques em faixa
de fronteira, como o Parque Nacional Pico da Neblina
(Decreto n.° 83.550, de 5 de junho de 1979)
e o Parque Nacional Ilha Grande (Decreto s/n de
30 de setembro de1997), sequer mencionam as Forças
Armadas.
O Decreto nº 4.411 possui apenas três
artigos, que são, porém, suficientes
para delinear a possibilidade de um cenário
surpreendente de muita presença e atuação
militar nas unidades de conservação
do país. O primeiro artigo dá às
Forças Armadas e à Polícia
Federal "liberdade de trânsito e acesso,
por via aquática, aérea ou terrestre,
de militares e policiais para a realização
de deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento,
policiamento e demais operações ou
atividades relacionadas à segurança
e integridade do território nacional, à
garantia da lei e da ordem e à segurança
pública"; permite "a instalação
e manutenção de unidades militares
e policiais, de equipamentos para fiscalização
e apoio à navegação aérea
e marítima, bem como das vias de acesso e
demais medidas de infra-estrutura e logística
necessárias, compatibilizadas, quando fora
da faixa de fronteira, com o Plano de Manejo da
Unidade"; e ainda " a implantação
de programas e projetos de controle, ocupação
e proteção da fronteira."
Frise-se que aqui não se trata apenas de
unidades de conservação em faixa de
fronteira, pois a "liberdade de trânsito
e acesso ... para a realização de
deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento, policiamento
e demais operações ou atividades relacionadas
à segurança e integridade do território
nacional, à garantia da lei e da ordem e
à segurança pública" diz
respeito a todas as unidades de conservação
do país, sejam elas de proteção
integral ou de uso sustentável, localizadas
em qualquer parte do território nacional.
O parágrafo segundo desse mesmo artigo afirma
que, "sempre que possível", "o
órgão responsável pela administração
da unidade de conservação será
comunicado das atividades a serem desenvolvidas
na unidade". Ou seja, abre-se a possibilidade
para que muitas dessas atividades de "deslocamentos,
estacionamentos, patrulhamento, policiamento"
e mesmo "a instalação e manutenção
de unidades militares e policiais, de equipamentos
para fiscalização e apoio à
navegação aérea e marítima"
ocorram sem o conhecimento do órgão
responsável pela unidade que, pelo visto
não terá sequer a possibilidade de
opinar sobre a conveniência das atividades
a serem desenvolvidas, nem avaliar os possíveis
impactos sobre a biodiversidade e sobre as comunidades
que ali residem.
No caso das unidades de conservação
localizadas em faixa de fronteira (faixa de 150
km a partir da linha da fronteira), a situação
é mais grave, pois o artigo segundo do decreto
assim dispõe: "O Ministério da
Defesa participará da elaboração,
da análise e das atualizações
do plano de manejo das unidades de conservação
localizadas na faixa de fronteira." e seu parágrafo
único diz que "os planos de manejo e
respectivas atualizações, referidos
no caput, serão submetidos à anuência
prévia do Conselho de Defesa Nacional, por
meio de sua Secretaria-Executiva".
Ou seja, a partir de 7 de outubro de 2002, além
do procedimento comum de confecção
e aprovação dos planos de manejo,
um novo ator e uma nova fase foram incorporados
ao processo no caso de unidades de conservação
em faixa de fronteira: o Ministério da Defesa,
que deve participar de todos os processos que concernentes
aos planos de manejo, e o Conselho de Defesa Nacional,
que deve anuir previamente. Antes do Decreto, a
aprovação do plano de manejo, dava-se
por meio, exclusivamente, de portaria do Ibama ou
de outro órgão executor, nos casos
de Estação Ecológica, Reserva
Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural,
Refúgio de Vida Silvestre, Área de
Proteção Ambiental, Área de
Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional,
Reserva de Fauna e Reserva Particular do Patrimônio
Natural. Com respeito às Reservas Extrativistas
e Reservas de Desenvolvimento Sustentável,
essa aprovação acontecia unicamente
mediante resolução do Conselho Deliberativo.
Antes de passar a uma análise quantitativa
do que isso representa em termos de unidades de
conservação federais, deve-se chamar
a atenção para duas questões
relevantes:
O decreto vale para todas as unidades de conservação
do país? Isto é, estariam aí
abarcadas também as unidades estaduais e
municipais? Se assim for, a análise apresentada
abaixo é apenas a ponta do iceberg.
Como fica a situação das RPPNs? Segundo
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação,
as RPPNs são unidades de conservação
de uso sustentável. Como o decreto 4.411
não excetua nenhuma categoria, será
possível às Forças Armadas
e à Polícia Federal tal liberdade
de trânsito e acesso dentro das RPPNs? Essa
pergunta também é cabível no
caso da APAs constituídas de terras públicas
e privadas.
Uma breve análise quantitativa
do impacto do decreto
A tabela e o mapa abaixo ilustram as unidades de
conservação federais cujo plano de
manejo terá que contar com a anuência
prévia do Conselho de Defesa Nacional. São
24 áreas, não computando as florestas
nacionais sobrepostas a terras indígenas,
APAs e RPPNs. O caso dos parques nacionais é
o mais significativo: do total de 49 parques no
país, 10 estão na faixa de fronteira,
cerca de 20%. Em termos de área, os parques
nacionais brasileiros ocupam 16.286.626 hectares
e os parques em faixa de fronteira somam 8.407.863,2
hectares, ou seja mais do que 50%.
No que diz respeito às unidades de proteção
integral, em geral, a recém lançada
edição do Roteiro Metodológico
de Planejamento, que fornece as bases para a elaboração
de planos de manejo, já está defasada,
pois não faz nenhuma menção
à participação do Ministério
da Defesa e da anuência prévia requerida
no caso das unidades em faixas de fronteira. O caso
das Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento
Sustentável é ainda mais complicado,
pois parte da autonomia de seu Conselho Deliberativo
estará em cheque com a necessidade do Conselho
de Defesa Nacional anuir previamente ao plano de
manejo da unidade.