 |
MILITARES
SEQÜESTRAM E TORTURAM ÍNDIOS
NO ALTO RIO NEGRO (AM)
Panorama Ambiental
São Paulo (SP) - Brasil
Novembro de 2003
|
 |
Militares
seqüestram e torturam índios no Alto
Rio Negro (AM)
Dois jovens das etnias Desana e Tukano foram violentamente
agredidos por militares do 6o Pelotão de
Fronteira de Pari-Cachoeira, um dos cinco que o
Exército mantém na Terra Indígena
Alto Rio Negro, na fronteira do Brasil com a Colômbia.
O fato ocorreu um dia depois da assinatura da portaria
do Ministério da Defesa que define as diretrizes
de relacionamento entre as forças armadas
e comunidades indígenas.
Jailson Costa Lana, da etnia Desana, e Alberto Caldas
Sampaio, da etnia Tukano, participavam de uma partida
de futebol na comunidade indígena de Pari-Cachoeira,
na Terra Indígena Alto Rio Negro (AM), no
dia 18/10, quando foram surpreendidos por um grupo
de militares armados e aparentando embriaguez, do
6o Pelotão de Fronteira (PEF) de Pari-Cachoeira.
Após invadir a quadra de esportes, os soldados
e um sargento coagiram Lana e Sampaio a entrar em
um caminhão do Exército e os levaram
a um local próximo à sede do quartel
do 6o Pelotão de Fronteira de Pari-Cachoeira.
Durante o trajeto, os índios levaram pancadas,
chutes e ouviram ameaças.
No quartel, foram levados a uma estrada, onde levaram
mais socos, chutes pontapés, palmatórias
e surras com paus e varas e ouviram frases como:
"vocês são índios. Não
valem nada e merecem morrer mesmo. Mostrem agora
que vocês são valentes." Uma hora
depois, os índios conseguiram se livrar das
agressões, que já ocorreram diversas
vezes em comunidades locais - depoimento dos índios
na íntegra abaixo .
As torturas foram denunciadas pelos pais das vítimas
à Coordenadoria das Organizações
Indígenas do Rio Tiquié, Baixo Rio
Uaupés e Afluentes (COITUA), filiada à
Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (Foirn). A Foirn apresentou
nesta terça-feira (28/10) representação
à 6a Câmara de Coordenação
e Revisão do Ministério Público
Federal - documento abaixo -, para que o caso seja
apurado e investigado, com a punição
dos militares envolvidos, à qual foi anexada
o laudo do exame de corpo de delito elaborado no
Pólo Base de Pari-Cachoeira.
A Foirn também encaminhou a denúncia
e os documentos ao tenente coronel Kleger, comandante
do V Batalhão de Infantaria da Selva, responsável
pela unidade do Exército em São Gabriel
da Cachoeira (AM), à qual o 6º PEF está
subordinado; ao general Cláudio Barbosa de
Figueiredo, comandante militar da Amazônia,
em Manaus; ao Ministro da Defesa, José Viegas
Filho; ao general José A. Félix, ministro-chefe
do Gabinete de Segurança Institucional da
Presidência da República; à
secretaria do Conselho Nacional Contra a Discriminação
(CNCD); ao secretário Nacional de Direitos
Humanos, Nilmário Miranda; ao secretário-executivo
do Ministério da Justiça, Sérgio
Sérvulo; e ao administrador da Fundação
Nacional do Índio (Funai) em São Gabriel
da Cachoeira, Henrique Vaz.
Também na terça-feira, o presidente
da Foirn, Domingos Barretto Tukano, recebeu um fax
assinado pelo comandante da 1a Companhia do 1o Batalhão
de Engenharia de Construção do Exército,
Delso Passos Moita, no qual informa que "o
comando determinou, em caráter emergencial,
a abertura de sindicância para apurar a responsabilidade
sobre os fatos".
Depoimento
das vítimas
Relatório
de Agressão e Tortura dos Militares da 1ª/1º
BEC do distrito de Pari-Cachoeira-AM - Município
de São Gabriel da Cachoeira-AM Às
dezessete horas e trinta minutos (17:30 hs) do dia
18 de outubro de 2003, ocorreu durante o jogo de
futsal na quadra Paróquia de São João
Bosco, chegaram os militares alterados com sinal
de embriagues, conforme as vítimas, cercaram-nos
e prenderam-nos, e o sgt. Vagner André apontando
com uma faca e outros restantes (soldados), disseram
que nós não corrêssemos. Ao
prenderem, levaram-nos com a caçamba (caminhão),
um na cabine e outro na carroça da viatura,
enquanto seguiam ao rumo do Quartel 6º PEF
de Pari-Cachoeira, ainda a viatura em movimento
deram pancadas, chutes e disseram-nos prometendo
a gritos que ao chegarem no aeroporto iam amarrar
numa corda e arrastar com o corpo exposto no chão
com o carro. Quando chegaram no quartel seguiram
direto por uma estrada que vai na cachoeirinha,
quando chegaram no local areal, obrigara-nos descer
do carro depois de muitos maltratos, e obrigando
que nós fumássemos um cigarro, com
cheiro muito estranho que nos deixou meio tontos
e esse cigarro era do uso deles. Ao chegar nesse
local, os militares (soldados) queriam surrar com
a faca (terçado), mas o sgt. Vagner André
disse a eles que era melhor com paus e varas, aí
prepararam varas e paus com os quais todos eles
deram surras com paus, socos, chutes e ponta pés,
e também mandaram abrir a palma da mão
e botaram pedrinhas e bateram contra elas com a
placa do caminhão, disseram que era palmatória.
Até esse momento nos cercaram e não
dava para tentar fugir correndo e torturaram-nos
como se fôssemos animais irracionais. Ao açoitarem
expressaram essas frases “vocês são
índios não valem nada e merecem morrer
mesmo, mostrem agora que vocês são
valentes, vocês não são desta
comunidade, vocês são ladrões,
quem manda aqui somos nós e não vocês
índios...e muitas outras frases”. A turma
de militares era composta de vários soldados
que aqui citamos alguns, como: stg. Vagner André,
sd Cleber, sd Maraes, sd Suedson, sd Elidio, sd
Magalhães, sd Alex, sd Columbia, sd Paz,
sd Azevedo, sd Fileis – é da infantaria /6º
PEF e os demais são todos da 1ª/1º
BEC. Todos esses soldados e mais outros estavam
bêbados e drogados, que suspeitamos do mal
cheiro do cigarro que nos ofereceram. Ao levarem,
falaram para o dr. Henrique Castro – Presidente
da CIPO, que nós indígenas, tínhamos
roubado a caçamba (caminhão) do quartel
de destacamento, o referido presidente respondeu
que ele como comandante (stg. Vagner André)
da 1ª/1º BEC Pari-Cachoeira que decidisse.
Na verdade o roubo de caçamba nunca ocorreu,
e deram voz de comando para buscar um CD em questão
de minutos. Daí corremos dessa tortura às
dezoito horas trinta minutos até conseguir
livrar no mesmo dia. Essa forma de agressão,
não é a primeira vez, já aconteceu
várias vezes nos dias de festas da comunidade,
surgem brigas por causa de mulheres, agarram a jovens
estudantes indígenas e não deixam
outros jovens índios dançarem, caso
contrário sempre formam em turmas (galeras)
para brigar e surrar os índios, muitas vezes
andam armados de facas e outros instrumentos, tornando
o ambiente perigoso, tudo isso é provocação
dos soldados (militares) que vêm de São
Gabriel, Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos, Manaus
e outros. E os soldados daqui da região de
Pari-Cachoeira, Tracuá, Yauareté e
Içana não fazem esse tipo de bagunça
ou agressões. Diante dessa situação
tão triste e desumana, ficamos nos perguntando
se esse tipo de atitude dos militares , como representante
da Segurança Nacional, que tem a missão
de defender a faixa de fronteira e as populações
próximas dos pelotões se comportam
dessa forma tão cruel, é correto ou
não. Nós dois ficamos com braços,
costas, nádegas, e pernas feridas e inchadas.
Por esta tortura física somos vítimas
deste acontecimento. O relatório é
anexado com certidão de exame de ambos indígenas,
que foi feito no POLO BASE do DISTRITO DE PARI-CACHOEIRA-DSEI/
FOIRN. Assinatura das vítimas: Jailson Costa
Lana (etnia: Dessano) Alberto Caldas Sampaio (etnia:
Tukano)
Representação
à 6ª Câmara de Coordenação
e Revisão do Ministério Público
Federal
Exma. Sra. Ela Wiecko
Volkmer de Castilho, DD. Coordenadora da 6ª
Câmara de Coordenação e Revisão
do Ministério Público Federal A Federação
das Organizações Indígenas
do Rio Negro – FOIRN, associação civil
com sede em São Gabriel da Cachoeira/AM,
que congrega mais de 40 associações
indígenas da região do alto e médio
Rio Negro, no Estado do Amazonas, e que tem como
missão institucional garantir o respeito
aos direitos dos povos indígenas do Rio Negro,
bem como representar seus interesses junto às
instituições públicas pertinentes,
vem à presença de V. Sa., com fulcro
nos artigos 2º; 6º, inciso V; e 38, incisos
II e III da Lei Complementar nº 75/93, oferecer
a presente REPRESENTAÇÃO em função
do conhecimento de fatos de extrema gravidade, a
seguir relatados, que atentam contra os direitos
indígenas e a dignidade da pessoa humana,
e que por essa razão merecem imediata investigação
e apuração da responsabilidade criminal
por parte dessa instituição. 1.DOS
FATOS Durante uma partida de futebol, ocorrida no
dia 18 de outubro de 2003, na comunidade indígena
de Pari-Cachoeira, localizada no interior da Terra
Indígena Alto Rio Negro, dois jovens indígenas
foram seqüestrados e violentamente espancados
por alguns soldados integrantes do Pelotão
de Fronteira localizado junto a essa comunidade.
Segundo relatos das vítimas (anexo I), esses
soldados, aparentando embriaguez, chegaram armados
à quadra de futebol e os coagiram a entrar
em um caminhão de propriedade do Exército,
para os levar à sede do Quartel do 6º
PEF de Pari-Cachoeira. Durante o trajeto, as vítimas
foram não só ameaçadas como
efetivamente agredidas, física e moralmente,
o que veio a se repetir quando desceram do veículo,
em local distinto do quartel. Durante todo o tempo
em que estiveram sob poder dos agressores, os dois
jovens foram agredidos com socos, chutes, paus,
varas e inclusive com uma palmatória! Além
da agressão física, que provocou lesões
corporais em ambas vítimas, o que foi comprovado
em exame feito na sede do Polo Base de Saúde
Indígena de Pari-Cachoeira (anexo II), as
vítimas foram objeto de agressão moral
de cunho nitidamente racista, que se concretizou
em frases como “vocês são índios,
não valem nada e merecem morrer mesmo”, dentre
outras relatadas em anexo. Relata-se ainda a coação
para o uso forçado de substância entorpecente,
de posse ilegal, portada e utilizada pelos agressores.
Como se vê, são fatos extremamente
graves. Dois indígenas foram violentamente
espancados, dentro de sua própria comunidade,
por agentes do exército brasileiro em pleno
exercício de seu cargo, que se utilizaram
de força e de sua suposta autoridade para
não só agredir, mas também
para ofender e humilhar as vítimas, aparentemente
pelo fato de serem indígenas. E o que é
mais grave é que esse fato, embora extremo,
não é isolado, mas a exacerbação
de um clima de desrespeito e agressividade reinante
na relação entre o Pelotão
de Fronteira e as comunidades indígenas,
situação essa que deve a qualquer
custo ser imediatamente solucionada. 2.DO DIREITO
Reza a Constituição Federal que “ninguém
será submetido a tortura, nem a tratamento
desumano ou degradante” (art.5º, III), constituindo-se
este, portanto, um direito fundamental que deve
por todos ser respeitado, notadamente pelo Estado
e por seus agentes. A lei nº 9455/97 tipifica
o crime de tortura da seguinte forma: Art. 1º
Constitui crime de tortura: I - constranger alguém
com emprego de violência ou grave ameaça,
causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação,
declaração ou confissão da
vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar
ação ou omissão de natureza
criminosa; c) em razão de discriminação
racial ou religiosa; II - submeter alguém,
sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego
de violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter
preventivo. Fica claro dos fatos brevemente resumidos
acima, mas detalhadamente relatados em anexo, que
a conduta dos soldados do 6º Pelotão
de Fronteira de Pari-Cachoeira configura-se crime
de tortura, por terem eles se utilizado de seu poder
e autoridade para ameaçar e agredir dois
jovens indígenas, sem maiores razões
– como se razão houvesse para a prática
de atos de barbárie como esse ! - que a de
serem as vítimas índios. Tem-se ainda
a agravante de o crime haver sido cometido por agente
público em pleno exercício de suas
funções (art.1º, §4º).
Não há como tolerar, num Estado Democrático
de Direito, que práticas como essas se perpetuem,
que continuem existindo em pleno século XXI.
A violência física e moral praticada
por agentes públicos contra cidadãos
é algo que deve ser incansavelmente combatido,
e seus autores devem ser criminalmente processados
e ao final punidos. Tal situação é
agravada quando se trata de crime praticado contra
membros de comunidades indígenas, com motivação
claramente racista, o que também é
repudiado por nosso Ordenamento Jurídico.
O mais inusitado dessa situação é
que ela ocorreu apenas um dia após a publicação
da Portaria nº 983/DPE/SPEAI/MD, do Ministério
da Defesa, que visa exatamente regulamentar a convivência
entre unidades das forças armadas e comunidades
indígenas, evitando que abusos e descompassos
até hoje verificados se repitam. Ou seja:
no exato momento em que as Forças Armadas
tentam garantir uma convivência mais harmoniosa
e pacífica com os povos indígenas,
respeitando seus direitos e seus costumes, alguns
de seus agentes criminosamente se utilizam de sua
condição funcional para praticar abusos
dos mais abjetos. Por tudo isso, e tendo o Ministério
Público Federal competência privativa
para promover, na forma da lei, a ação
penal pública (Lei Complementar nº 75,
art.6º, V), bem como a função
institucional a defesa dos direitos dos índios
e das populações indígenas
(art.37, II), podendo, para tanto, requisitar diligências
investigatórias e instauração
de inquérito policial, com poder para acompanhá-los
e apresentar prova (art.38, II), vimos por meio
dessa representação requerer: a) seja
instaurado inquérito policial para apurar
a autoria e as circunstâncias dos crimes ora
imputados; b) seja acompanhada essa investigação,
para que todos os culpados venham a ser devidamente
processados judicialmente; e c) ao final, sejam
os culpados criminalmente processados e condenados,
na forma da lei. São Gabriel da Cachoeira,
28 de outubro de 2003. Domingos Fábio Borges
Barreto Presidente em exercício da Foirn.
Fonte: ISA – Instituto Sócio
Ambiental (www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa