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AGRICULTURA
TRANSGÊNICA E O GRILO
Panorama Ambiental
Brasília (DF) - Brasil
Outubro de 2003
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Trata-se de um artigo
de reflexão e ponderação sobre
o uso de transgênicos na agricultura como
opção tecnológica, segundo
certas correntes, de posicionamento competitivo
e maximização de lucros no setor.
Depois de registrar uma onda avassaladora de adoções
pelos agricultores, notadamente norte-americanos
e argentinos, o surgimento de reações
dos consumidores, pendengas judiciais na tramitação
de processos administrativos e aguerridos movimentos
de ambientalistas, além de constatações
práticas pouco animadoras da propalada vantagem
dos transgênicos, o mundo começa a
ter mais consciência e posição
crítica na polêmica tecnologia. Prudência,
precaução, ética, transparência,
relevância política e social, efeitos
da vaca louca, rastreabilidade alimentar, e casos
de alergia e poluição genética
causadas pelo milho starlink, entre outros fatos,
foram responsáveis pelo despertar de uma
visão de equilíbrio e de bom senso.
Toda revolução, seja de tecnologia
ou de comoção social, tem uma razão,
uma ideologia, uma causa de ação subjacente
à idéia de implantação
de novos paradigmas e valores. Não se vai
a uma guerra sem uma crença explícita
e convincente. E no caso dos transgênicos,
qual a razão dessa tecnologia para o homem?
Para o homem que, segundo o seqüenciamento
do seu genoma, é fruto da interação
do seus genes com o meio ambiente, um espaço
finito que abriga uma complexa diversidade de seres
no ar, na terra, nas águas e nos subsolos.
É para servir ao homem rural como produtor
(variedade resistente a pragas, ervas daninhas,
moléstias e a estresses climáticos),
ao consumidor urbano-industrial (qualidade, teores
e índices de aproveitamento) ou à
natureza (facilitar a reciclagem, diminuir o uso
de insumos, reverter sazonalidades, tornar uma planta
completa)? Ou, trata-se apenas de uma técnica
para auferir vantagens pecuniárias para as
indústrias e agricultores? Todas essas questões
são muito pertinentes diante dos desafios
de sustentabilidade, qualidade de vida, redução
de pobreza, globalização econômica
e de problemas sanitários, mudanças
climáticas e eqüidade de justiça
em um mundo pequeno demais para tantos sonhos e
ambições egocêntricas tão
fugazes e efêmeras quanto a própria
existência. Pensar, refletir e questionar
a artificialização da natureza com
uma visão crítica e sensata é
desempenhar o papel do grilo falante da estória
do Pinóquio. E ser crítico significa
assumir a essência de homem racional sob pena
de se viver, a exemplo da fábula do Frei
Boff, ciscando o terreiro como galinhas, pela crença
que se trata verdadeiramente de aves de hábitos
de solo de tão condicionadas pelo bombardeio
de informações e modos de comportamento
impingidos pelos mais astutos, apesar de serem congenitamente
águias de grande poder de vôos. Assim,
desenvolve-se uma série de tópicos
que abarcam indagações a respeito
da tecnologia de transgênicos na agricultura.
a) Supressão
do conceito de espécies:
A transposição de genes de uma espécie
para outra, explorando características genéticas
de interesse, como o gene de resistência ao
herbicida glifosato de uma bactéria e o gene
inseticida do Bt em algodoeiro e no milho, tende
a provocar a criação de uma planta
totalmente distinta das existentes na natureza.
Quando se retira o material genético de bactérias
ou de plantas de pântanos salinos e se os
transfere a outras para desenvolvimento franco em
ambientes hostis altera-se toda a história
evolutiva das espécies. Cada espécie,
no longo e complexo processo de adaptações
e especializações a condições
ambientais, foi aperfeiçoada biologicamente
para ser o que ela realmente é hoje. É
por isso que existem plantas que vegetam em ambientes
xerofíticos, hidromórficos, à
sombra e a pleno sol. Umas são subaquáticas
de águas estagnadas (lagos), outras de corredeiras
de alta oxigenação. A teia de vidas
é sistêmica, diversificada e especializada
para cada ambiente. Isto forma a biodiversidade
e ecossistemas, conforme a região de sua
existência. As plantas comerciais foram aprimoradas
por intensos processos adaptativos à custa
de muita pesquisa e tecnologia em todos os lugares
que existe agricultura. Apesar da disseminação
planetária, assumindo até um caráter
cosmopolita (arroz, soja, milho, trigo), todas as
culturas têm um centro genético, uma
origem geográfica de vegetação
original.
A transgenia altera profundamente o sentido e o
conceito de espécies tal como é conhecida
ordinariamente. Isto faz sentido? Mesmo que se diga
que as espécies comerciais só sobrevive
em ambientes de cultivo, altamente artificiais (calagem,
adubação, irrigação,
rotação de culturas, controle de pragas
e doenças, etc) isto não é
totalmente verdadeiro em ambientes abertos, em grandes
superfícies de exploração expostas
ao sol, vento, chuvas, insetos, pássaros,
decomposição e reciclagem de colheitas,
percolação, erosão, enxurradas,
ações de microfauna e microflora,
além de processos de intemperização
de forma lenta e secular. A poluição
genética causada pelo milho inseticida starlink
é uma realidade nos Estados Unidos e uma
razão de sérias preocupações
em biossegurança. O fato concreto e indiscutível
é que a natureza levou milhões de
anos para chegar ao modelo de espécies atuais
em uma marcha ininterrupta, envolvendo fenômenos
bióticos e abióticos. A ambição
comercial procura algo como o elixir da vida, uma
planta eclética (vegeta em qualquer clima
e solo), versátil (útil para vários
fins), vigorosa e produtiva. Procura-se, enfim,
um grande pato, um animal de funções
múltiplas que voa (lento e fácil de
ser abatido no ar, diferente de uma águia,
um predadora de exímias virtudes aéreas),
que anda (desengonçado e se arrastando no
seu peso, diferente de um leopardo, ágil
e furtivo) e que nada e mergulha (canhestramente,
muito diferente de um peixe ou de uma foca, especialistas
nessas funções). Apesar do flagrante
exagero, não há nada melhor que observar
e analisar a natureza em sua profusão de
diversidades, exuberância funcional, interdependência
e riqueza de manifestações em todos
os lugares da Terra. Na ordem natural da vida, o
transgênico tem lógica? Seus postulados
fundamentais têm sentido, coerência
e consistência metodológica como processo
dinâmico e parte da complexidade biótica
e abiótica do Planeta? Transgenia não
se resume a técnicas de manipulação
de DNAs e genes, mas a questões de princípios,
filosofias, idéias de vida e consciência
como condições prévias a qualquer
ação na natureza, ainda mais que o
homem é parte íntima e indissociável
dessa realidade.
b) Transgênico
e biotecnologia:
Na defesa dos transgênicos, muitos argumentam
que a transgenia é uma técnica de
engenharia genética como qualquer outra usada
em biotecnologia. Como não existe nenhuma
planta comercial (cultivar, variedade) que não
tenha sofrido interferência de manipulações
genéticas do homem (cruzamentos, retrocruzamentos,
hibridação, mutagênicos diversos,
cultura de tecidos, embriogênese etc), a transgenia
também é uma técnica de melhoramento
genético. Mas uma técnica eficiente,
rápida, precisa e radicalmente abrangente,
impossível de ser obtida com métodos
convencionais. Nessa linha de argumentação
quem estiver contra os transgênicos estará
contra o melhoramento genético, contra a
modernização e avanços da própria
biotecnologia. Generaliza-se, equivocadamente, uma
dada técnica de um sistema de desenvolvimento
agronômico como sendo uma regra geral e universal
sem fazer nenhuma referência a métodos,
condições instrumentais, efeitos sistêmicos
e avaliação rigorosa de biossegurança.
O melhoramento genético convencional de plantas
pode muito bem lançar mão de técnicas
de engenharia genética sem envolver transgenia.
Seqüenciamento e análise funcional dos
genes do genoma de uma cultura (milho, arroz, cana,
citrus, banana etc) são importantes e estratégicos
para a compreensão de funções,
posições e detalhamento de expressões
gênicas de interesse na agricultura. Este
conhecimento detalhado do DNA pode ser muito útil
para a identificação e seleção
de determinadas expressões genéticas
através de técnicas de marcadores
moleculares na recombinação gênica.
Assim, fica claro que a engenharia genética
não leva necessariamente, ou sirva exclusivamente,
à transgenia. Igualmente, a biotecnologia
não é uma ferramenta de uso privativo
dos transgênicos. A adoção de
uma postura crítica em relação
aos transgênicos não significa ser
contrário à engenharia genética
ou à biotecnologia. A própria engenharia
genética pode ser vista como parte da biotecnologia
que, por sua vez, integra o que se chama ciências
da vida, com aplicações na agropecuária,
saúde, e bem-estar geral das populações.
O que não se pode é jogar tudo no
mesmo "balaio conceitual", simplificar
e mistificar com generalizações incongruentes
para confundir as pessoas. Um pouco de precisão
na linguagem e focalização dos assuntos,
certamente, contribuiria para o franco e sensato
entendimento do fantástico mundo da engenharia
genética.
c) Transgênico
e transgênico:
Há uma tendência de exagerada generalização
em matéria de transgênicos, julgando
que a simples transferência de um gene de
uma espécie para outra tenha o mesmo significado
e abrangência biológica em todos os
casos. No caso de plantas, fala-se em transgênicos
de primeira geração para situar os
exemplos da soja resistente ao glifosato, e do milho
e algodão com qualidade de inseticida. Nesse
grupo, as vantagens construídas ou manipuladas
beneficiam prioritariamente as indústrias
e acessoriamente aos agricultores, não acarretando
nenhum benefício aos consumidores. Enquadram-se
na segunda geração, as plantas engenheiradas
que buscam seduzir os consumidores através
de adições inexistentes ou de aumento
nos teores de componentes dos alimentos (vitaminas,
ácidos graxos insaturados, aminoácidos
essenciais). Por isso são chamados de alimentos
funcionais ou nutracêutricos, isto é,
alimentos com elementos suplementares de alto valor
nutricional que vão além de calorias
e proteínas (arroz enriquecido de vitamina
A, batatas com vitaminas, frutas com vitaminas e
vacinas, etc.). Mas, na prática, de todos
os transgênicos cultivados no mundo a grande
maioria (superior a 95%) diz respeito a características
de resistência a herbicidas e de inseticidas,
isoladamente ou conjuntamente. Isto mostra claramente
que a tecnologia transgênica na agricultura
beneficia quase que exclusivamente as pouquíssimas
empresas de biotecnologia do setor. Mas, o campo
dos transgênicos é vasto e sem limites:
produção de enzimas, vacinas, antibióticos,
insumos industriais, hormônios, remédios
diversos, e tantos outros para aplicação
em alimentação, indústrias
diversas, tratamento de doenças, prevenção
de enfermidades, combate a vetores de doenças
endêmicas ou epidêmicas, diagnósticos
e outras finalidades médico-farmacêuticas.
Produtos de interesse farmacêutico e industrial,
como as proteína antimicrobianas, vêm
sendo produzidos de forma ainda incipientes no leite
de animais especialmente modificados pela engenharia
genética para serem usados como biorreatores,
verdadeiras fábricas celulares de produção
de proteínas e vacinas. Um exemplo clássico
de produto transgênico é a insulina
obtida por uma bactéria que recebeu o gene
humano responsável pela produção
da substância e que é essencial para
a saúde dos diabéticos
Verifica-se, assim, que existem transgênicos
e transgênicos. Não é possível
colocá-los em um mesmo cesto de supermercado
e dizer que tudo é transgênico. Ou
afirmar que todo organismo geneticamente modificado
é nocivo e perigoso. Ou, inversamente, que
todo transgênico é maravilhoso e bom
para a humanidade, como amplamente divulgado pelos
defensores de plantas engenheiradas. Cada caso é
um caso e deve ser tratado com prudência,
ética, consciência, discernimento e
adequadas providências preventivas de biossegurança,
avaliações de riscos, condições
efetivas de rastreabilidade, testes de qualidade
e de eficácia e postura comercial politicamente
correta. E por quê ou para quê todo
esse cuidado? O seqüenciamento do genoma humano
mostrou que o conhecimento dos genes - sua seqüência,
contingente, posição e atividade,
entre outros - constitui, apenas, uma etapa inicial
de mais uma longa e exaustiva fase de pesquisas
ainda mais complexas que é a proteômica,
isto é, o estudo de todas as proteínas
de uma célula, tecido ou organismo. O gene
é apenas uma informação e a
chave da biologia encontra-se provavelmente na proteína,
nos seus aminoácidos constituintes que têm
a habilidade de comandar processos em um organismo
vivo.
Alimento funcional
e nutracêutico:
Muitos pesquisadores imaginam conseguir aprimorar
uma planta dotada de múltiplas qualidades
alimentares capaz de se tornar, em um grupo reduzidíssimo
de exemplares, um alimento completo, uma espécie
de ração balanceada ideal para o homem.
Além de calorias e proteínas convencionais,
essas plantas deveriam ser fontes de sais minerais,
vitaminas, enzimas, hormônios e fatores de
adequação e otimização
do organismo humano, com vistas à preservação
e manutenção da saúde e do
bem-estar corporal e psíquico. Procura-se
uma planta-maravilha que reduza as carências
nutricionais das pessoas e contribua significativamente
para mitigar o problema da fome no mundo. O caso
do arroz dourado, planta geneticamente modificada
para produzir maior quantidade de beta caroteno,
um precursor da vitamina A, vai nessa direção.
Ousadamente criativos, imaginam, inclusive, uma
planta que seja capaz de produzir alimentos e vacinas
simultaneamente. Frutas, verduras e sementes vão
ser programadas para sair do pomar e dos campos
munidas de antígenos habilitados ao combate
e prevenção de várias doenças.
A soja poderá produzir insulina e hormônios
de crescimento humano. O tomate, além de
enriquecido de vitaminas, poderá produzir
antígenos contra vírus. Centenas de
plantas em todo o mundo estão sendo estudadas,
dissecadas, preparadas e testadas para servir a
múltiplas finalidades, desejos e gostos.
Mas, do ponto de vista racional, mercadológico
e da própria natureza humana, tudo isso é
lógico, coerente e consistente? Isto me faz
lembrar de algumas coisas curiosas, como o caso
da carne texturizada de soja no final da década
de 1970 e princípios da de 1980, em pleno
período de crise de matérias-primas
e escassez alimentar. A carne de soja, por ser barata,
nutritiva, completa, vegetal e outros predicados,
deveria atingir tanto consumidores de menor poder
aquisitivo como naturalistas e vegetarianos. Na
época, durante as discussões, chegou-se
a afirmar enfaticamente que os ricos e os de renda
disponível iriam preferir a carne habitual
porque, além dessa despesa específica
não influir no orçamento doméstico
(elasticidade-renda) o consumo fazia parte dos hábitos
alimentares arraigados. Não era o preço
que iria demovê-los de consumir a carne tradicional,
e muito menos a qualidade da carne vegetal de soja
com todos os seus atributos nutricionais e fisiológicos
envolvidos na alimentação. Poderiam
até comer a soja, que não fazia parte
do cardápio rotineiro, mas de outra forma,
como leite, tofu e moyashi. Os pobres e os de menor
renda não iriam querer saber de carne de
soja, por mais barata que fosse. Não fazia
parte dos seus hábitos alimentares, a soja
era coisa de oriental e, principalmente, a carne
natural era a meta, o sonho de consumo a ser atingido
para saboreá-la com gosto, com satisfação
de coisa cara e sinal de ascensão social.
Havia uma psicologia de consumo e simbologia social
no ato de consumir a carne natural e não
simplesmente um motivo estritamente racional. De
uma forma clara e objetiva, comida em qualquer situação
é para quem tem condições de
aquisição, de recursos para consumi-la,
seja barata ou cara. Na dureza dos fatos, pobre
não tem dinheiro para consumir "supérfluos",
como a carne, seja natural ou texturizada. E quem
tem condições aquisitivas vai, sempre,
preferir o produto natural, da melhor qualidade,
no melhor corte e nas melhores condições
de satisfação pessoal. Hoje, passados
mais de vinte anos, apesar da fome que castiga cerca
de 30 milhões de pessoas no Brasil, segundo
estimativas, não se houve falar nada sobre
carne texturizada de soja, uma alternativa alimentar
de alto valor nutricional. Guardadas as devidas
correlações, o mesmo pode ser dito
da mistura de produtos do milho à farinha
de trigo na dieta do consumidor brasileiro, um exemplo
histórico de frustradas tentativas de equacionamento
da panicultura nacional com produtos da própria
agricultura. Mas, o que tudo isso tem a ver com
os transgênicos? Apenas, que as pessoas esclarecidas,
atualizadas, com um certo nível cultural
e social, sabem que alimentação significa
saúde e bem-estar, e que ela está
intimamente associada com o natural e o estilo de
vida. Nada a ver, portanto, com artificialismos
que suscitam dúvidas sobre a crença
inabalável de uma boa comida natural. Mesmo
o arroz dourado transgênico não atende,
sozinho, à totalidade das necessidades de
vitamina A, mas, a , apenas, 10% a 20% das exigências
diárias. Nessas condições,
a maior parte das necessidades totais diárias
de vitamina A vai ter que ser suprida por outras
fontes alimentares. O mesmo raciocínio será
válido para todos os demais alimentos transgênicos
que não terão condições
práticas de ser, em uma única planta
ou em um grupo de alguns exemplares, uma espécie
de ração balanceada integral para
todas as finalidades em todas as fases de uma pessoa
(criança, adolescente, adulto, homem, mulher,
idoso, gestante, convalescente). Como as necessidades
individuais nos membros de uma mesma família
variam muito, imaginar uma solução
miraculosa de alimento funcional padronizado para
todas as pessoas é, no mínimo, abusar
do bom- senso e da inteligência dos consumidores.
Lembram o caso do leite aditivado com o ômega
três, que serviria para reduzir a presença
de elementos indesejáveis ao coração?
Além do preço expressivamente superior
aos demais leites, não era toda pessoa que
precisava desse tipo de alimento em uma família
comum, e a adição mínima (e
cara) do fator não oferecia atrativos de
consumo, que poderiam muito bem ser atendidos por
outras fontes, mais diversificadas, saborosas e
a preços convenientes. Quanto maior o poder
aquisitivo, maior a chance de haver efeito -substituição
e recurso a diferentes alternativas alimentares.
E em uma economia aberta, globalizada isto é
ainda mais realista com a existência de muitos
competidores no mercado. É também
mistificação achar que o alimento
funcional transgênico (fruta, verdura) vá,
em sua grande maioria, para os pobres porque, simplesmente,
eles não conseguem nem comprar o básico
feijão-com-arroz. Comida é uma questão
de distribuição de renda, de políticas
públicas, de políticas econômicas.
Comida é um bem econômico que envolve
capital, tecnologia, infra-estrutura, mão-de-obra
e diversas atividades e interesses que precisam
apresentar desempenhos econômico-financeiros
satisfatórios.
A idéia de querer agrupar em uma única
ou poucas plantas o caráter funcional ou
nutracêutico me faz lembrar de uma outra questão.
Por que a natureza disponibilizou ao homem várias
fontes alimentares espalhadas em várias plantas
e não as agrupou em reduzidíssimo
conjunto de vegetais? O homem é, antes de
mais nada, um ser onívoro, capaz de digerir
diversos tipos de alimentos, ao contrário
de um herbívoro ou carnívoro. Ele
é fruto da interação com o
meio em que vive. Se ele habita zonas costeiras
ou litorâneas sua alimentação
preferencial será originária desse
hábitat, em princípio. Igualmente,
se ele vive em uma floresta tropical úmida
sua dieta básica tende a ser de peixes e
de produtos típicos desse ecossistema. E
agora observe um herbívoro selvagem. Em uma
região rica em diversidade de fontes alimentares
(gramíneas, leguminosas, arbustos, frutas,
flores, etc.) o animal sente-se plenamente atendido
em todas as suas exigências nutricionais e
se desenvolve em sua plenitude biológica,
exibindo exuberância, saúde, porte
e vigor. E é essa idéia de profusão
de alimentos que fundamenta o cultivo de pastagens
consorciadas com gramíneas de múltiplas
variedades e espécies e leguminosas entremeadas
com árvores para melhorar a nutrição
e o bem-estar dos animais. A imagem de uma pastagem
de uma única gramínea, como um belo
gramado ou tapete verde, é coisa para ser
esquecida por não ser compatível com
os princípios de sustentabilidade e qualidade
de vida das pessoas e dos animais. Especificamente
para o homem, quanto mais rica e diversificada (frutas,
hortaliças, legumes, grãos, peixes,
carnes, sementes, amêndoas, etc.) for a sua
dieta mais saudável e produtivo tende a ser
o seu organismo. Apesar de rica e diversificada
essa alimentação não pode ser
consumida de qualquer forma, misturada aleatoriamente
ou em quantidades ou proporções exageradas.
Toda alimentação obedece a um ritual,
a uma ordem de hierarquias digestivas, a uma seqüência
de ingestões, a tempos de preparo e cozimento,
à compatibilidade entre componentes distintos
e outros caprichos culinários. Tudo isso
para evitar sonolência, flatulência,
má digestão, indisposições,
gases, perturbações gastrointestinais,
entre outras. Alimentação, enfim,
é ciência, arte, cultura e sabedoria.
E não um PF - prato-feito - de plantas funcionais
temperado com um pecado original de não-natural
sob rótulo de ração balanceada.
O fato de tornar uma planta produtora ou portadora
de ingredientes como antibióticos, vitaminas,
hormônios, enzimas, vacinas, antimicrobianas,
sais minerais e outros elementos, acaba tornando
uma comida em refeição-remédio.
Isto me parece extremamente intrigante. Normalmente,
um remédio se administra antes ou depois
das refeições, ou em jejum de manhã
ou à noite, ou em horários pré-determinados.
Tomar remédio junto com a refeição
e como refeição é novidade.
Primeiro, há a questão de compatibilidade
de alimentos, de modo a não haver reações
indesejáveis entre remédios e fontes
de alimentação (acidez, digestibilidade)
que podem inativar, potencializar ou reduzir a eficácia
do elemento-alvo. Em segundo, a delicada questão
da receita e modo de preparo para observar os ingredientes,
quantidades, ordem, tempo de cozimento e temperos
admissíveis que não anulem o efeito
desejado. A questão da refeição-remédio
parece simples e jocosa, mas na prática torna-se
levemente indigesta porque ela deve alterar a mecânica
e o funcionamento do metabolismo interno de absorção
do alimento no trato digestivo. A máquina
humana foi diligentemente preparada para a corrida
da vida tal como ela é hoje. Esôfago,
intestino, pulmões, coração,
fígado e rins, apresentam estruturas morfológicas
e fisiológicas de um organismo aprimorado
e complexo para funcionar em determinadas condições
naturais. Imagine um carro moderno. Mesmo que tenha
um motor híbrido para funcionar com vários
combustíveis (gasolina, diesel, etanol, gás)
ele foi desenvolvido com todas as minúcias
técnicas para operar em regime de múltiplas
fontes de alimentação. Ele não
é um carro comum, igual aos convencionais,
como o carro a álcool não é
igual ao carro a diesel. Provavelmente, ele sofreu
inúmeros e inéditos melhoramentos:
motor, suspensão, tanques de combustível,
sistema elétrico, sistema de frenagem, injeção
eletrônica, direção e câmbio
entre outros itens da engenharia veicular. E o corpo
humano, sem nenhum aprimoramento prévio em
termos biológicos na sua morfologia interna
vai exercer adequadamente as suas funções
orgânicas com alimentos significativamente
diferentes dos projetados pela própria natureza?
A microflora e a microfauna do sistema digestivo,
principalmente estômago e intestino, não
vão desenvolver processos complexos de ajustamentos
evolutivos a um novo ecossistema, buscando um novo
patamar de equilíbrio gastrintestinal? Mesmo
sendo onívoros, transformações
profundas nas fontes alimentares podem levar a novas
e inusitadas formas de refeições ensejando
ajustamentos nutricionais, fisiológicos,
quantitativos e qualitativos dos diversos ingredientes
que suprem as necessidades do corpo humano. No fundo,
cria-se a necessidade de uma nova ciência
da nutrição e da saúde alimentar.
A metamorfose simples e imprudente de transformar
um herbívoro típico em carnívoro,
como na administração de restos de
animais na ração em bovinos e ovinos,
desencadeou a doença da vaca louca (encefalopatia
espongiforme bovina) na Europa, contaminou de forma
letal rebanhos e seres humanos. Alterar a ordem
natural das coisas à revelia de exaustivas
pesquisas, avaliações rigorosas de
riscos e medidas preventivas de biossegurança
pode resultar em inéditos e complexos problemas
de difícil equacionamento e solução.
Poluição
genética e zona de exclusão
Uma preocupação angustiante, digna
de um filme de terror, concerne a uma eventual poluição
genética causada pelas plantas transgênicas.
Reiteradas alegações de que os organismos
geneticamente modificados não oferecem riscos
para à saúde e ao meio ambiente carecem
de maiores dados convincentes de comprovação
científica cabal. Igualmente, não
se tem nenhum conhecimento de estudos de planejamento
de medidas preventivas ou saneadoras para o caso
de eventuais acidentes ecológicos. O que
existe de concreto são apenas recomendações
de áreas de refúgio ou áreas
de escape biológico com plantas convencionais
em determinada porcentagem (no caso do milho, 20%
da área total de cultivo e de 50% da área
total, quando em região algodoeira que use
o Bt) como método de gerenciamento de resistência
de insetos ao milho Bt. No caso da soja transgênica
recomenda-se basicamente a rotação
de culturas e a não repetição
da mesma cultura por certo número de safras
para evitar o surgimento de plantas resistentes
ao herbicida. Quanto ao efeito do herbicida a preocupação
maior não se refere ao eventual surgimento
de superervas daninhas, mas a distúrbios
na atividade microbiana do solo, do subsolo e do
lençol freático, em conseqüência
das maciças aplicações localizadas
e pela gradativa contaminação da natureza
pela dispersão no ar atmosférico das
moléculas dos pesticidas. Como o caráter
secativo do agrotóxico exige pulverização
em volume significativo, uma parcela ínfima
do produto evapora e suas moléculas acabam
sendo difundidas no ar atmosférico. Uma região
de agricultura intensiva que faça uso freqüente
de pesticidas diversos (herbicidas, fungicidas,
inseticidas) acaba provocando uma lenta e contínua
disseminação insinuante de ínfimos
átomos desses princípios ativos no
ar, afetando toda a cobertura vegetal, lagos, rios
e nascentes, que por sua vez contaminam todo o lençol
freático. É bom lembrar que as pulverizações
concentram-se em certo período do ano com
sucessivas aplicações por um grande
número de produtores em uma dada região
agrícola. Essa sistemática de procedimentos,
reunindo dosagem do produto, intensidade de aplicação
e tempo de exposição (período),
somada a pesadas adubações químicas
constitui séria preocupação
ambiental, principalmente, quando se observa um
alto nível de ignorância e negligência
nas pesquisas de micro e meso-fauna e flora aquática-de
uma região agrícola. Sabe-se pouca
coisa de algas, líquens, protozoários,
moluscos, crustáceos, peixes, fungos e bactérias
que vivem em meio aquático nos rios, nascentes,
lagos e lençol freático. A aqücultura
no Brasil é insignificante e praticamente
desconhecida. O efeito secativo do glifosato pode
não se manifestar claramente em algas, líquens
e micro plantas aquáticas, mas, seguramente,
serão afetados de alguma forma. Sucessivas
aplicações em longos períodos,
com resíduos depositando nos solos, subsolos,
lençol freático e nas nascentes vão
culminar em interferir no metabolismo desses seres,
afetando a cadeia de vida em condições
hidrogeológicas adversas. A preocupação
não é com a parte visível ou
conhecida das pesquisas agronômicas dos efeitos
dos herbicidas, mas com relação com
a parte desconhecida e não avaliada. Não
se quer saber apenas da ponta do iceberg mas conhecê-lo
integralmente, em toda a sua extensão e profundidade.
Os restos de cultura do transgênico Bacillus
thurisgiensis, por incorporarem no seu germoplasma
a propriedade inseticida, devem acarretar influencias
perturbadoras no ecossistema do solo, principalmente,
da microflora e microfauna. Na natureza, plantas
e microorganismos convivem em círculos estreitos
de correlações, simbioses e antagonismos
em uma rica cadeia de energias vitais, onde cada
espécie vegetal dispõe de um grupo
específico de relações microbianas
e capacidade de desempenhar funções
únicas na natureza. É por isso que
a agricultura orgânica tenta imitar a natureza,
plantando diversas espécies em uma mesma
área, de tal forma que haja um equilíbrio
dinâmico no ecossistema particular, gerando
relações de sinergismos, simbioses
e antagonismos (plantas fixadoras de nitrogênio,
bacteriostáticas, fungistáticas, insetífugas,
etc.). Assim, qualquer movimento incremental de
herbicidas e de outros defensivos agrícolas
torna-se altamente inquietante não só
para a sustentabilidade da agricultura, mas para
a qualidade da água, fonte de vida saudável
do país. A afirmação de que
a soja transgênica diminui o uso de herbicidas
é falaciosa, porque o seu cultivo só
se viabiliza com doses significativamente superior
ao empregado em culturas convencionais; o Brasil
tem, invariavelmente, o problema da soca nas culturas
pós-verão e nos plantios sucessivos
em área irrigadas que exigem outros herbicidas
além do Roundup; os agricultores praticam
a rotação de culturas e plantios diretos
que exigem o tratamento de culturas anteriores com
aplicação de herbicidas diferentes,
uma necessariamente diferente do Roundup. Não
é a alegada diminuição de aplicações
de herbicidas em uma única safra de soja
que interessa, mas a efetiva quantidade em um ano
agrícola com ciclo completo de rotações
programadas. Assim, sem levar em conta a média
de um período de safras, nada garante que
a quantidade e o número de aplicações
de herbicidas será reduzidos
O grande e assustador perigo dos transgênicos
reside na possibilidade de poluição
genética, com a dispersão indiscriminada
de genes engenheirados na natureza. Plantas nativas
sexualmente compatíveis com as transgênicas
(milho, arroz, algodão, etc.) constituem
uma ameaça real no Brasil, um país
muito rico em diversidade vegetal, que sustenta
e mobiliza uma miríade de agentes polinizadores
(abelhas, vespas, besouros, borboletas, pássaros,
mangavas, etc.) com atuação em extensas
áreas. Qualquer cruzamento indesejável
no Brasil é certeza absoluta de gigantescos
problemas por mais que as empresas de biotecnologia
digam que não há perigos ao meio ambiente.
A natureza é cheia de surpresas, de detalhes
e adaptações imprevisíveis,
talvez, por que os ingredientes básicos que
fazem humanos, chimpanzés e plantas superiores
são praticamente os mesmos. O homem compartilha
mais de 98% de seus genes com os chimpanzés,
possui o mesmo número de genes que o milho,
e tem, inclusive, cerca de 230 genes do seu genoma
originários de bactérias, segundo
o seqüenciamento do genoma realizado recentemente.
Isto mostra que o homem é parte íntima
da teia de vida da Terra e que todos os seres vivos
compartilham uma linguagem biológica comum.
Apenas alguns poucos genes diferenciam uma espécie
de outra e a maneira como eles se combinam é
que dão o toque da diferença de seres.
No homem, dos cerca dos 30 mil e 40 mil genes, apenas
1%, é exclusivamente humano. E é da
interação desses genes com o ambiente
que resulta a inteligência e a complexidade
do ser humano. Se existe toda essa similitude entre
espécies diferentes de seres vivos imagine
a diferença entre os da mesma espécie.
No homem, a diferença de DNA de humano para
humano é de apenas 0,1%. Dito de outra forma,
99,9% dos genes do genoma humano são iguais,
fato que detona o conceito de superioridade racial.
Essa característica deve repetir em proporções
semelhantes com as plantas de uma mesma espécie
ou em grupos de uma mesma família. Dessa
forma, uma base genômica compartilhada com
todos os seres vivos, rica diversidade de plantas
da mesma família e de espécies, rica
diversidade de agentes polinizadores, um ecossistema
tropical com clima próprio à permanente
reprodução de insetos, e agricultura
no ano todo graças à irrigação,
nível de luminosidade e temperatura, exigem
cuidados redobrados de biossegurança na questão
da poluição genética de transgênicos.
O perigo é real, existe e já deu demonstração
de gravidade, como o caso do milho starlink nos
Estados Unidos, autorizado somente para ração
animal. Sementes plantadas em menos de 1% dos campos
de milhos acabaram contaminando milhares de hectares
e misturando-se nas colheitas de várias regiões
do país. A limpeza e descontaminação
genética exigiu cerca de um bilhão
de dólares nos seis últimos meses,
segundo fontes da imprensa mundial, e vai, seguramente,
custar expressivos montantes financeiros além
de demandar anos, provavelmente décadas,
de exaustivos trabalhos. Por esses acidentes de
percurso, propositais ou probabilísticos,
pensa-se em delimitar zonas de exclusão de
transgênicos para assegurar com uma margem
confiável de segurança, uma área
livre de plantas geneticamente modificadas, com
vistas à proteção de ecossistemas
estratégicos para futuras gerações,
garantindo a integridade genética original
de espécies selecionadas. Os argumentos para
a definição dessas zonas de exclusão
são vários: preservação
de direito de terceiros, a exemplo de cursos de
água, da poluição atmosférica,
da poluição sonora, da contaminação
de solos e de rios; direito à crença
e à fé na natureza e na vida natural;
dever de participar da luta de sustentabilidade
e viabilidade ecológica do Planeta; direito
à vida e convivência de todos os seres
vivos do Planeta, mesmo pragas e ervas daninhas,
não cabendo a ninguém o poder de decretar
as suas extinções; direito à
liberdade de ser e poder continuar produtor natural;
e, direito de não querer ser "produtor
passivo" de transgênicos causado pela
poluição genética de terceiros.
As zonas de exclusão de transgênicos
deverão ter um cinturão ou arco de
interdição formal e efetivo de plantio
de todo e qualquer organismo geneticamente modificado.
Esse cinturão de proibição
de organismo geneticamente modificado será
estabelecido em função dos riscos
de contaminação e proximidade de lavouras,
agentes polinizadores e outros fenômenos bióticos
e abióticos de dispersão de pólens
e plantas na natureza.
f) Resistências
de pragas e moléstias e vida útil
das espécies cultivadas:
A resistência de pragas e moléstias
a tratamentos químicos na natureza é
uma eterna luta de ataque e defesa, uma briga infindável
do bem contra o mal. Essa luta ou precisamente guerra
biológica sem tréguas é travada
diuturnamente , sutilmente, em todos os lugares
onde há vida, envolvendo plantas, animais
e humanos, em confronto com infinitos inimigos,
muitos invisíveis e altamente letais. A cada
arma aprimorada na forma de remédios, vacinas,
antibióticos, bactericidas, agroquímicos
e defensivos de múltiplos espectros, surge
uma resposta, no início lenta e exangue,
mas poderosa e avassaladora com o passar do tempo.
A história da medicina e da agropecuária
mostra fartos exemplos de evolução
adaptativa dos inimigos biológicos do homem,
das plantas e dos animais. No caso de pragas e moléstias
em plantas, recomendam-se sempre tratamentos preventivos,
de modo a não criar condições
ideais de proliferações nefastas dos
diferentes patógenos, sejam vírus,
bactérias, fungos, insetos ou nematóides.
Na agricultura moderna, o enfoque de produção
não é voltado à doença
ou à praga que eventualmente possam assolar
as culturas. A estratégia de planejamento
de uma lavoura ou criação visa a saúde
e a qualidade do produto no âmbito de uma
ação deliberada de sustentabilidade
ambiental no longo prazo. Rotação
de culturas, plantio direto, cobertura morta, drenagem
do terreno, exposição a ventos e luminosidade,
uso racional de equipamentos e insumos, controle
integrado de pragas e moléstias, tratamentos
de restos de cultura, planejamentos de talhões
e vias de acesso, programação de culturas
e épocas de plantio, são rotinas de
todo agricultor politicamente e ecologicamente correto.
O objetivo do agricultor moderno consciente não
se resume unicamente ao produto comercial e ao lucro,
mas à capacidade de ser produtivo como produtor
rural ao longo do tempo, de modo a assegurar produtividade,
qualidade e bem-estar com a sua atividade. Passa
a ser um gerente perspicaz de um patrimônio
vivo, dinâmico e delicado que é a sua
terra, o seu ganha-pão, o seu lugar sagrado
de trabalho e redenção social. O agricultor,
hoje, é um homem consciente e atuante no
desenvolvimento de multifuncionalidade da agricultura.
E o que o transgênico tem a ver com essa tal
de multifuncionalidade da agricultura? Ao fato de
se introduzir um gene estranho de ação
letal contra pragas de lavoura está se imaginando
que a planta estará, doravante, definitivamente
protegida de ataques causadores de prejuízos
para a agricultura. A planta passa a ser auto-imune
a seus inimigos e desenvolve-se sem a necessidade
de protetores ou aplicações de defensivos
químicos convencionais. Muitos dirão
maravilhas e imaginarão a gratidão
eterna da natureza pela não aplicação
de defensivos. Mas, a própria planta é
um defensivo agrícola (só que incorporado
ao gemoplasma de uma planta) que pode influenciar,
na sua recomposição e reciclagem,
o frágil equilíbrio de atividades
metabólicas de microorganismos do solo e
subsolo. Na realidade, a estratégia de planta-inseticida
na agricultura é uma concepção
congenitamente kamikase, por encerrar uma fragilidade
intrínseca de origem. Uma fragilidade que
se encontra no fato de ser uma planta-inseticida
variedade ou cultivar comercial aperfeiçoada
ou melhorada para alcançar determinados objetivos
e que vai permanecer como tal, sem sofrer alterações
significativas ao longo do tempo de cultivo. Lembre-se
que para ser variedade ou cultivar com registro
no Ministério da Agricultura ela tem que
atender, simultaneamente, a critérios de
distinção, homogeneidade e estabilidade
(o famoso DHE - distinta, homogênea e estável
das sementes). Isto significa que a planta com Bt,
sendo DHE, vai permanecer sem grandes alterações
agronômicas enquanto os seus inimigos vão
continuar se combinando e recombinando geneticamente
e freneticamente com vistas a superar o fator letal.
A superação dessa barreira é
uma mera questão de tempo, como sempre foi
e sempre será (sem ser fatalista ou determinista),
porque esse é o processo de adaptação
e evolução das espécies desde
que o mundo é mundo. Achar que a planta Bt
vai permanecer sendo planta-inseticida é
muita presunção e falta de coerência
e consistência com a lógica evolutiva
dos microorganismos na natureza. Ainda, é
preciso esclarecer que nenhuma variedade de grão
comercial é eterna, de longa duração.
Ela tem vida útil comercial que depende não
só de sua resposta agronômica no campo
(vigorosa, produtiva, resistente a pragas e a doenças,
resistente a estresses hídricos, etc.), mas
de estratégias de empresas sementeiras capazes
de lançar novidades como se faz em qualquer
ramo de negócios. No caso da soja, as variedades
mais antigas, na fase de penetração
e consolidação dos cerrados da década
de 1980 como a Doko e a Cristalina, embora ainda
empregadas em algumas regiões, são
insignificantes em relação ao que
existe de mais recente, ajustadas às novas
situações de mercado e às condições
de resistências a doenças e pragas
igualmente recentes. Com a lei de cultivar acirrando
a concorrência no setor é de se estimar
uma vida útil de variedades comerciais de
sementes em torno de 5 a 8 anos, em média.
Nessas condições, se as próprias
variedades têm uma vida útil determinada
pelo mercado é lógico alterar, do
ponto de vista da sustentabilidade ambiental, toda
uma estrutura biológica da planta (caráter
inseticida no germoplasma) para algo que é
essencialmente temporário e descartável,
apesar de todo o potencial de distúrbios
à microflora e à microfauna de solos,
subsolos e recursos hídricos?
Mecanismos de autocontrole:
O avanço da ciência e da tecnologia
no campo da biologia molecular desvendando mistérios
da estrutura genética dos seres vivos através
de seqüenciamentos genômicos é
uma realidade e uma grande revolução
de idéias e conceitos sobre a vida. A possibilidade
de manipulações genéticas de
toda ordem (clonagem, organismos geneticamente modificados
para múltiplas finalidades, fertilização
e reprodução artificial, cultura de
células embrionárias, etc.) traz profundas
alterações nos direitos e liberdades
das pessoas, empresas, instituições
e governos. É uma nova era, que exige legislações
específicas e oportunas, normas claras de
biossegurança, limites de bioética,
código explícito de bioprospecção,
e agências de fiscalização e
controle, entre outras instituições
e organizações à altura dos
desafios dos novos tempos. Particularmente ao setor
de agronegócios, o poder econômico
das empresas diretamente concernentes com a manipulação
genética de plantas constitui fator de incontáveis
preocupações. São em reduzidíssimo
número (Monsanto, Aventis, Syngenta, principalmente)
e atuam tanto na área de genética
vegetal, convertendo as plantas-alvos em transgênicos,
como na área industrial na produção
de defensivos agrícolas específicos.
À primeira vista trata-se de um oligopólio
dos mais temíveis e com forte poder de subordinação
sobre os agricultores e consumidores. Mas será
que esse temor existe de fato? A análise
histórica de movimentos semelhantes havidos
no passado em vários segmentos produtivos
é um bom ponto de partida para um correto
e ponderado entendimento da questão. De imediato,
um aparato jurídico-institucional com leis
apropriadas e oportunas e uma instância organizacional
ágil e competente de fiscalização
e controle constituem providências fundamentais
para o estabelecimento de regras mínimas
de convivência de interesses. Assim, a reação
e o comportamento dos consumidores, dos agricultores
e suas organizações, das indústrias
processadoras e exportadoras, das instituições
de pesquisa e ensino, das associações
de classes profissionais e setoriais, das instituições
de defesa do consumidor e da concorrência,
entre outros, podem, em uma sociedade pluralista
e democrática, definir e estabelecer normas
claras de conduta para todos os agentes econômicos
interessados na questão dos transgênicos.
Dessa forma, só haverá concorrência
deletéria ou nefasta de setores dominantes
na exisrência de omissões, conivências,
indiferenças e incompetências da sociedade
e do governo. Em uma situação de livre
concorrência, de funcionamento adequado das
instituições e dos agentes econômicos,
de existência de políticas públicas
explícitas, e sistemas de cobrança
de responsabilidades a tendência é
de equilíbrio e plena racionalidade das forças
de mercado. Lembra da época do pró-álcool
em que se temia que todo o Brasil, principalmente
o Estado de São Paulo, se tornasse um imenso
canavial em detrimento de culturas tradicionais?
E o caso da soja, com a equivocada controvérsia
de agricultura de exportação versus
agricultura de subsistência, que foi tema
de acirrados debates nos quatro cantos do país
com o temor que a leguminosa fosse dominar toda
a lavoura nacional? E o caso do carro a álcool,
que dominava o parque produtivo nacional e dificultava
a comercialização de modelos a gasolina?
Esses exemplos mostram que em uma economia de livre
iniciativa e com abertura razoável de comércio
exterior prevalecem mecanismos de autocontrole que
tendem a trazer todo o sistema a um equilíbrio.
São forças de mercado e da sociedade
que se interagem e se ajustam entre si de forma
dinâmica, complexa, sistêmica e interdependente.
Reações de consumidores e outros produtores
concorrentes, fortalecimento de produtores de insumos
e matérias-primas, entrada de novos competidores,
desenvolvimento de novas tecnologias, alterações
fiscais e tributárias, alterações
na política de juros e condições
de financiamento, mudanças na política
cambial e monetária, atuação
de sindicatos e movimento de consumidores ou associações
de classes, fortalecimento de segmentos profissionais
com a maturação de negócios
em novas tecnologias, mudanças de comando
nas decisões políticas e administrativas,
mudanças e exigências de políticas
ambientais constituem exemplos de fatores que culminam
por influir nos mecanismos de autocontrole ou autoregulação,
trazendo todo o sistema econômico envolvido
a uma situação de equilíbrio
de forças competitivas no mercado. Todos
acabam encontrando o seu lugar, o seu nicho no mercado.
É por isso que se diz, simplificadamente,
que a longo prazo não existem monopólios.
O equilíbrio dinâmico, ou menos iníqüo,
das forças competitivas em um mercado de
livre iniciativa depende do grau de conscientização
de todos os agentes econômicos presentes em
uma sociedade, como produtores, consumidores, governo
e cidadão conscientes.
Conclusão
Com o tema de Agricultura
Transgênica e o Grilo, com uma clara alusão
à história infantil do Pinóquio,
procurou-se mostrar uma faceta de uma mesma realidade
dos organismos geneticamente modificados. Todo mundo
se preocupa prioritariamente com o poder econômico
e o sentido da dominação de algo realmente
poderoso no seio dos negócios da biotecnologia,
onde estão em jogo bilhões de dólares
e muitos interesses. Mas, existe uma característica
singular dentro dessa realidade que é povo
como consumidor, produtor rural, empresário
do agronegócio, político, legislador,
jurista ou simples cidadão comum. E é
esse povo que se procurou alcançar com o
artigo, explorando sentimentos, angústias,
emoções, perspectivas, questionamentos
e colocações práticas de interesse
cotidiano das pessoas. É lógico que
não se esgotou o assunto, tão polêmico
e abrangente para a própria sustentabilidade
do Planeta. Mas foi uma tentativa de reflexão,
ponderação e crítica sobre
um assunto palpitante, atual e que concerne a todos.
Foi também, uma forma de mostrar que a vida
é uma eterna encruzilhada, uma escolha entre
múltiplas alternativas. Na biologia, depois
do seqüenciamento genômico vem a análise
proteômica, a análise das proteínas
de um ser vivo, abrindo novas linhas de pesquisas,
novas e inebriantes perspectivas de entender a complexidade
da vida. O caminho dessa nova realidade, além
de muita ciência e tecnologia, será
trilhado com arte, sabedoria, prudência, ética,
solidariedade e muito trabalho.
Brasília,
em 13 de agosto de 2001
Fonte: Alberto Nobuoki Momma,
economista e engenheiro agrônomo
doutor em desenvolvimento agrícola