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VEJA O DISCURSO
DO DEPUTADO FERNANDO GABEIRA
Panorama Ambiental
Brasília (DF) – Brasil
Outubro de 2003
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Sr. Presidente,
Sras. e Srs. Deputados, estou na tribuna para comunicar
que deixei o Partido dos Trabalhadores. Portanto,
saio da base do Governo para uma atuação
independente. Hesitei muito em apresentar aos senhores
um discurso escrito. Nos últimos dias as
idéias passam muito rapidamente pela cabeça
e os textos ficam também muito rapidamente
superados. Saio do PT por algumas das razões
divulgadas pela imprensa que não vou repeti-las
em sua totalidade. Uma saída não deve
ser vista como um rosário de lamentações.
É preciso celebrar também algumas
vitórias em comum. A mais importante delas,
quando apesar da distância física meu
coração estava com o Governo, foi
quando o Brasil decidiu condenar a guerra no Iraque.
Muitos temiam que os Estados Unidos iriam se sentir
confrontados. Mas era uma aventura militar condenada
ao fracasso. Aliás, quotidianamente demonstrado
nos noticiários de televisão. Hoje,
podemos dizer que grande parte do povo norte-americano,
sobretudo o informado, consideraria a rejeição
à guerra como um gesto de verdadeira amizade
do Brasil com os Estados Unidos. Para isso, Sr.
Presidente, servem as decisões com uma visão
de longo alcance. No entanto, foi grande o nosso
desencontro numa questão de política
externa: Cuba. Era preciso denunciar as violações
de direitos humanos; pedir pelo poeta Raúl
Rivero; por jornalistas e intelectuais presos; condenar
a execução a toque de caixa dos seqüestradores
de um barco. Era preciso também falar com
a oposição cubana. Nada disso foi
feito. E eram, na minha opinião, interesses
nacionais que estavam em jogo. Nada tenho contra
afetos e gratidões pessoais. São faculdades
humanas admiráveis, mas que não podem
prevalecer sobre os nossos interesses de Estado.
Aceitar a expulsão dos Repórteres
sem Fronteiras no Conselho de Direitos Humanos,
em Genebra, foi também uma dor no coração.
Se pudéssemos discutir isso democraticamente,
veriam que não é uma posição
realmente brasileira, mas uma ação
entre amigos e compadres. E a relação
do Brasil com Cuba não pode ser reduzida
à relação de amigos e compadres.
Ela é muito mais complexa e muito mais importante
para nossa estratégia. Também, nesse
tópico, é preciso ir direto ao ponto.
Nossa política externa vive um grande sobressalto
caracterizado pela falta de pagamento aos embaixadores
e funcionários. Não há política
externa que resista a esse tipo de pressão
cotidiana. Nesse momento da globalização,
precisamos de bons funcionários no exterior,
precisamos ampliar e melhorar as condições
de nossa diplomacia. Embaixadores e funcionários
brasileiros assediados por credores não é
o tipo de serviço diplomático que
queremos para o Brasil. Mas, no campo dos direitos
humanos, o ponto fundamental para ser introduzido
e que me separa também do Governo é
a guerrilha do Araguaia, o direito de as famílias
terem acesso à ossada dos seus entes queridos
e de termos acesso aos documentos históricos
do País. Conhecer esse material alude à
democracia; mas a prerrogativa da família
de recuperar a ossada de seus membros relaciona-se
à civilização brasileira. As
Forças Armadas estão convencidas desse
direito. Elas aceitam isso. Se um pequeno grupo
de militares não aceitar tal prerrogativa,
vamos dizer claramente a eles que não negociamos
os fundamentos da civilização só
porque há um grupo de militares insatisfeitos.
“Que vengan los toros”, como dizem os espanhóis.
Façamos como os chilenos, os argentinos,
que ajustaram adequadamente as contas com o passado.
De todas as questões ambientais que me dividem
no momento na relação com o Governo,
selecionei uma, Sr. Presidente: a Medida Provisória
que autoriza a plantação de sementes
transgênicas introduzidas clandestinamente
no Brasil. Se tivéssemos o poder de realizar
aqui uma teleconferência com 100 estadistas
do mundo inteiro e perguntássemos a eles
o que fariam se plantassem um alimento transgênico
clandestinamente em seu país, eles responderiam
uníssonos: “Eu o apreenderia e o tiraria
de circulação.” Isso foi feito no
Canadá. Aquele país discutia 2 alimentos
transgênicos, um que já estava autorizado
e um outro ainda em processo de exame. Quando surgiram
no meio ambiente canadense vestígios daquele
que não estava autorizado, o Governo obrigou
os plantadores a recolhê-los, eles tiveram
um prejuízo de 12 milhões de dólares
e a Monsanto teve um prejuízo de 24 milhões
de dólares. Mas qual era a mensagem implícita?
A mensagem era que o Canadá autoriza a produção
de transgênicos, mas desde que passem pelos
crivos do Estado. Isso é uma questão
fundamental e que não foi examinada. Na verdade,
quando o Governo cede nas questões, além
da mensagem perturbadora que passam para os outros
e que põe em perigo o meio ambiente, ele
se mostra realmente incapaz de entender os tempos
modernos. Essa geração de políticos
que agora chega ao Governo ainda trabalha muito
com os critérios da produção
e distribuição de bens materiais.
Ela não compreende que dirigir uma sociedade
hoje, além de trabalhar a produção
e distribuição de bens materiais,
trabalhamos a produção, a distribuição
e a administração dos riscos. E isso
nós não perdoamos ao Governo brasileiro
nem perdoamos à elite do Rio Grande do Sul:
obrigar o povo brasileiro a comer uma soja transgênica
sem que haja um rótulo avisando que essa
soja é transgênica. E não me
venham dizer que previram isso nos artigos, porque
isso está previsto. Mas estou falando da
realidade que todos nós conhecemos. Se alguém
quisesse rotular a soja transgênica no Rio
Grande do Sul, hoje, bastava dirigir ou controlar
15 empresas, talvez 10 operadoras e 5 moageiras,
e já teríamos esse trabalho feito.
Mas nada foi feito. Então, não há
Direito que obrigue os consumidores brasileiros
a consumirem um produto sem que saibam o que realmente
estão consumindo. O Presidente da República,
num certo momento, disse que gostaria de discutir
as questões dos transgênicos apenas
cientificamente. Mas, senhores, se reduzirmos a
questão dos transgênicos à questão
científica, vamos abstrair as questões
econômica, política e social? E vamos
abstrair também o fato de que o alimento
é um alimento e que nele há a questão
cultural de um ponto de vista estritamente científico?
Sr. Presidente da República, não há
nenhuma contra-indicação em relação
ao canibalismo. No entanto, não comemos carne
humana. Pelo menos não havia contra-indicação
ao canibalismo até o surgimento da doença
da “vaca louca”. Mas se deixamos pura e simplesmente
para os cientistas, eles não vão abordar
a realidade futura. Trabalho nessa questão
dos transgênicos com o princípio de
precaução, não com a síndrome
do pânico. Temos condições de
oferecer ao Governo os caminhos, mas é necessário
que ele tenha interesse também de corrigir
o erro. Nesse momento, o que vemos no Governo é
uma incapacidade de perceber que cometeu um grande
erro, uma incapacidade de discutir com seus adversários
uma saída honrosa para esse impasse em que
ele nos colocou. Gostaria também de usar
algumas palavras finais para examinar criticamente
a minha passagem por essa experiência comum.
Intelectualmente, tinha visão da precariedade
do Estado e das circunstâncias em que nos
movemos. O domínio da política pela
economia, a transformação dos governantes
em administradores do caos vem do próprio
processo de globalização. Observei
o meu espaço aqui deste Parlamento em comparação
com as Bolsas de Valores. As bolsas de valores são
espaços onde as pessoas gritam e às
vezes têm uma psicologia diorda. No entanto,
as bolsas de valores passaram a prevalecer sobre
as decisões que tomamos no Parlamento, a
irracionalidade prevalece sobre a racionalidade,
e nós, os políticos, passamos a ser
funcionários do grande capital tentando aplacar
os seus sustos, as suas neuroses e os seus medos.
Ora, não era esse o caminho que eu queria
trilhar, existe autonomia da política, existem
políticos do século passado com visão
de conjunto, visão de longo alcance e aplicam
essa visão de longo alcance em cada circunstância
do seu cotidiano, mas quando se transforma em um
Governo apenas que gera os interesses do grande
capital, os problemas da Bolsa de Valores e correlatos,
quando se transforma nisso, perdemos a visão
do futuro. Administrar o quotidiano e, ao administrá-lo,
passamos a preocupar-nos apenas com as eleições
e estar no Governo, mas a nossa geração
não pode se contentar com estar no Governo,
nem pode dizer que quer continuar no Governo, ela
deve dizer por que está no Governo, o que
estamos fazendo no Governo, o que queremos do Governo.
Isso, infelizmente não foi feito. Na verdade,
eu poderia ter percebido isso. Mas eu me deixei
também me levar pelo entusiasmo popular e
pelo meu entusiasmo. Eu achei que havia uma saída
no Estado. Mas eu sabia eu o Estado está
em frangalhos, eu sabia que o grande capital nos
deixou uma margem mínima de atuação,
mas achava que era possível criar. Hoje eu
não digo claramente para todos que meu sonho
acabou. Não é isso. Eu digo claramente
que sonhei um sonho errado. O sonho errado foi confiar
que nós podíamos fazer tudo aquilo
que nós prometíamos rapidamente, confiar
que poderíamos fazer tudo aquilo num período
de 4 anos ou imediatamente. Não. O sonho
foi pior ainda: foi confiar que era possível
transformar o Brasil a partir do Estado; foi não
compreender que o Estado já perdeu o dinamismo
e que o dinamismo agora se encontra na sociedade.
Se o Brasil vai se transformar, vai se transformar
através da sociedade. A sociedade é
que vai impor os caminhos e o Estado virá
- que bom que venha - talvez cansado, talvez lento,
mas virá acompanhando nosso caminho. Eu quero
dizer que até hoje, até há
poucos dias passados, eu fiquei muito triste porque
eu passei a partilhar desse erro da sociedade brasileira
que era esperar um Governo salvador e ficar triste,
amargurado porque o Governo salvador não
nos salvava, o Governo salvador não tomava
as medidas que nós esperávamos. Aí
eu recuperei a minha alegria quando disse: “Não,
vou sair e vou buscar os meus caminhos.” E com isso
abri uma ampla clareira, pude respirar pela primeira
vez e estou respirando muito saindo desse clima
sufocante das esperanças negadas. Eu gostaria
de apresentar um quadro mais amplo, mas prometo
novos pronunciamentos. Através da minha atuação,
acho que ficará mais clara a visão
do momento histórico que vivemos. Quanto
mais prolongarmos as cerimônias do adeus,
menos tempo teremos para tratar do próximo
passo: o enfrentamento nos temas urgentes, como
a questão dos transgênicos, já
mencionada, e o choque de nossas visões sobre
o Pantanal, a julgar pelo discurso do Presidente.
Como V.Exa. sabe, Sr. Presidente, apresentei, na
quinta-feira, um projeto de lei criando o Território
Federal do Pantanal do Mato Grosso, Pantanal porque
iria se separar do Mato Grosso. E vejo o Presidente
dizer que há projetos de industrialização,
de exploração de minérios e
outros no Pantanal. Essas visões divergentes
são importantíssimas para o futuro
do Brasil. O triunfo de uma ou outra concepção
é importantíssimo para o Brasil. Quando
entrei no Partido dos Trabalhadores ou trabalhei
com os verdes para se unirem aos trabalhadores,
raciocinava ainda com um quadro europeu. Eu pensava
que o Partido dos Trabalhadores poderia desempenhar
nesse processo um papel que a Social Democracia
Européia julgou, mas agora, quando o Partido
dos Trabalhadores chega ao Governo, vejo que a perspectiva
dos dirigentes é parecida com a dos dirigentes
também comunistas do Leste Europeu, uma visão
de produtivismo estreita, sem a compreensão
das variáveis ambientais. Então, a
sucessão desses desencontros entre mim e
muitos companheiros do Governo, foi me levando à
compreensão de que realmente essa experiência
da Esquerda só poderia ser bem classificada
numa frase do meu querido companheiro e eleitor
Cazuza: é um museu de grandes novidades.
Eu deixo hoje, portanto, de pertencer a um partido
e a um Governo mas não levo nenhum sentimento
de separação. De uma certa forma todos
estamos juntos nessa trama que é a história
do Brasil. Às vezes, mudamos de papel, de
lugar, de figurino, mas vamos continuar sempre parte
dela. E como parte dela eu quero dizer àqueles,
que, às vezes, se esquecem da longa caminhada,
que é a história do Brasil, estarei
aberto, disposto a contribuir e ajudar a sociedade
para que o Governo, se não reencontrar o
seu caminho, pelo menos perder esse ritmo lento
e exasperante ao qual nos submeteu nesses primeiros
nove meses. Muito obrigado, Sr. Presidente, muito
obrigado a todos.
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa