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MINISTÉRIO
DA DEFESA DEFINE NOVAS DIRETRIZES
PARA A RELAÇÃO ENTRE ÍNDIOS
E MILITARES
Panorama Ambiental
São Paulo (SP) - Brasil
Outubro de 2003
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A portaria 983,
de 17/10/203, abre espaço para avanços
no convívio entre os povos indígenas
e as Forças Armadas brasileiras, ampliando
o escopo da Portaria 020, de 02/04/2003. O sucesso
da norma depende da implementação
de suas diretrizes na prática.
A recém-publicada
portaria nº 983/DPE/SPEAI/MD, de 17/10/2003,
estabeleceu novas diretrizes para o relacionamento
entre as comunidades indígenas e as Forças
Armadas. As diretrizes abrangem as três Forças
Armadas - Exército, Marinha e Aeronáutica
- , não se restringindo apenas ao Exército
como era o caso da Portaria nº20 www.socioambiental.org/website/noticias/indios/portaria.html
- EME, de 02/04/2003.
Em síntese, a nova portaria estabelece que
as três Forças conjuntamente observem
as seguintes exigências, entre outras:
considerar estudos e medidas necessárias
para a minimização do impacto socioambiental
nas comunidades indígenas, quando da instalação
ou transferência de unidades militares em
TIs, bem como realização de obras
ou serviços técnicos em terras indígenas;
a necessidade de se incluir nos currículos
das Escolas de Alto Estudos Militares e nas Escolas
de Formação e Aperfeiçoamento
assuntos referentes à política indigenista
brasileira, situação geral dos povos
indígenas e legislação relacionada;
estabelecer convênios com a FUNAI e a FUNASA,
visando a apoiar projetos de saúde para as
populações indígenas;
estabelecer normas próprias de convivência,
com vistas a orientar a conduta de militares ao
tratar com os povos indígenas, considerando
as peculiaridades de cada grupo indígena,
incluindo orientações dirigidas a
unidades militares localizadas dentro ou próximas
de terras indígenas, que deverão constar
dos programas de instrução e adestramento
dos comandos subordinados;
A aprovação destas diretrizes aponta
no sentido de um avanço no tratamento da
questão, e atende a algumas das demandas
levantadas pelas organizações indígenas
que vêm participando do processo de aproximação
e diálogo entre os povos indígenas
e as Forças Armadas, iniciado na Conferência
Mundial das Nações Unidas contra o
Racismo, Descriminação Racial, Xenofobia
e Intolerância Correlata, que veio a tomar
corpo através dos Diálogos de Manaus.
O ISA vem mantendo uma coletânea de artigos,
notícias e documentos que registram esse
processo político.
A ênfase na necessidade de harmonização
da relação entre os atores, bem como
nas atividades de apoio à saúde, chamadas
“complementares”, denotam que, ainda que de forma
fragmentada ou esparsa, o canal de diálogo
permanece aberto. O Ministério da Defesa
reconhece expressamente o papel dos povos indígenas
como aliados na defesa nacional, na medida em que
vivem na região e têm valioso conhecimento
sobre o território que habitam.
Estudos de Impacto
Ambiental, Social e Cultural
A portaria refere-se,
mais de uma vez, à necessidade de proceder
a estudos de impacto para a instalação
de unidades militares dentro ou nas proximidades
de terras indígenas, incluindo não
apenas impactos ambientais, mas também sociais
e culturais. A medida visa minimizar o grau de conflito
causado pela proximidade das instalações
militares de comunidades, aliada à falta
de preparo dos militares que atuam nestas áreas.
Por sua vez, as organizações indígenas
- que vêm cumprindo papel fundamental neste
processo político - reivindicam que tais
instalações militares não sejam
instaladas perto ou no interior de comunidades.
Ainda que admitam a presença do Exército
dentro de seus territórios, quando situados
em faixa de fronteira, as organizações
indígenas vêm entendendo que a proximidade
das instalações militares de suas
comunidades é o principal fator causador
de impactos socio-culturais, especialmente junto
às mulheres. É importante que esta
orientação venha a ser incorporada
pelo Estado-Maior de Defesa e pelos Comandos das
três Forças, quando da realização
de tais estudos.
Decreto 4.412
Apesar do avanço
trazido pela portaria n º 983, a mesma baseia-se
no Decreto 4.412, de 07/10/2002, o qual tem sua
constitucionalidade veementemente questionada -
contrariamente ao que afirma o Ministério
da Defesa - pelo movimento indígena, sociedade
civil e pelo Ministério Público Federal.
O Decreto 4.412 dá amplas prerrogativas unilaterais
às Forças Armadas para agir dentro
de terras indígenas, sem qualquer ressalva
ou observância quanto à sua localização;
tanto é assim que não faz qualquer
distinção entre terras indígenas
situadas em faixa de fronteira e as demais. Ademais,
não atenta para o disposto na Lei Complementar
n º 97, que dispõe que o emprego das
Forças Armadas em operações
de paz somente deve se dar caso os órgãos
de polícia competentes não demonstrem
efetividade.
A própria aprovação da portaria
983 e de todas as condicionantes para o exercício
de atividades militares em terras indígenas
demonstra que o Decreto 4.412 é abusivo ao
dar um cheque em branco para a atuação
das Forças Armadas.
Direito de consulta
prévia
A portaria n º
983 determina que as Forças Armadas devem,
“após a definição dos locais
para a instalação de Organização
Militar (OM) em terras indígenas ou próxima
delas, informar tanto as comunidades indígenas
como suas instâncias representativas”. Admitida
a presença militar em terras indígenas
situadas em faixa de fronteira, é preciso
ressaltar que tal ocupação deve obedecer
certos critérios de forma a respeitar a organização
social e a cultura indígena que habita o
local.
Um desses critérios é a necessidade
de consulta prévia às comunidades
indígenas, para a instalação
e construção de guarnições
militares dentro de suas terras. Tal direito - legalmente
exigível no nosso ordenamento - advém
da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas
e Tribais em Países Independentes, ratificada
pelo Brasil através do Decreto Legislativo
n º 143/02.
Convenção
da OIT
Artigo 6º 1.
Ao aplicar às disposições da
presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos
apropriados e, particularmente, através de
suas instituições representativas,
cada vez que sejam previstas medidas legislativas
ou administrativas suscetíveis de afetá-los
diretamente; b) estabelecer os meios através
dos quais os povos interessados possam participar
livremente, pelo menos na mesma medida que outros
setores da população e em todos os
níveis, na adoção de decisões
em instituições efetivas ou organismos
administrativos e de outra natureza responsáveis
pelas políticas e programas que lhes sejam
concernentes; c) estabelecer os meios para o pleno
desenvolvimento das instituições e
iniciativas dos povos e, nos casos apropriados,
fornecer os recursos necessários para esse
fim. 2. As consultas realizadas na aplicação
desta Convenção deverão ser
efetuadas com boa fé e de maneira apropriada
às circunstâncias, com o objetivo de
se chegar a um acordo e conseguir o consentimento
acerca das medidas propostas.
Assim, o mero informe às comunidades de uma
decisão já tomada e consumada não
atende ao disposto na Convenção OIT
169. A consulta deve ser feita previamente, de boa
fé e de forma a buscar um consenso entre
as partes.
Representatividade
das comunidades indígenas
As orientações
específicas contidas na portaria n º
983 declaram, a certa altura, que as “comunidades
indígenas têm representatividade própria
ou agem por intermédio de órgãos
públicos como a FUNAI, ou mesmo religiosos
nacionais, razão pela qual não há
qualquer motivo para que organizações
não governamentais, particularmente estrangeiras,
apresentem-se como seus representantes”.
Neste ponto em particular, há que se lembrar
que os povos indígenas têm representatividade
própria e autonomia na definição
de suas prioridades de vida, estando estes povos
representados por organizações indígenas
por eles criadas (que também são legalmente
organizações não governamentais)
ou diretamente, através de suas lideranças
tradicionais. Não cabe a ONGs - nacionais
ou estrangeiras - , tampouco a quaisquer órgãos
religiosos ou públicos, assumir o papel de
representá-los, direta ou indiretamente.
A Convenção OIT 169 expressamente
afirma a autonomia dos povos indígenas no
seu art. 7º.
Convenção OIT, Art. 7.1. Os povos
interessados deverão ter o direito de escolher
suas, próprias prioridades no que diz respeito
ao processo de desenvolvimento, na medida em que
ele afete as suas vidas, crenças, instituições
e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam
ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na
medida do possível, o seu próprio
desenvolvimento econômico, social e cultural.
Além disso, esses povos deverão participar
da formulação, aplicação
e avaliação dos planos e programas
de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis
de afetá-los diretamente.
Monitoramento do
cumprimento das Diretrizes
Para que não
se torne apenas um documento legal sem eficácia
prática, é preciso que haja um monitoramento
constante da implementação das Diretrizes
da portaria n º 983, para que os avanços
constatados no documento sejam refletidos junto
às comunidades. Cabe ressaltar que a implementação
da portaria será feita a partir de uma instrução
normativa elaborada pelas três Forças,
conforme rege o artigo 6 do documento.
Além disso, como a portaria prevê novas
formas de conduta e procedimentos internos das Forças
Armadas no que se refere à relação
com os índios - como, por exemplo, “considerar
a diversidade de cada povo”, realizar estágios
para militares com monitoramento antropológico,
“dar orientações a suas unidades no
trato com populações indígenas”
e buscar entendimento com as “instâncias representativas”
dos índios - é preciso saber de que
forma isso será posto em prática.
Neste sentido, a portaria confere à Secretaria
de Política, Estratégia e Assuntos
Internacionais do Ministério da Defesa o
dever de acompanhar as atividades das três
Forças no tocante a seu relacionamento com
os povos indígenas em seus territórios.
Ainda assim, é preciso que as comunidades
ou organizações indígenas tenham
acesso a informações relacionadas
à implementação das Diretrizes,
para que possam também controlar sua evolução.
Durante os Diálogos de Manaus, foi aprovado
um encaminhamento no sentido da criação
de uma comissão interministerial, composta
por representantes indígenas e do governo,
cujo mandato seria justamente o de monitorar e avaliar
o processo de implementação prática
dessas diretrizes, comissão esta que não
veio a ser criada ainda. É importante que
seja feito um esforço no sentido da formalização
deste canal de diálogo, para que se cristalize
um novo paradigma de relação entre
os dois atores sociais, pautado pelos valores de
harmonia e respeito consolidados na portaria nº
983.
Fonte: ISA – Instituto Sócio
Ambiental (www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa