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BOTOS E
JACARÉS VIRAM ISCA DE
“URUBU D’ÁGUA” NA AMAZÔNIA
Panorama Ambiental
São Paulo (SP) - Brasil
Setembro de 2003
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Denúncias
de pesquisadores do Inpa e do Instituto Mamirauá
revelam que a matança dos animais atingiu
níveis alarmantes, e até mesmo uma
rede especializada de fornecedores de botos e jacarés
se formou no alto e médio Rio Solimões.
A carne dos bichos é considerada excelente
para pescar piracatinga, peixe necrófago
conhecido como urubu d'água, que é
exportado para a Colômbia.
Ora carcaças
de jacarés, ora meia dúzia de botos
mortos às margens do Rio Solimões
e seus afluentes. É o que os pesquisadores
do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(Inpa) e do Instituto de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá têm encontrado frequentemente
em seus trabalhos de campo, até mesmo em
áreas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá. Os casos vêm se repetido
nos últimos três anos: botos e jacarés
são capturados para virar isca de piracatinga
(Calophysus macropterus).
Segundo Guillermo Estupiñan, assessor de
Sistemas para a Exploração Sustentável
de Recursos Pesqueiros do Instituto
de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá,
já existem pessoas especializados na caça
dos botos e jacarés, principalmente nas regiões
de Tefé, Fonte Boa e Jutaí, no Estado
do Amazonas. Os animais são capturados com
arpões e golpes na cabeça e sua carne
é colocada em gaiolas para onde são
atraídas as piracatingas. Sem qualquer tipo
de fiscalização, os peixes são
embarcados no porto de Tabatinga (AM) para Letícia,
na Colômbia, onde são armazenados e
posteriormente enviados a Bogotá, onde são
filetados para consumo. Parte do produto é
vendida no mercado colombiano, por ser um peixe
barato, e a outra parte é reexportada para
países como os Estados Unidos, onde o bagre
– grupo ao qual pertence a piracatinga – tem bastante
aceitação.
Mais impressionante que o fim dado aos jacarés
e botos, é o número que consta de
um levantamento do projeto Pró-Várzea,
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama): cerca de 140
toneladas de piracatinga passaram pelo porto de
Tabatinga (AM), via de acesso à Colômbia,
entre maio e dezembro de 2001. Isso significa que,
anualmente, a pesca desse peixe estimula a matança
de 8 mil jacarés – a partir de estimativa
do biólogo Ronis da Silveira, professor da
Universidade Federal do Amazonas - e 150 botos,
de acordo com a pesquisadora Vera da Silva, do Inpa,
que estuda botos há dez anos na Reserva Mamirauá.
Para se ter uma idéia, com um jacaré
de três metros, o pescador consegue apanhar
cerca de 100 quilos de piracatinga, e com um boto
adulto pega em média 200 quilos do peixe.
Para Vera da Silva, o que mais chama a atenção
é que essa prática resultou em uma
desvalorização espantosa dos animais.
Um quilo da piracatinga vale no mercado da região
o mesmo que o quilo do jacaré, cerca de R$0,60
ou US$0,18. “Essa conversão é ridícula.
Não só a carne do jacaré é
mais nutritiva e saborosa, como está sendo
desperdiçada sua pele”, observa Vera. Um
centímetro de pele de jacaré vale
entre US$2 e US$9, revela o professor Ronis da Silveira.
Segundo ele, a caça do jacaré não
é novidade. “Nos anos 70 tirava-se a pele
e jogava-se fora a carne. Nos anos 90 tirava-se
a carne e jogava-se fora a pele. Agora, jogam-se
fora os dois”, resume Ronis. O preço do boto,
na região do Solimões, pode variar
de R$ 50,00 a R$ 100,00 por animal.
Impactos
No que diz respeito
aos botos, Vera da Silva diz que a maior preocupação
é que a reprodução desses animais
começa entre os seis e oito anos de vida
e, portanto, a captura como vem acontecendo – cerca
de 150 animais por ano – pode comprometer grupos
inteiros. “O boto da Amazônia é o único
golfinho de rio que ainda não está
em extinção.”
Já em relação aos jacarés,
apesar da dimensão da atual fase da caça
ao animal – cerca de 8 mil por ano – não
existe perigo de extinção da espécie.
“Somente no lago Mamirauá, na bacia do rio
Solimões, podem ocorrer densidades de até
2000 indivíduos por quilômetro linear
de margem no período da seca”, explica o
professor Ronis da Silveira. O jacaré-açu
perfaz 80% da população de jacarés
no alto e médio Solimões. Portanto,
o grande problema em relação ao jacaré
é o destino que lhe está sendo dado.
Leis e manejo
Apesar de existirem
leis que garantem a proteção dos jacarés
e botos - Lei de Proteção à
Fauna (Lei 5.197 de 1967) e Lei 7.643, de 1987,
que proíbe a pesca de cetáceos no
Brasil, como o boto – o Estado não tem garantido
seu cumprimento. No caso dos jacarés, entretanto,
Ronis da Silveira afirma que a rigidez da Lei de
Proteção à Fauna acaba sendo
um empecilho para a preservação da
espécie no Solimões, uma vez que inviabiliza
o manejo sustentável. “A lei estabelece regras
para todo o território nacional, ignorando
especificidades regionais. Por exemplo, se no Solimões
a gente usa 10% dos jacarés para a exploração
comercial, podendo até usar as vísceras
para a pesca da piracatinga, ajudamos a preservar
os restantes 90%, os botos, e estimulamos a geração
de renda, auxiliamos a continuidade das pesquisas
e garantimos a preservação.”
Ronis da Silveira acredita que essa alternativa
tem caráter fundamental para a sustentabilidade
socioambiental. “O morador local não é
o vilão da história. É a vítima.
O Estado não incentiva alternativas de renda
e não dá opção legal
para que ele responda à demanda do “patrão”,
que encomenda toneladas e toneladas de jacaré.”
Ele defende a necessidade de se estabelecer o manejo
legal do jacaré, com estímulos governamentais,
apoio de ONGs e embasamento de pesquisas. “Já
estamos preparados em termos de organização
comunitária e conhecimento científico.”
O Projeto Mamirauá tem uma proposta de plano
de manejo elaborada desde 2000, quando foi encomendada
pelo então superintendente do Ibama no Estado
do Amazonas, Hamilton Casara.
Na semana passada, Vera da Silva esteve com uma
equipe do Inpa em Brasília para discutir
com o Ibama, entre outros assuntos, a questão
da matança de botos e jacarés. O Grupo
de Trabalho Especial de Mamíferos Aquáticos
(Getema) do Ibama fez uma recomendação
à presidência do órgão
federal para que dê atenção
especial à questão. Denúncia
a respeito também foi encaminhada ao Grupo
de Especialistas em Crocodilianos da organização
internacional The World Conservation Union – IUCN
(veja versão em inglês na newsletter
do Grupo). No âmbito estadual, será
realizada no dia 26/09 uma audiência publica
na Assembléia Legislativa do Estado do Amazonas
sobre a questão dos jacarés.
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa (Ricardo Barretto)