Panorama
 
 
 

MUDANÇAS NA POLÍTICA DE SAÚDE INDÍGENA CAUSAM PREOCUPAÇÕES E DESCONFIANÇAS

Panorama Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Fevereiro de 2004

Com base em duas portarias editadas em janeiro e em oficina realizada em Brasília, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) anuncia a extinção do repasse de recursos públicos federais a estados, municípios, organizações indígenas, ONGs e outras instituições com quem mantém convênio para fins de execução de ações de atenção à saúde indígena. A atual direção da Funasa quer executar diretamente as ações em todo o país, deixando às conveniadas apenas a tarefa de contratar e capacitar pessoal.
O atual comando do Ministério da Saúde (MS) e seu braço executivo, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), definiram em janeiro o que se insinuava desde 2003: mudanças no modelo de gestão da atenção à saúde indígena. Foram duas portarias do MS, ambas de 20/1/2004, que serviram de base para um projeto que dá maior poder à Funasa e cria um Comitê Consultivo da Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Portaria n° 69 e Portaria n° 70). Depois de suas edições, o que pegou de surpresa grande parte dos que atuam na área, o MS e a Funasa anunciaram o novo projeto político durante a I Oficina Integrada de Saúde Indígena, que realizaram em Brasília, de 2 a 6/2.
O evento reuniu, na Academia de Tênis, cerca de 200 convidados, entre funcionários do MS e da Funasa e pessoas - indígenas e não-indígenas - que têm relação com a atenção à saúde indígena. Mais do que uma oficina de trabalho em que se debatem propostas, foi um encontro organizado pelo MS e pela Funasa para comunicar decisões que, embora incompletas em importantes detalhes, parecem já irreversivelmente tomadas.

Ações da Funasa e ações “complementares”

O modelo de gestão da saúde indígena hoje vigente iniciou-se ao longo da década de 11000 e foi definido por uma série de atos normativos, culminando com o Decreto n° 3156, de 27 de agosto de 1999, e com a chamada “Lei Arouca” (n° 9.836), de 23 de setembro de 1999, que instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Este modelo está fundado na existência dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs): regiões do território brasileiro nas quais a execução das ações do setor se dá por meio de convênios entre a Funasa, de um lado, e, de outro, estados, municípios, organizações indígenas, organizações não-governamentais e outras instituições. A Funasa pactua com estas suas conveniadas linhas de atuação a serem seguidas, repassa a elas recursos públicos federais e fiscaliza os gastos efetuados. Agora, a intenção da Funasa é que ela própria passe a executar diretamente as ações do setor, restando a seus parceiros, governamentais e não-governamentais, atuar de forma complementar.
O caráter preciso dessas ações complementares deverá ser definido caso a caso, em negociações regionalizadas ainda por acontecer. Envolvendo o Departamento de Saúde Indígena (Desai) e as Coordenações Regionais (Core) da Funasa, assim como os Conselhos de cada DSEI, essas negociações fazem parte da agenda de curto prazo estipulada pelo órgão para efetivar a reestruturação em curso. Convênios ainda vigentes devem ser substituídos por outros, celebrados já no novo modelo, ou, no máximo, com vistas à efetiva transição, prorrogados até 31/3. No cenário ideal projetado pela Funasa, convênios condizentes com sua nova política estariam vigentes em todos os DSEIs a partir de 1/4. Apesar de diversas indefinições, que deverão ser suprimidas ao longo desta agenda imediata de rediscussão dos convênios, a Fundação já anuncia sua disposição em contar com parceiros que, a título de ações complementares, assumam a contratação e a capacitação de recursos humanos – e apenas isto; ela própria se encarregaria de ações como a aquisição e distribuição de medicamentos, licitação, obras, transporte de equipes que trabalham nas aldeias e compra de combustíveis.

O que há de novo?

Durante a oficina, a atual direção da Funasa oscilou entre afirmar suas propostas como uma real mudança em relação à política do governo federal anterior e em minorar as alterações efetuadas. Assim, mais do que um “novo” modelo, estaríamos diante da mera correção de rumos do atual, que, ao trabalhar com repasse de recursos públicos e responsabilidades a instituições conveniadas, acabou, na avaliação do governo federal, por fazer com que o papel de estados, municípios e entidades não-governamentais na execução das ações da saúde indígena fossem mais do que “complementares”, sobrepujando o papel da própria União, em desacordo com o que reza o artigo 19-E da “Lei Arouca”. Por uma questão de legalidade, caberia então, sempre conforme o apresentado durante a oficina em Brasília por representantes do governo federal, redefinir as competências que lhe cabem por meio do MS e da Funasa, e dos demais integrantes do setor.
Entretanto, não se trata apenas de uma questão legal. O Estado tem todo o direito de mudar suas políticas e, nesta direção, de executar diretamente as ações básicas da saúde indígena. Mas o que se pergunta é se terá, de fato, condições de fazer isso. A história recente demonstra que não.
Um exemplo foi o que aconteceu com a saúde dos Yanomami, em Roraima. A Urihi- Saúde Yanomami divulgou dados em novembro de 2003 demonstrando melhora considerável na ocorrência de casos de malária e redução na mortalidade infantil, resultado de suas ações a partir de 1999. Ao longo de sua trajetória, a Urihi testemunhou in loco a incapacidade de a Funasa executar por si mesma ações em áreas de difícil acesso. A própria constituição da Urihi foi, em larga medida, uma resposta a tal ineficiência.

Como ficam as atuais conveniadas; quem serão as novas?

Na avaliação de instituições hoje conveniadas à Funasa, a nova proposta apresentada na oficina contém vários senões, a começar pelo modo atropelado e pouco participativo como foi gestada. Apesar de o atual responsável pelo Desai/ Funasa, Ricardo Chagas, esforçar-se em afirmar que tal política nada mais é que a incorporação de antigos consensos coletivos – os resultados da II e III Conferências Nacionais de Saúde Indígena (1993 e 2001) – e de processos de diálogo que, segundo ele, ocorreram ao longo do ano de 2003, fato é que representantes de organizações indígenas e ONGs manifestaram ao microfone e em conversas paralelas sua surpresa, perplexidade e indignação por não terem sido consultados antes de definidas as mudanças.
Da perspectiva de ONGs como a Urihi – Saúde Yanomami, há razões de sobra para se desconfiar da política que começa a se redesenhar. Em DSEIs como o Yanomami, a melhoria dos indicadores de saúde após a entrada em cena das ONGs é inegável, e é preocupante que a Funasa formule uma proposta que, de início, trata todos os DSEIs – os que podem ser considerados um avanço e os que não têm andado tão bem – de maneira única. É oportuno recordar que, ainda em dezembro do ano passado, a Comissão Pró-Yanomami divulgava em seu site uma carta manifestando seus temores quanto ao desmantelamento da assistência à saúde indígena yanomami. Agora, depois que as decisões do governo federal passaram por cima do processo de diálogo, não dá para não pensar efetivamente em retrocesso.
Já do ponto de vista de organizações indígenas como a Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) ou o CIR (Conselho Indígena de Roraima), a política recém-anunciada pela Funasa pode ser igualmente pensada como um andar para trás. No espírito do atual modelo, elas foram instadas a assinar convênios e a assumir integral ou parcialmente a execução das ações em seus respectivos DSEIs. A fim de dar conta de ações não previstas por seus projetos próprios de organização, tiveram de rever suas estruturas de funcionamento e de readequar suas políticas de recursos humanos. Nesse processo, passaram a operar com volumes orçamentários nunca antes conhecidos. E se é certo que lidar com finanças de grande porte coloca essas organizações diante de largos desafios de remodelagem institucional, também é verdade que funciona como contrapeso importante na correlação de forças com os poderes locais, freqüentemente nas mãos de setores anti-indígenas. Desse modo, retirá-las do jogo pode soar um pouco como arbitrar em favor do adversário, mandando-as novamente ao banco de reservas em nome de uma deslocada ideologia estatista. Resta saber como será a posição de cada uma delas nas negociações região a região que se anunciam.
Um outro problema que o processo recém-desencadeado pela Funasa coloca diz respeito ao perfil das instituições que ela quer ter como parceiras no âmbito dos DSEIs. Para que a Fundação possa assumir a maior parte da execução das ações em escala nacional, é necessário que fortaleça seu corpo de funcionários, o que esbarra, ao menos no curto prazo, nas formalidades burocráticas impostas pelas regras da administração pública para contratação de pessoal. É possível que advenha daí o fato de ser esta a principal esfera de atuação prevista para seguir a cargo do setor não-governamental. No modelo que ora se propõe, parece caber às conveniadas especialmente a pior parte, a da burocracia da administração de pessoal.
Se isso for mesmo tudo o que sobrar, é previsível que organizações indígenas e de apoio aos índios, que vêm se empenhando em desenvolver trabalhos sérios no campo da saúde, vejam-se obrigadas a se retirar de cena. Isso porque não se pode supor que suas assessorias jurídicas – ao menos elas – recomendassem compactuar com operações que, em que pese ainda não terem sido objeto de uma proposta clara por parte da Funasa, insinuam-se alegoricamente como “empréstimos de CGC” ou “esquemas-laranja”. A que tipo de “parceiras”, então, estaria sendo franqueado o terreno de atuação não-governamental: instituições oportunisticamente formadas, talvez com o apoio de funcionários e ex-funcionários públicos bem informados e bem relacionados; organizações indígenas que se satisfaçam com possíveis benesses de redes clientelísticas em que figurem como sócios menores?

O alvoroço dos poderes políticos locais e regionais

Seja como for, o modelo em vigor foi alvo de críticas de políticos locais desde o início, já que as verbas destinadas à saúde indígena não seriam mais controladas por eles. O senador Mozarildo Cavalcanti, de Roraima, por exemplo, conhecido por suas posições anti-indígenas, considerou positiva e oportuna a decisão da Funasa de retomar o comando das ações, conforme publicado na edição de 5/2/04 do jornal roraimense Brasil Norte.
Vale lembrar ainda que, de acordo com reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 31 de agosto de 2003, a Funasa havia sido loteada entre petistas e aliados – das Coordenações e diretorias Regionais da Funasa, o PT ocupava 13 postos, o PTB, 4, PMDB, 3. Já o PV, PPS e PSB, tiveram uma coordenação cada e o PC do B e o PTB ganharam duas diretorias cada um. A mesma reportagem dizia que, no governo anterior, esses cargos eram preenchidos por funcionários de carreira com experiência de pelo menos cinco anos. Com um quadro desses, a proposta de um novo modelo só poderia mesmo gerar muitas desconfianças.
Do que foi apresentado em Brasília durante a I Oficina Integrada de Saúde Indígena, permanecem várias incertezas – umas são políticas, outras, técnicas; e há, por fim, as jurídicas, diante das quais recomenda-se a leitura da contribuição de Villi Fritz Seilert e o posicionamento público de outros profissionais da área jurídica.

Fonte: ISA-Instituto Socioambiental (www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa (Fernando Baptista)

 
 
 
 

 

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