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NIÉDE
GUIDÓN MANDA MENSAGEM AO ARQUEÓLOGO
DO FUTURO
Panorama
Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Fevereiro de 2005
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Carta
de Niéde Guidón
Leia a carta de Niéde Guidón endereçada
ao Arqueólogo do Futuro
Caro colega do futuro,
Você está
quase no final de um século que vi nascer.
No exercício de minha profissão, encontrei
indícios, vestígios, e propus hipóteses
sobre como vivia o Homem do passado, como usava
suas ferramentas, como preparava suas armas.
Meu caro colega,
mesmo não sabendo como você é
- talvez uma máquina inteligente -, escrevo-lhe
como se estivesse dirigindo-me a um Homem. E escrevo-lhe
com a emoção de um Homem. Um Homem
desse início de século que nos abriga.
Caso encontre dificuldade em entender-me, tenho
certeza de que poderá recorrer a sofisticados
dicionários, a sofisticados programas para
computador, que lhe permitirão descobrir
o sentido exato das minhas palavras.
No início,
todos os Homens viviam como caçadores-coletores.
Para adquirir conhecimento e conviver com as outras
espécies da natureza, para sobreviver com
os parcos recursos biológicos que tinham,
esses Homens necessitavam de grande coesão
social. O saber era passado dos adultos para os
jovens, igualmente. Sabiam que não podiam
ter proles numerosas porque, ao contrário
dos outros animais, o filhote humano levava anos
para aprender e ser capaz de sobreviver só.
Todos executavam todas as tarefas, todos eram iguais.
Os chefes comandavam com base em sua força
física, que, como todos os recursos biológicos,
nasce, atinge seu apogeu e definha. Assim, um chefe
exercia seu poder durante um tempo limitado, até
que um outro membro da tribo, mais jovem, mais forte,
o suplantava.
Os Homens temiam
a natureza, reconheciam seu poder, um poder que,
para eles, emanava de entidades sobrenaturais. E
essas entidades sobrenaturais comandavam as águas,
os ventos, o fogo, os astros. Seres que viviam por
sua conta e cuja passagem pela vida dos Homens era
eventual. Os espíritos!
Em um momento dado
de nossa história, alguém imaginou
como fazer para garantir um poder mais duradouro,
que não dependesse unicamente dos recursos
biológicos. Como a morte é um fenômeno
que assusta a todos os animais, esse alguém
imaginou uma história que tratava do além,
da existência de seres sobrenaturais, da boa
vontade dos quais dependeria a vida e o destino
pós-morte de todos os Homens. Os Deuses!
Nesse momento começaram
a se diferenciar os Homens. Aqueles que somente
sabiam conviver com a natureza, que dependiam de
sua força para sobreviver, e aqueles que
tratavam com os deuses: os sacerdotes. Os últimos,
constituíam uma casta privilegiada, com poder
assegurado. Com o poder assegurado, não tinham
mais que enfrentar a vida difícil do dia-a-dia,
pois recebiam dádivas daqueles que não
tinham o poder de tratar com as divindades.
Mas como os Deuses
eram muitos, havia a possibilidade de tratar com
seus intermediários, e o poder se diluía.
Como concentrá-lo, então? Como colocar
mais elementos de uma família, de um clã,
no exercício do poder?
Novamente um gênio
inventou outra forma de poder. Os Deuses escolhiam
e davam a um homem o poder para que ele fosse o
chefe de todo seu grupo. E esse privilégio
passava de pai a filho. Nasceram, assim, as dinastias.
O poder concentrava-se cada vez mais.
As sociedades começaram
a crescer além dos limites permitidos pela
natureza, pois, para que alguns pudessem viver sem
fazer nada, além de falar com os Deuses e
dar ordens a seus súditos, para que pudessem
viver em palácios, mergulhados em rendas
e comendo iguarias, deveriam existir milhões
de escravos, trabalhando para ter direito ao pão,
à água e à procriação,
engendrando muitos futuros escravos. Templos, túmulos
monumentais e palácios, sempre exigiram multidões
de escravos para serem construídos e mantidos.
Com o aparecimento
da escrita, das castas, o saber ficou concentrado
naqueles que dominavam. Não era mais todos
ensinando a todos. Assim, começaram a aparecer
as classes cultivadas e os ignorantes. Sempre poucos
letrados para muitos ignaros.
E depois? Depois,
um novo passo foi dado para concentrar e tornar
o poder definitivamente esmagador. Um espírito
genial criou o Deus único, engendrou o monoteísmo.
Concentrou-se o poder em um homem que representava
Deus, infalível, cuja palavra deveria ser
seguida sem discussões. Em torno dele toda
uma corte, formando uma estrutura triangular, sempre
poucos no alto, muitos na base. O judaísmo,
o catolicismo, o islamismo, o protestantismo. Cada
grupo inventando seu próprio Deus, único,
o certo, o bom, o que devia ser adorado. Quem nele
não acreditasse, deveria ser exterminado.
Poder religioso e
seu derivado, o poder civil, nunca se dissociaram.
Juntos escreveram páginas com o sangue de
todos os que se rebelavam e poderiam representar
a menor ameaça a esse estado de coisas.
Assim, durante milênios,
a sociedade humana acostumou-se com as guerras,
com o extermínio dos que pensavam diferente,
dos que não queriam se submeter e ser escravos.
Guerras pelo domínio
das terras e dos povos, das riquezas do mundo. Guerras
e perseguições contra os que negavam
ou duvidavam do poder divino.
Os que falavam da
bondade de Deus, de sua misericórdia, eram
os que torturavam, mantinham em masmorras e matavam
os que ousavam duvidar de sua palavra. Mesmo aqueles
que não duvidavam, mas que representavam
uma presa interessante, pela sua fortuna, por sua
mulher, por suas terras, também eram perseguidos,
eliminados.
E como o Poder nunca
se sacia, quando mais baixo encontrava-se o Homem
na escala social, mais filhos deveria produzir.
Sempre com a idéia de que, para sobreviver,
necessitava de muitas mãos, mãos que
o ajudariam a trabalhar e, mais e mais, agradar
ao Poder.
Assim vimos Homens
torturando, matando, chacinando outros Homens. Vimos
a Idade Média, a Inquisição.
A invasão das Américas e o aniquilamento
de milhões de seres humanos que compunham
os primeiros povos, que partilhavam as terras com
todas as outras espécies, que viam o verde
das matas e escutavam a algaravia dos bichos.
Em um dado momento,
alguém se lembrou de um tipo de governo que
havia existido em um pequeno país, criador
de uma civilização, onde a cultura
era difundida e o povo tinha suas tradições,
a democracia. Imediatamente, esse alguém
pensou nas possibilidades que ela abriria se fosse
implantada em países com elites cultas e
massas incultas. O povo acreditou que estava elegendo
seus representantes. E, assim, o Poder, ao invés
de ter que contentar milhões, teve unicamente
de enriquecer, dar empregos e acanalhar os representantes
desses milhões, algumas centenas de cidadãos
que passaram a integrar um novo Poder. Assim nasceram
os políticos, prometendo uma vida maravilhosa
para os que nele votassem, mas pedindo que esquecessem
o que haviam escrito ou prometido no instante em
que se viram investidos de Poder.
Vimos agir o nazismo,
o fascismo, o comunismo. Homens sendo assassinados
em câmaras de gás, fuzilados, torturados.
Hiroshima e Nagasaki. Os brancos rejeitando os negros
e os amarelos, os negros rejeitando os brancos e
os amarelos, os amarelos rejeitando brancos e negros.
Os capitalistas. As classes trabalhadoras. E cada
vez mais os donos do Poder aprimoravam-se. A transmissão
do saber, que havia sido concentrada, que havia
passado da Igreja para a Universidade, formando
jovens capazes de pensar e protestar, tinha de ser
demolida. E a Universidade foi destruída.
Ao invés do saber se ofereciam diplomas.
O Poder concentrou-se
na tecnologia. Os tecnocratas, sem pensar em algo
mais sofisticado, menos simplista, ativeram-se apenas
às operações necessárias
para conseguir que uma máquina executasse
uma tarefa específica, que o computador resolvesse
determinado problema. Tudo orquestrado para que
a necessidade de consumo aumentasse a cada instante,
e mais impostos fossem pagos. Impostos que garantiriam
educação para seus filhos, saúde
para a família, estradas, cidades limpas
e seguras, o direito ao lazer. E o Poder recebia
os impostos e decidia o que fazer com eles, mudando
seus destinos, oferecendo escola de péssimo
nível, saúde que significava morte
mais rápida, bandidos ameaçando a
todos. O Poder podia solicitar empréstimos,
aceitar juros extorsivos, quando precisava de dinheiro
para uma fantasia qualquer, como construir uma capital
nova! Mas quem pagava os empréstimos, mais
os juros, era o povo, cujos filhos já nasciam
com uma dívida enorme.
O rosário
de sandices continuou: abriram a possibilidade para
que o Homem fosse diferente dos outros animais de
sua família. O Homem poderia viver mais do
que seus primos macacos. Que felicidade... Para
viver mais, trabalharia mais, e manteria todo o
sistema necessário, com isso continuaria
arrastando seus males pelo mundo.
Num mundo onde só
existia espaço para a arrogância, as
outras espécies passaram a existir apenas
em função das necessidades do Homem.
Os animais eram torturados, viviam em pânico,
aterrorizados.
Por quê? O
porquê de tanta atrocidade? É isso
que está me perguntando, meu caro colega
do futuro?
Apenas para produzir
mais e para nutrir a espécie que se fez dominante.
E não parou por aí, não: milhares
e milhares de espécies vegetais foram destruídas,
dando lugar apenas àquelas que interessavam
ao Homem. Animais e plantas foram modificados geneticamente
para aumentar a produtividade. Isso, apesar de continuarem
pregando que Deus havia criado o mundo, e tudo o
que existia sobre a face da Terra. O Homem corrigia
e melhorava o que Deus havia feito!
Para culminar, decidiram
que nem mesmo os filhos poderiam substituir os pais.
O amor ao Poder era tal que criaram a técnica
da clonagem, e cada um foi substituído por
si mesmo. A reprodução e os riscos
de ver nascer um filho que não fosse digno
de seu patrimônio ficou relegada aos que não
tinham meios para se auto-reproduzir.
Destruíram,
meu caro colega, a beleza do mundo, o prazer da
vida. As primeiras sociedades humanas, pouco numerosas,
eram solidárias. A generosidade da natureza
podia manter todos saudáveis. As sociedades
humanas no início desse nosso século
são compostas por bilhões de pessoas.
Sociedades, na sua grande maioria, doentes, solitárias.
A natureza foi destruída. Todo o alimento
tem de ser comprado. A água tem de ser comprada.
Os dons da natureza, hoje, têm seus donos:
o Poder. O Poder, sob suas inúmeras formas.
A competição é a regra da vida,
e todos os Homens, mesmo sem ter consciência,
odeiam seus semelhantes, potenciais competidores.
E a eles atribuem a culpa de não poderem
viver melhor.
E o que aconteceu
com o Homem? É isso que está querendo
saber agora, meu caro colega? Infelizmente, não
poderei lhe responder a essa pergunta. Parti há
muito. Mas tenho algumas curiosidades a respeito
do seu tempo. Me diga: o Sol que o aquece agora
é o mesmo que vejo brilhar lá fora,
ou ele foi substituído por algo artificial?
As geleiras dos Pólos degelaram e invadiram
territórios hoje ocupados por populações
costeiras? O que restou da camada de ozônio?
Ela ainda existe? E a Floresta Amazônica,
o que foi feito dela? Esvaiu-se em fogo e fumaça?
A caatinga sobreviveu? Ou você nunca ouviu
falar sobre ela? Você já ouviu falar
em macaco-prego? Já ouviu falar em veados-galheiros,
vaga-lumes, bem-te-vis? Em tamanduás? Em
tatus, araras azuis e vermelhas, sapos, morcegos,
onças, cobras, beija-flores, sabiás?
Já conjugou o verbo sonhar, sorrir, acreditar?
E as mentes? Conseguiram eles, por fim, dominar
todas as mentes?
Nesse instante, caro
colega do futuro, estendo o meu olhar pelo vastidão
do que ainda é um pedaço do paraíso
- um pedaço do paraíso chamado Serra
da Capivara -, que Poderes nada ocultos insistem
em ignorar, em destruir, e entrego-lhe este texto
para que continue a contar como prosseguiu a nossa
história, a história de todos nós.
Uma história que, por séculos e séculos,
tem sido de amargura, aflição e terror.
Niéde Guidón
Fonte: PE Carlos Botelho
O texto foi enviado a redação do Pick-upau
por Célio Paulo Ferreira, biólogo
do PE Carlos Botelho e colaborador do Pick-upau.