 |
UNIVERSIDADE DA FLORESTA
VAI REUNIR CIENTISTAS E PAJÉS
Panorama
Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Abril de 2005
|
 |
18/04/2005 Em entrevista
ao ISA, o antropólogo Mauro Almeida explica
os objetivos do novo centro de ensino e pesquisa
que começa a funcionar ainda este ano no
Acre. Entre os principais: criar uma ponte entre
os professores das cidades com os mestres da floresta
para valorizar os saberes tradicionais e as alternativas
para o desenvolvimento sustentável da Amazônia,
sem deixar de atentar para os mecanismos de proteção
à biodiversidade da região e aos conhecimentos
dos povos nativos.
Uma iniciativa pioneira está em curso no
estado do Acre: a Universidade da Floresta (Uniflora)
abre suas portas no segundo semestre deste ano na
cidade de Cruzeiro do Sul - a mais ocidental do
País - e pretende marcar o nascimento de
um novo modelo para as pesquisas científicas
sobre biodiversidade, com respeito à pluralidade
cultural da região e aos direitos das comunidades
indígenas, seringueiras e ribeirinhas. A
Uniflora começa a funcionar com a abertura
de 120 vagas nos cursos de graduação
de biologia, farmácia e ecologia, com a fundação
do Instituto da Biodiversidade e Manejo dos Recursos
Naturais, em nível de pós-graduação,
voltado à pesquisa, e com implantação
do Centro de Formação e Tecnologia
da Floresta, em caratér pré-universitário,
que promoverá cursos e oficinas técnicos
abertos à população com baixa
escolaridade.
Entre as principais metas do novo centro de ensino
e pesquisa estão o estímulo à
utilização responsável e inteligente
dos recursos naturais e a valorização
dos conhecimentos tradicionais - a chamada “medicina
da floresta”. "A idéia é viabilizar
tecnologias avançadas para o desenvolvimento
da Amazônia com sustentabilidade, visando
a inclusão social”, afirma o professor Jonas
Filho, reitor da Universidade Federal do Acre (Ufac),
da qual a Uniflora será uma extensão
no campo da graduação. A pedra fundamental
do empreendimento foi lançada em março
e os recursos estaduais e federais para a construção
do campus já estão garantidos.
O projeto conta com a participação
de dezenas de organizações sociais,
de seringueiros, grupos indígenas da região
e pesquisadores de várias universidades.
Um deles, membro do Grupo de Trabalho responsável
pela definição das diretrizes político-pedagógicas
do novo centro de ensino, é o antropólogo
acreano Mauro Almeida, da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Almeida organizou com a também
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha a Enciclopédia
da Floresta, talvez o mais completo compêndio
sobre a cultura, hábitos e saberes das populações
indígenas e comunidades de seringueiros da
região do Alto Juruá, no mesma região
acreana de Cruzeiro do Sul. “O espírito principal
da Universidade da Floresta é o de incluir
indígenas no processo de pesquisa e de ensino”,
afirma.
O antropólogo diz, em entrevista concedida
ao ISA por e-mail desde Campinas, que o desafio
da Uniflora é duplo: de um lado, levar os
alunos para a floresta, acompanhados de cientistas
urbanos e de pesquisadores da mata; do outro, trazer
os moradores da floresta para a cidade, levando-os
a laboratórios e salas de aula. Na entrevista,
Mauro Almeida também fala da história
do projeto, seus possíveis benefícios
à região e como os marcos legais acerca
de conhecimentos tradicionais e patrimônio
genético servem de orientação
para a implementação da Uniflora.
ISA - Como surgiu
o projeto da Universidade da Floresta?
Mauro Almeida - A idéia surgiu simultaneamente
de vários lugares. Na capital acreana há
alguns anos discutia-se a criação
de uma forma de ensino adequada à noção
de "florestania", isto é, um modelo
de ensino que capacitasse cidadãos para diagnosticar
problemas da região e dar respostas criativas
para eles, incluindo as populações
indígenas, os seringueiros e os ribeirinhos.
Por outro lado, a idéia de um pólo
de ensino, pesquisa e extensão em Cruzeiro
do Sul é uma antiga aspiração
da população acreana da micro-região
do Alto Juruá. Essas aspirações
combinaram-se com a proposta de criar a "Universidade
da Floresta".
O nome estava no ar, na cabeça de várias
pessoas, e o embrião dessa forma de ensino
e pesquisa includente já estava presente
nas experiências de ensino indígena
coordenadas sobretudo pela Comissão Pró-Índio
do Acre, nas experiências de ensino de seringueiros
realizadas pelo Centro de Trabalhadores Amazônicos,
nas atividades de pesquisa do Parque Zoobotânico
com seringueiros da Reserva Extrativista Chico Mendes,
na região de Xapuri, e também com
as experiências de pesquisa e monitoramento
com seringueiros da Reserva Extrativista do Alto
Juruá, em Marechal Thaumaturgo, com participação
da Universidade de Viçosa, da Universidade
de Brasília, da Unicamp e de pesquisadores
do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(Inpa) e do Museu Goeldi, para não falar
de instituições internacionais.
Essas aspirações e experiências
começaram a tomar a forma de uma proposta
específica em Cruzeiro do Sul, a partir de
2003, quando iniciaram-se uma série de encontros
na cidade, em Rio Branco e em Brasília, articulados
graças à iniciativa apaixonada do
deputado federal Henrique Afonso, um professor que
dedicou seu mandato a essa idéia. Reuniram-se
em Cruzeiro do Sul dezenas de entidades e organizações
populares, e de acadêmicos de várias
partes do país, para discutir a proposta.
A idéia amadureceu, com todas essas contribuições,
e evoluiu em direção à seguinte
idéia: a Universidade da Floresta deveria
apoiar-se num tripé formado por um pólo
de formação universitária,
por um centro de pesquisa avançada, e de
pólos locais para incluir a população
indígena e rural. Essa idéia representa
um grande desafio: articular o ensino local com
uma rede de pesquisa de ponta, e integrar a população
local ao mesmo tempo!
Qual é a importância
da criação deste pólo de ensino
e pesquisa para a região do Vale do Juruá?
Olhando no mapa, vemos que Cruzeiro do Sul, a capital
regional do Vale do Juruá, é a cidade
mais ocidental do Brasil, a meio caminho de Rio
Branco e do Pacífico. Está no centro
de uma mancha caracterizada como de altíssima
biodiversidade por especialistas, e é também
um local de encontro de línguas e etnias
indígenas - recebendo influências andinas
e da planície amazônica que lhe dão
uma fisionomia muito peculiar. Apesar dessa riqueza
natural e social, e de seu papel estratégico
na articulação do Brasil com Bolívia
e Peru, está prestes a ser atingida por um
fluxo rodoviário acelerado com a pavimentação
da BR-264, e o investimento na educação
e na pesquisa nem de longe é suficiente para
preparar a população para aproveitar
o potencial da região.
Qual o objetivo do
curso de Biologia e Manejo de Recursos Naturais?
Quase metade dessa região tem seu território
organizado como áreas protegidas: o Parque
Nacional da Serra do Divisor, Terras Indígenas
- reunindo populações dos troncos
lingüísticos Pano e Aruak -, e Reservas
Extrativistas. Isso é um indicativo de que
o uso dos recursos naturais na região deve
orientar-se para formas de baixo impacto, que tirem
partido da riqueza biológica e cultural da
região. O curso de Ecologia e Manejo dos
Recursos Naturais é um dos cursos pensados
para estimular a utilização responsável
e inteligente dos recursos da natureza. Mas há
outras direções já apontadas,
como a da pesquisa da "medicina da floresta"
e da valorização dos conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade
regional.
Que benefícios
a Uniflora deve levar às populações
da região?
A Universidade da Floresta trará diferentes
benefícios. Um deles será gerar profissionais
cuja formação inclui a pesquisa de
campo e a cooperação com as populações
locais, com ênfase no uso da imaginação
para buscar soluções novas ou para
melhorar as soluções já conhecidas
pelo povo da região. Outro benefício
será a inclusão científica:
trazer índios, seringueiros e camponeses
para o âmbito da pesquisa e do ensino, tratando-os
com respeito.
O curso de Manejo
de Recursos Naturais vai trabalhar com os conhecimentos
tradicionais das populações locais.
Como será feita a ponte entre os dois sistemas
de conhecimento?
Essa ponte está sendo realizada na prática
há algum tempo e de várias maneiras.
Como disse acima, o Acre foi sede de experiências
variadas de articulação entre cientistas
e pagés, entre professores da cidade e mestres
da floresta. Esses sistemas podem conviver, dialogar,
e exercer influência um sobre o outro, sem
que suas diferenças sejam abolidas. A meu
ver, uma condição para essa convivência
é tratar seriamente os pesquisadores da floresta
enquanto tais, com mecanismos como o reconhecimento
do notório saber de povos da floresta, com
funções reconhecidas de bolsistas
e de pesquisadores, e a possibilidade de inclusão
nos quadros docentes em situações
que serão discutidas e amadurecidas.
Já existem seringueiros e índios que
publicam artigos e capítulos de livros em
colaboração, e em alguns casos com
autoria exclusiva; que participam da pesquisa e
da análise de resultados, dialogando com
cientistas; que operam sites na internet e propõem
projetos próprios de pesquisa. Devemos levar
isso a sério e institucionalizar essas práticas.
A transmissão
dos conhecimentos dos povos da floresta se dá
fundamentalmente pela prática, pela experimentação.
Como levar essa prática para a sala de aula,
um espaço reservado à teoria?
É preciso lembrar que o conhecimento científico
oficial se dá pela combinação
entre teoria e experimentação; antes
de ir para a sala de aula, ele é gerado na
prática de campo ou de laboratório,
e seus resultados são discutidos na comunidade
científica pessoalmente, na internet, e em
publicações escritas. Também
o conhecimento dos povos da floresta comporta a
experimentação prática, por
um lado, e a reflexão teórica; a discussão
com vizinhos com troca de sementes e tecnologias,
bem como de idéias. Isso quer dizer que o
conhecimento dos povos da floresta não é
um produto acabado que apenas é transmitido
passivamente: é um corpo que está
sendo produzido sob nossos olhos, articulando à
sua maneira prática e teoria. O desafio é,
portanto, duplo: de um lado, levar os alunos para
o campo (acompanhados de cientistas urbanos e de
pesquisadores da mata, em projetos paralelos ou
articulados), e trazer os moradores da floresta
para a cidade (levando-os a laboratórios
e a salas de aula). Trata-se de criar a cooperação
científica no trabalho de campo, e na reflexão
e elaboração de idéias.
Haverá a necessidade
de autorização por parte do Conselho
de Gestão do Patrimônio Genético
(Cgen)para a construção dos conteúdos?
Acho que a Universidade da Floresta reúne
condições excelentes para demonstrar
que é possível harmonizar as metas
da pesquisa científica com a biodiversidade
e com a diversidade cultural e o respeito aos direitos
intelectuais das comunidades indígenas, de
seringueiros e de ribeirinhos. Nesse caso, estará
amplamente satisfeita uma das exigências legais,
que são acordos de cooperação
e de repartição de benefícios
com termos amplamente discutidos pelos interessados,
e a participação direta dos interessados
locais em todo o processo, que vai da pesquisa ao
desenvolvimento. Nesse caso, seriam possíveis
acordos “guarda-chuva” prevendo atividades de pesquisa
de um programa inteiro, evitando a necessidade de
autorizações pontuais para cada atividade.
Quais salvaguardas
deverão ser criadas para que o conteúdo
transmitido nas aulas seja utilizado de acordo com
as condições previstas na Medida Provisória
nº 2186?
A discussão de políticas pedagógicas
da Uniflora está em andamento. Mas insisto
em que o espírito principal da Universidade
da Floresta não é o de transmitir
conhecimentos indígenas para alunos no programa
acadêmico, por exemplo, e sim incluir indígenas
no processo de pesquisa e de ensino. A atividade
de pesquisa deverá obedecer aos princípios,
já inscritos na MP, de respeito aos direitos
intelectuais de comunidades locais, bem como de
repartição de benefícios da
biodiversidade. Já a transmissão de
conhecimentos como parte do currículo de
salas de aula apoia-se, por exemplo, em materiais
publicados e que se encontram no domínio
público. Para dar um exemplo mais específico,
a pesquisa sobre a diversidade de plantas cultivadas
poderá levar à identificação
de novos cultivares ou de propriedades novas de
cultivares de mandioca, com potencial comercial;
esse conhecimento deverá primeiro ser protegido
antes de ser divulgado em forma de publicação
e de material didático, e poderá não
ser publicado na ausência de mecanismos de
proteção adequados. O ensino deverá
enfatizar esses princípios de ética
científica.
A legislação
pode engessar o desenvolvimento das aulas, já
que não define exatamente quais atividades
podem ser realizadas com autorização
prévia das comunidades detentoras dos saberes?
Acho que não é esse o caso. Em boa
parte, caberá aos próprios professores
e pesquisadores indígenas conceber o conteúdo
do material didático relevante. O uso de
mitos indígenas no ensino, em publicações
com direitos de autores reservados, começa
a difundir-se como prática - valendo aqui
os princípios de respeito à autoria.
No caso de resultados originais da pesquisa indígena
na área da medicina, vale o princípio
utilizado pelos laboratórios: não
são transmitidos ou colocados em domínio
público resultados que não se encontrem
protegidos sob forma de patentes.
Devemos também lembrar que, tanto no caso
do conhecimento científico urbano como no
caso dos conhecimentos da "ciência do
concreto" (como a definiu Lévi-Strauss)
é essencial a circulação da
informação e a sua discussão.
Assim, é preciso tomar cuidado para não
engessar sob mecanismos de proteção
rígido o conhecimento produzido na floresta
a ponto de impedir a continuidade da pesquisa florestal
feita por moradores da floresta! Trata-se de impedir
a privatização comercial predatória
desses conhecimentos - com a criação
de patentes que se apoderem de conhecimentos e substâncias
de maneira injusta -, mas ao mesmo tempo trata-se
de não impedir o uso compartilhado desses
conhecimentos pelas comunidades tradicionais.
A publicação
Enciclopédia da Floresta foi deliberadamente
autocensurada porque vocês estavam preocupados
com a utilização indevida dos conhecimentos
tradicionais. Isso pode ocorrer também com
os cursos da Uniflora?
Sim, naturalmente. Um exemplo já citado é
o caso dos conhecimentos sobre variedades novas
de plantas cultivadas. No caso de resultados novos
da pesquisa, de elevado potencial econômico
em alguns casos, é essencial proteger esses
resultados, em vez de colocá-los no domínio
público. Trata-se de bom senso.
Como será
feita a repartição de benefícios
para as comunidades donas dos conhecimentos transmitidos
em aula?
Esse ponto é previsto em parte pela legislação
em vigor, isto é, pela Medida Provisória.
De qualquer modo, conforme afirmei antes, o eixo
da discussão não são conhecimentos
transmitidos em sala de aula, que deveriam ser aqueles
que estão no domínio público,
e sim na vocação de pesquisa e de
desenvolvimento que é parte essencial do
espírito da Universidade da Floresta, compreendendo
a formação graduada, a pesquisa avançada
e as escolas-laboratórios da floresta.
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa (Bruno Weis)