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PARTICIPAÇÃO
INDÍGENA EM PROTESTOS É CORTINA
DE FUMAÇA, DIZ ANTROPÓLOGO
Panorama
Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Abril de 2005
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27/04/2005 Em entrevista
ao ISA, o antropólogo Paulo Santilli, que
participou do processo de demarcação
da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, revela
a estratégia de setores da elite regional
de Roraima em promover e agigantar uma divisão
entre os povos indígenas para questionar
a homologação da Terra Indígena
decretada pelo governo federal e explica as raízes
da relação entre índios, fazendeiros
e políticos no estado.
Uma leitura rápida do noticiário dos
últimos dias sobre as reações
à homologação da Terra Indígena
Raposa-Serra do Sol em Roraima, decretada pelo governo
federal no último dia 15, pode levar à
percepção de que o reconhecimento
do território desagradou aos próprios
povos indígenas que vivem na área.
Seria, nesse caso, a primeira vez na história
que um povo se levanta contra a garantia de seus
direitos. Mas o ineditismo não é real.
A confusão é fruto da cortina de fumaça
lançada por setores da elite econômica
e política do estado, tradicionalmente anti-indígena,
que incentiva pequenos grupos e indivíduos
indígenas a assumir a frente dos protestos
– e realizar ações como o bloqueio
de estradas e o seqüestro de policiais federais.
“Estes índios recebem inúmeros favores
dos fazendeiros e políticos locais ao longo
do tempo e nessa hora são pressionados a
prestar contas”, explica o antropólogo Paulo
Santilli, profundo conhecedor da realidade regional.
“Não são maioria e nem sequer um grupo
organizado”, afirma. “Essa estratégia existe
porque, se apenas os fazendeiros protestassem contra
a homologação, o impacto seria muito
menor”.
Segundo declaração do presidente da
Fundação Nacional do Índio
(Funai), Mércio Pereira, dada ontem ao jornal
Folha de S. Paulo, os manifestantes indígenas
equivalem a 20% dos dois mil índios que vivem
nas aldeias Flexal e Contão, onde os distúrbios
têm ocorrido. Esse grupo estaria sendo pressionado
principalmente pelo prefeito do município
de Pacaraima, Paulo César Quartiero (PDT),
maior produtor de arroz do estado, e que vem sendo
investigado pela Polícia Federal sobre sua
participação na destruição
de aldeias ocorrida em novembro de 2004. Quartiero
está indiciado em outros quatro inquéritos
da PF em Boa Vista sob acusação de
atiçar o conflito entre índios e de
participar dos seqüestros de agentes públicos
e religiosos que atuam dentro da reserva indígena.
Professor da Universidade Estadual de São
Paulo (Unesp), Paulo Santilli trabalha desde 1984
na região da Raposa-Serra do Sol e foi o
responsável pelos estudos de demarcação
da reserva, cujo processo terminou em 1992. Acabou
de retornar de uma viagem de 45 dias à região,
quando encontrou na grande maioria das 164 aldeias
um clima de tranqüilidade e satisfação
pela perspectiva da homologação que
se anunciava iminente. Em entrevista ao ISA, Santilli
explica a origem dos atuais protestos e o envolvimento
de representantes de povos indígenas nestas
ações. Também traça
um perfil das duas mais faladas organizações
indígenas de Roraima – o Conselho Indígena
de Roraima (CIR) e a Sociedade de Defesa dos índios
Unidos do Norte de Roraima (Sodiur) – e a enorme
distância que as separa.
ISA - A quem não
interessa a homologação da TI Raposa-Serra
do Sol?
Paulo Santilli - A homologação só
não interessa aos grileiros, aos invasores
da TI. Hoje os maiores expoentes são os arrozeiros,
que foram os últimos a entrar na área,
após inclusive a sua demarcação
em 1998. Em 1992 a Funai editou a portaria reconhecendo
a área. Os arrozeiros são o segmento
que tem promovido e patrocinado estes atos de ocupação
de estradas e seqüestros. A regularização
fundiária também não interessa
à elite política de Roraima, que historicamente
angaria votos entre os antigos ocupantes da área,
na época pecuaristas, que progressivamente
foram saindo da área. Nos anos 1970, eles
eram estimados entre 200 e 300 pecuaristas e hoje
chegamos no máximo a uma dezena de ocupantes
não-índios. Seja porque receberam
indenizações da Funai, seja porque
negociaram com os índios a venda dos rebanhos.
Porque há
índios entre os manifestantes?
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) é
a entidade representativa da esmagadora maioria
da população indígena do estado.
Os que estão protestando são os mesmos
que há poucos meses incendiaram quatro aldeias
no sul da área, próximas às
invasões destes arrozeiros. São índios
que têm relações com estes arrozeiros
e com fazendeiros mais antigos, o que tem a ver
com compadrio, com laços que vão além
da relação de trabalho. Estes laços
e relações entre índios e invasores
têm a ver sobretudo com intermediação
política, com a distribuição
de recursos do governo do estado, através
da secretaria do índio, com a distribuição
de rebanhos animais, de ferramentas e mesmo da facilidade
no trâmite burocrático para a concessão
de aposentadorias e, numa proporção
crescente, da distribuição de vales-refeição.
É um programa do governo intermediado pelos
políticos locais que distribuem estes vales
em troca de apoio político para seus próprios
interesses.
É difícil entender que índios
estejam contrários a garantia de seus direitos.
É o caso da prefeita de Uiramutã,
Florany Mota (PT), neta de índios Macuxi,
e que já se manifestou contra a homologação
contínua da TI.
A prefeita invoca a ascendência indígena
mas foi criada em fazenda construída com
força de trabalho indígena. Ao longo
da década de 1980 e 11000, quando cresce
a mobilização indígena pela
demarcação da área, estas relações
dentro das fazendas eram de trabalho computado como
dívida – quanto mais os índios trabalhavam,
mais deviam, porque não recebiam salários
e sim mercadorias, como roupas, comida e cachaça.
É o sistema que prende os índios em
uma relação de dívida crescente.
Portanto, a ascendência indígena não
significa que a prefeita, por exemplo, tenha vivido
na aldeia ou que tenha vivido como uma índia
e se entenda como tal. E quando a mobilização
pelos direitos indígenas aumenta, essas relações
clientelistas e de compadrio são rompidas,
gerando uma grande oposição. Não
que não houvesse violência antes, mas
eram sobretudo em relações pessoais;
depois a tensão se transforma em conflito
opondo índios e não-índios.
Não existe
registro na história de um povo que se manifesta
contra a garantia de seus direitos. Aparentemente
esse ineditismo ocorre agora em Roraima?
Apenas aparentemente. Porque aqueles que se manifestam
contra o reconhecimento de seus direitos históricos,
que causa tanto estranhamento, não podem
ser vistos como a maioria e nem como um grupo organizado,
muito menos como uma etnia. São indivíduos
que têm as relações de recebimento
de favores e recursos públicos por parte
de políticos que condicionam este acesso
ao apoio a este tipo de ação além,
é claro, do apoio eleitoral. Só é
possível entender estas relações
de forma individual, pois não há um
conjunto, uma aldeia, uma etnia ou um grupo organizado.
São indivíduos arregimentados nestas
ocasiões de impasse ou quando a disputa pela
terra se acirra. Portanto trata-se de um falso protagonismo
dos índios.
Qual o objetivo dessa
estratégia?
Fazer cortina de fumaça. Dá para imaginar
que, se apenas os fazendeiros protestassem contra
a homologação, o impacto seria muito
menor. Com a participação de alguns
índios, se dá um entendimento confuso,
acentuado pela cobertura superficial da imprensa,
de que há uma divisão entre os povos
indígenas. Como se não estivéssemos
falando do reconhecimento de direitos de povos,
de coletividades. E essa é a tradicional
tática colonial: dividir para mandar. Agora
eu creio que a postura adotada pelos índios
que se manifestam contrários à homologação
contínua da Raposa-Serra do Sol é
mais fruto de injunções pessoais do
que de posições consolidadas que,
fossem verdadeiras, poderiam ser debatidas sem maiores
problemas. Mas são injunções
pessoais que priorizam o acesso a determinados bens
e recursos. E isso faz com que estes indivíduos
sejam sensíveis a esta intermediação.
E estas injunções não se sustentam
ao longo do tempo, pois são antes de tudo
posições efêmeras que resultam
de pressões momentâneas e não
de convicções próprias. Resultam
sobretudo de relações clientelistas.
É possível
traçar o perfil destes índios que
se manifestam contra a homologação
contínua da TI?
Se nós observamos as relações
com os colonizadores e os agentes indigenistas,
sim. Por exemplo, muitos habitantes da aldeia do
Contão, onde os policiais estão seqüestrados,
e da aldeia do Flexal, onde também há
manifestações contrárias, tiveram
contato com a Missão Evangélica da
Amazônia (Meva) que cresceu com o apoio do
governo do estado em oposição à
Igreja Católica e à Diocese local,
de atuação tradicionalmente a favor
do reconhecimento dos direitos territoriais dos
índios. Então a igreja sofreu essa
oposição política do governo
estadual e a Meva cresceu com esse apoio. Podemos
distinguir o histórico destas relações
porque foi através destas agências
- governo do estado e missão protestante
- que os índios conseguiram ter postos médicos,
remédios, ferramentas e implementos agrícolas,
entre outras coisas. E aí nós podemos
ver na construção destas relações
as mesmas pessoas que hoje se manifestam contra
a homologação.
Qual a diferença
entre entidades indígenas como o CIR e a
Sodiur?
O CIR tem uma organização histórica
que surgiu das assembléias de tuxauas, as
lideranças políticas locais das aldeias.
Foram nessas assembléias anuais que as lideranças
começaram a identificar os problemas das
demarcações em ilhas, que vinham ocorrendo
no sul do então território de Roraima.
Nesse momento as lideranças começaram
a se conscientizar da necessidade do reconhecimento
de um território. Desta discussão
surgiu nos anos 1970 o Conselho Indígena
de Roraima, que representa o conjunto das aldeias.
É criado pelas lideranças locais e
tem um trabalho permanente, com regras e normas
claras para organizar a representatividade de todas
as aldeias.
No caso da Sodiur e de outras siglas equivalentes,
trata-se de movimentos esporádicos, não
têm organização nem periodicidade
nas quais os interesses do conjunto das aldeias
possam se manifestar. São entidades circunstanciais,
que juntam indivíduos ou uma família
que foi atendida por um programa do governo ou teve
acesso a determinado recurso público, para
retribuir os favores àqueles que realmente
têm interesses em jogo. Por isso podemos dizer
que a Sodiur nada mais é que um interlocutor
forjado.
Esses índios
ligados aos fazendeiros e políticos são
antagonistas do processo de reconhecimento dos direitos
indígenas ou vítimas das relações
clientelistas?
Eles são parte destas relações.
O CIR evita entrar em conflito com eles - o que
acho um procedimento sábio - pois tem consciência
de que essa posição contrária
é circunstancial, passageira, fruto de pressões
e destas relações clientelistas. E
que em dias, meses ou anos, suas relações
de parentesco prevalecerão e o que existe
de fato é o conflito entre os povos indígenas
e os invasores. Por isso o CIR se nega a ampliar
o conflito porque, mais cedo ou mais tarde, estarão
todos juntos convivendo na mesma área.
Estes índios
que buscam a proximidade com a elite do estado são
atraídos por poder ou alugum tipo de status?
Sim, mas tudo isso é fugaz, vale por um momento
e dificilmente se transforma em poder, porque não
se mantém. E carrega em si algumas fragilidades
como, por exemplo, com aqueles que recebem vales-refeição
e, diante desta facilidade, deixam de trabalhar
a própria roça. Isso os torna internamente
frágeis e vulneráveis nas aldeias,
pois perdem a legitimidade de quem se sustenta por
sua própria iniciativa e trabalho.
Há também
uma negação da própria identidade
indígena?
Isso ocorre historicamente, mas hoje não
dá mais conta dessa situação.
Em uma sociedade preconceituosa como a regional,
muitos preferem falar que são caboclos e
não índios, como se assim estivessem
mais perto da chamada “civilização”.
Isso ocorreu fortemente em muitos locais no País,
não apenas em Roraima. Estes índios
que vem protestando têm a expectativa de um
dia tornar-se arrozeiro. Não se trata de
plantar arroz, simplesmente, e deixar de ser índio.
Mas por meio de que relações esse
trabalho vai ser realizado: se são relações
assalariadas, assimétrica permeadas por um
poder maior, entre patrão e empregado e não
mais entre sogro e genro, entre cunhados - como
ocorre com o arroz plantado nas aldeias. Nesse sentido,
estas relações desejadas implicam,
sim, na negação da identidade indígena.
Os índios
que estão se manifestando argumentam que
a decisão do governo federal os levará
a um isolamento indesejável. Esse isolamento
é um efeito real e direto da homologação?
De jeito nenhum. É um argumento completamente
falacioso pois não se trata de isolamento
e integração, de tradicionalismo ou
desenvolvimentismo. Nunca ouvi um índio defender
a volta ao passado. O que está em jogo na
verdade é a possibilidade dos povos indígenas
de Roraima terem a liberdade de construir uma relação
com a sociedade nacional a partir da sua própria
forma de organização social. A liberdade
de continuar vivendo nas aldeias, de continuar a
construir suas relações e manter sua
concepção de mundo, podendo ter relações
mais simétricas com os de fora. Ou, ao contrário,
de serem obrigados ao trabalho nas fazendas, ao
trabalho compulsório, já que o não
reconhecimento destes direitos territoriais implica
em um processo forçoso que pode levar ao
estabelecimento de relações individuais
e não entre sociedades, apagando todas as
marcas étnicas dos povos. Pode levar inclusive
à migração, à impossibilidade
de se viver em aldeias, de se cultivar a terra nos
moldes em que é feito.
Quais seriam as conseqüências
para os povos indígenas caso a homologação
fosse feita de forma descontínua, com as
aldeias em ilhas?
Um processo de desterro, que é o que acontece
no sul de Roraima, com as demarcações
em ilhas, isolando as aldeias umas das outras, intercalando
fazendas entre elas. Nessa região há
conflitos endêmicos pois estas áreas
rapidamente se tornam insuficientes para a sobrevivência
dos índios, que se vêem forçados
a trabalhar fora de suas terras. Isso gera conflitos
com os fazendeiros. Há razões ecológicas
– como a agricultura de coivara, que é rotativa,
ocupando áreas diferentes em períodos
de três, cinco ou sete anos – e razões
políticas, pois, assim que a população
cresce, as aldeias são sub-divididas, o que
inviabiliza a demarcação em ilhas,
já que esse sistema impede a própria
reprodução das sociedades indígenas.
Mais que um processo de desterro, o território
descontínuo dá início a um
processo de genocídio. A demarcação
contínua, ao contrário, é uma
solução para as disputas fundiárias,
regulariza a terra e cria as condições
para a reprodução das sociedades indígenas.
E é, antes de mais nada, a presença
do Estado definitiva, regularizando o uso da terra.
Como foi feita a
identificação da Raposa-Serra do Sol?
O trabalho de identificação de uma
Terra Indígena tem vários fundamentos,
todos previstos pelo Estado brasileiro. O primeiro
fundamento é o lingüístico. Estes
povos Macuxi e Ingaricó são de filiação
lingüística Carib; atualmente há
55 línguas desta mesma família. Os
lingüistas fazem cálculos que comparam
cognatos e que permitem estimar o tempo necessário
para a diversificação das várias
línguas. Nesse caso, o tempo estimado é
em torno de 4 mil anos. E a origem de uma proto-língua
Carib também é atribuída a
essa mesma região das Guianas, que seria
a região de dispersão destas línguas.
Portanto, em termos lingüísticos, a
Raposa-Serra do Sol é a região de
ocupação tradicional, ou mesmo imemorial
dos falantes destas línguas Carib, que estariam
ali há pelo menos 4 mil anos. Com base em
pesquisas arqueológicas, um segundo fundamento,
é possível dizer também que
as peças dos Macuxi datam de pelos menos
cinco séculos.
Outro fundamento é o levantamento etno-histórico,
que busca nas fontes historiográficas, nos
relatos de viajantes, de militares e de agentes
indigenistas que passaram pela região em
diferentes períodos, a menção
a estes povos nesta mesma região. E há
uma notável constância nos últimos
três séculos destas presenças.
Há, ainda, o trabalho etnográfico,
que leva em conta a tradição oral
dos povos, seus mitos, contos e fórmulas
mágicas que mencionam e nominam os vários
acidentes geográficos da região, como
as montanhas, as cachoeiras, os rios e as matas.
Os contos falam da origem destes locais e como os
ancestrais dos atuais moradores da área os
criaram. Agora o trabalho etnográfico também
fala das relações sociais das comunidades,
da forma como se relacionam entre si, com os animais
e com os vegetais. Esse trabalho também foi
utilizado para fundamentar o território contínuo
da região, pois demonstra como a ocupação
se constitui ao longo do tempo.
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa (Bruno Weis)