A primeira turma
a chegar à Estação
Comandante Ferraz passou 32 dias adaptando-se
ao clima hostil e contava apenas com a comunicação
via rádio
Punta Arenas (Chile)
- O sol não terá nascido — até
porque ele nunca nem se põe nesta época
do ano — na alvorada deste dia 6 de fevereiro,
quando autoridades federais, militares e pesquisadores
estarão comemorando duas décadas
de presença brasileira no fim do mundo.
Exatos 20 anos antes, 12 brasileiros, entre
cientistas e homens da Marinha de Guerra,
se instalaram numa boca de mar conhecida pelo
pomposo nome de Baía do Almirantado.
Foi o marco de inserção do Brasil
em um inusitado acordo internacional de ocupação
territorial pacífica e compartilhada.
Ali, sob a luz permanente do verão
antártico, o governo brasileiro fixou
moradia. Aliás, moradia é um
exagero: no início, eram oito módulos
habitacionais, semelhantes a containeres.
A vila de caixotes de aço moldado recebeu
o nome de Estação Comandante
Ferraz, homenagem ao maranhense Luiz Antônio
Ferraz, oficial da Marinha e um dos idealizadores
do Programa Antártico Brasileiro (Proantar),
morto em 1982, vítima de infarto.
Ana
Nascimento/Abr  |
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Ana Nascimento/Abr
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A primeira turma passou
32 dias se acostumando com o ambiente. E que
ambiente. A temperatura no local varia de +
4°C no verão a – 30°C no inverno,
quando o pessoal da Estação tem
que sair pelo teto dos containeres para poder
respirar. Essas médias climáticas
só valem, no entanto, se não estiver
ventando. O que nunca acontece. A velocidade
do vento chega a 100 km por hora na Baía
do Almirantado, o que altera sensação
térmica humana. Então, se o termômetro
estiver marcando 0°C, mas chegar pelo mar
da Antártica uma daquelas ventanias de
espantar pingüim, qualquer vivente vai
se sentir em um congelador a, pelo menos, -15°C.
Esses primeiros brasileiros
a se instalarem por lá não contavam
com fax, satélites, computador, nem,
muito menos, internet. Mantinham comunicação
por rádio com outras estações
estrangeiras e, de certo mesmo, só
o endereço para correspondência.
Aliás, o mesmo de até hoje:
Baía do Almirantado, Península
Keller, Ilha Rei George, Arquipélago
Shetlands do Sul, Antártica (ou Antártida,
tanto faz), na posição 62°
05’ latitude sul e 58° 24’ longitude oeste.
Até então,
a civilização brasileira nunca
tinha ido tão longe. Durante todo esse
tempo, houve uma morte no Programa Antártico.
Em 13 de julho de 11000, o sargento da Marinha
Alberto Poppinger teve um derrame cerebral
enquanto trabalhava na Estação.
Mas, nem o sacrifício do sargento,
nem a grandiosidade da empreitada, respondem,
por si só, a uma dúvida pertinente
a qualquer contribuinte brasileiro, aquele
cidadão que, no fim das contas, banca
essa aventura exploratória: por que
o Brasil está, há 20 anos, metido
no lugar mais frio e inóspito do mundo?
Há duas explicações
recorrentes. Uma, comum a pesquisadores e
cientistas, diz respeito à inserção
do país na comunidade científica
internacional instalada, há quase um
século, no continente antártico.
Outra, defendida de forma doutrinária
pelos militares, diz respeito a uma estratégia
geopolítica voltada para o futuro.
Mais precisamente, para o ano 2048, quando,
pelas regras do Protocolo de Madri (um anexo
ao Tratado Antártico), as nações
signatárias poderão começar
a discutir a exploração mineral
na região. Até lá, toda
atividade permitida é a pesca e o turismo.
O Brasil, por sinal, não atua em nenhuma
das duas áreas.
“É difícil
explicar para o cidadão comum um projeto
de tão longo prazo”, reconhece o almirante
José Geraldo Fernandes Nunes, titular
da Secretaria da Comissão Interministerial
para Recursos do Mar (Secirm), órgão
da Marinha onde está apensado o Programa
Antártico. “Mas muitas pesquisas já
apresentam resultados práticos para
a vida dos brasileiros”. Entre elas, cita
o almirante, está o monitoramento meteorológico
da Antártica. Graças a esse
serviço, é possível prever
a chegada de frentes frias no sul do Brasil.
Com essa informação disponível,
os produtores agrícolas da região
disparam foguetes recheados de ligas metálicas
nas nuvens identificadas. Com isso, dissipam
tempestades de granizo antes de elas destruírem
as plantações.
O almirante Fernandes atravessou
o continente para participar das comemorações
dos 20 anos da Estação Ferraz.
A lista de convidados inclui, ainda, o ministro
da Defesa, José Viegas, e os comandantes
da Marinha, Exército e Aeronáutica.
O militar é um entusiasta do Proantar,
mas preocupa-se com a redução
sistemática do orçamento do
programa.
Cada uma das sete missões
anuais promovidas pelos comandos da Marinha
e da Aeronáutica custa, em média,
R$ 10 milhões. Isso apenas com a chamada
operação logística das
duas forças. O orçamento do
Proantar, para 2004, é de R$ 1,5 milhão.
É pouco dinheiro e, para piorar, está
sendo reduzido ano a ano. Esse achatamento,
diz o almirante Fernandes, está provocando
um desequilíbrio nas contas da Marinha.
“A força naval acaba tendo que tirar
dinheiro do próprio orçamento
para garantir a manutenção dos
trabalhos”, explica.
A Marinha mantém
um navio oceanográfico, o “Ary Rongel”,
durante cinco meses na Antártica. A
embarcação, construída
em 1981, foi comprada da Noruega em 1994.
Ela serve de apoio logístico para a
Estação Ferraz, opera helicópteros
de pequeno porte, transporta carga e pesquisadores,
mas é vítima constante dos péssimos
humores do Mar de Drake (que separa a América
do Sul da Antártica) e dos icebergs.
Assim, tem que passar por reparos anuais.
O barco fica seis meses, durante o inverno
austral, estacionado no Arsenal de Marinha,
no Rio de Janeiro. Cada manutenção
desta custa entre R$ 2 milhões e R$
3 milhões, todo ano.
Atualmente, a Estação
Comandante Ferraz conta com 64 módulos
habitacionais, também utilizados como
laboratórios de pesquisa, alojamento,
centro de saúde e cozinha. Lá,
um grupo base de 10 militares da Marinha permanece
por um ano _ 12 meses ininterruptos, sem sair
da Estação. Os contêineres
também abrigam 24 pesquisadores no
verão e outros sete no inverno.