01/11/2005 - Incra publica
portaria que sobrepõe território
quilombola do Vale do Guaporé à
Unidade de Conservação de proteção
integral e compra briga com o Ibama. Enquanto
o órgão ambiental afirma que
os limites da comunidade foram definidos de
forma artificial, os defensores da portaria
dizem que os moradores do quilombo ajudam
a preservar os recursos naturais e que estão
sendo vítimas de discriminação
racial.
Uma portaria publicada no
começo de outubro pelo Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) é exemplo acabado da conversa
de surdo e mudo existente entre órgãos
do governo federal. A portaria número
29, publicada no último dia 5 e assinada
pelo superintendente regional do Incra em
Rondônia, determina a demarcação
de um quilombo no Vale do Guaporé,
região no extremo noroeste do estado.
O problema é que o quilombo, chamado
Santo Antônio, tem seu território
sobreposto à Reserva Biológica
(Rebio) do Guaporé, uma Unidade de
Conservação (UC) federal de
proteção integral, administrada
pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A sobreposição é proibida
por lei. Agora, Ibama e Incra esgrimam argumentos
na tentativa de defender cada qual o seu quinhão.
Enquanto isso, as 21 famílias quilombolas
que habitam o local sobrevivem dos benefícios
dos programas assistenciais do governo federal
e a floresta em seu entorno desaparece ao
ritmo constante dos tratores de madeireiros
e pecuaristas.
O Sistema Nacional de Unidades
de Conservação (Snuc) proíbe
que os recursos naturais da Rebio do Guaporé
– criada há 20 anos em uma área
de mais de 605 mil hectares - sejam explorados
por qualquer pessoa, mesmo que faça
parte de população tradicional.
Com a exceção de atividades
educacionais, nada pode ser feito dentro de
qualquer UC de proteção integral.
Acontece que os quilombolas do vale do Guaporé
são descendentes de escravos fugidos
que chegaram na região há pelo
menos 200 anos. É por isso que o superintendente
do Incra em Rondônia, Olavo Nielow,
diz que a reserva nunca deveria ter sido criada
na área ocupada pela comunidade. “Não
há como contestar a existência
do quilombo, muito mais antigo do que a criação
da reserva”, diz Nienow.
O chefe do Incra garante
que o Ibama integrou o grupo de trabalho para
a regularização fundiária
dos quilombos – além de Santo Antonio
(com área de quase 87 mil hectares),
outra comunidade do Vale do Guaporé
foi contemplada por portaria do Incra no dia
5: o quilombo de Pedras Negras, mais ao sul
do vale - por sua vez sobreposto a uma Reserva
Extrativista estadual -, foi declarado com
quase 43 mil hectares. Além de Incra
e Ibama, as comissões que decidiram
pela demarcação dos quilombos
também contaram, de acordo com as portarias,
com representantes do governo estadual e da
Universidade Federal de Rondônia.
Tentativas de despejo
Olavo Nienow explica que
a regularização fundiária
das comunidades é urgente. Relata que
a comunidade de Santo Antônio, em especial,
tem sofrido ao longo dos anos um histórico
de ameaças, violências e tentativas
de despejo. “O mais grave é que a reserva
é constantemente invadida por madeireiros
e não há fiscalização
suficiente”, reclama. “E os quilombolas são
exatamente os que mais ajudam a preservar
os recursos naturais da área”. Ele
afirma que, embora a relação
entre Incra e Ibama realmente não seja
“muito amistosa”, as divergências devem
ser tratadas nas esferas federais, ou seja,
em Brasília.
O gerente executivo do Ibama
em Ji-Paraná (RO), Walmir de Jesus,
esteve em Brasília na segunda-feira,
31 de outubro, reunido com o presidente do
órgão, Marcus Barros. A sobreposição
do quilombo na Rebio, entretanto, não
estava na pauta da reunião. Na última
sexta-feira, o gerente regional fora denunciado
pela polícia por estelionato e apropriação
indébita de madeira, conforme notícias
veiculadas pela imprensa. Walmir de Jesus
está sendo acusado de facilitar a retirada
irregular de 16 mil metros cúbicos
de madeira nobre, o equivalente a cerca de
8 mil árvores de uma reserva florestal
de Rondônia. Sobre o caso da sobreposição,
Walmir de Jesus é enfático.
“Somos contrários à forma como
o Incra conduziu o processo. Houve má-fé
na criação dos quilombos, os
limites são artificiais”.
O funcionário diz
que o Ibama vai realizar um novo trabalho
antropológico, segundo ele “honesto”e
“sério”, para rever os limites das
áreas das comunidades. “Sabemos que
cerca de 80% da verdadeira área de
Santo Antônio fica fora da Rebio, onde
atualmente existem fazendas. Como é
muito mais difícil mexer com os fazendeiros,
colocaram o quilombo em cima da reserva”.
Walmir de Jesus nega ainda que o Ibama tenha
participado das comissões citadas nas
portarias do Incra. “Do jeito que ficou, a
área da Santo Antônio está
superdimensionada e a da Pedras Negras, subdimensionada”.
O gerente do Ibama admite que, ainda que a
presença da comunidade quilombola não
prejudique as condições de conservação
das espécies na reserva biológica,
a situação pode se agravar.
“O impacto seria muito maior com a demarcação
definitiva, pois muita gente que saiu de lá
pode voltar e aumentar a população”.
A bióloga Mariluce
Messias, presidente da Ação
Ecológica Vale do Guaporé (Ecoporé),
a ONG ambiental mais antiga de Rondônia,
também contesta a criação
de ambos os quilombos. Para ela, trata-se
de “uma má notícia travestida
de boa notícia”. “No caso do quilombo
de Santo Antônio, a comunidade foi expulsa
por fazendeiros dentro da Rebio e pressionados
a demandar o reconhecimento do território
ali dentro”, explica. “E, no caso do quilombo
de Pedras Negras, o que aconteceu foi que
a criação da área diminui
drasticamente o território da comunidade,
que antes podia ocupar toda a Reserva Extrativista.
Agora eles têm uma área insuficiente
para sobreviver e, quando buscarem recursos
naturais fora dos limites do quilombo, estarão
ilegais em sua própria terra”.
A tese de doutorado do historiador
Marco Antônio Teixeira, da Universidade
Federal de Rondônia, fundamentou a portaria
do Incra que está sendo objeto de polêmica.
“A criação da Rebio e a presença
do Ibama foram dois fatores que oprimiram
a comunidade de Santo Antônio do Guaporé”,
acusa Teixeira. Ele conta que o Vale do Guaporé
é a única região rondoniense
com população quilombola, descendente
dos escravos que trabalharam na mineração
do ouro entre 1734 e 1835, a partir da antiga
capital do Mato Grosso, Vila Bela da Santa
Trindade. “Atualmente no vale existem 3 comunidades
reconhecidas e outras oito com estudos em
andamento. Mas pelo menos quatro foram extintas
depois da criação da Rebio”,
afirma o pesquisador. Ele diz que Santo Antônio
chegou a ter 300 habitantes e que, agora,
estes não passam de oitenta. “As pessoas
foram expulsas e acabaram nas periferias das
cidades, muitas no tráfico ou na prostituição”,
afirma. “Com a demarcação das
terras, os quilombolas terão liberdade
para manejar os recursos naturais e cultivar
roças”.
Atração
turística
José Soares Neto,
uma das lideranças das comunidades
quilombolas do Vale do Guaporé, nega
que os moradores de Santo Antônio tenham
se transplantado para a atual localização
do quilombo. “Nunca houve nenhum quilombola
nas fazendas. O que acontecia é que,
no passado, nossos ancestrais viviam escondidos
na mata, longe da beira do rio, para onde
foram apenas mais recentemente”, explica.
“O Ibama deveria ter mais responsabilidade”.
A liderança quilombola diz ter sido
um dos criadores da ONG Ecovale que, em 1999,
se credenciou como colaboradora do Ibama em
atividades de preservação do
Vale do Guaporé.
Há alguns anos, inclusive,
a presença das comunidades quilombolas
na região era tratada como atração
em pacotes de ecoturismo para a região.
Os visitantes eram convidados a conviver com
as comunidades centenárias e a acompanhar
as atividades de extração e
defumação da seringa, a coleta
da castanha e a fabricação artesanal
da farinha de mandioca. Soares Neto conta
que a parceria se deu exclusivamente na reserva
extrativista das Pedras Negras. “Porque na
Rebio o Ibama nunca nos apoiou em nada, muito
pelo contrário”. Ele ressalva o órgão
tem quadros conscientes da situação
quilombola na região mas que, em geral,
a presença das comunidades negras incomoda
mais os funcionários que trabalham
na Rebio do que a existência de índios.
“A discriminação é muito
maior contra os negros”.
Além de estar agora
sobreposta a uma comunidade quilombola, a
Rebio do Guaporé tem parte de sua área
incidindo sobre a Terra Indígena Massaco,
onde vivem povos indígenas isolados.
E também é limítrofe
à TI Rio Branco, habitadada pelos Aruá,
Kanoe, Makurap, Tupari, entre outros índios.
O chefe da Reserva Biológica do Guaporé,
Samuel Nienow - filho do superintendente do
Incra no estado -, afirma que quer saber se
os sítios arqueológicos encontrados
na reserva são indígenas ou
quilombolas. “Temos que respeitar o direito
das comunidades, mas a Rebio precisa de proteção,
pois abriga espécies ameaçadas
de extinção e é seu local
de reprodução”, afirma. Samuel
Nienow diz que já ouviu falar da relação
complicada entre o Ibama e os quilombos na
região do Guaporé. “Mas acredito
que podemos ter uma parceria com eles para
somar o lado ambiental ao social”.
Presença
negra na Amazônia
A Coordenação
Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq),
estima que existam cerca de mil comunidades
quilombolas na Amazônia, sendo que o
Pará concentra 335 delas e o Maranhão,
535. Números de uma presença
que boa parte dos brasileiros ignora. O antropólogo
Alfredo Wagner, da Universidade Federal do
Amazonas, autor do projeto Nova Cartografia
Social da Amazônia, lembra que a historiografia
sempre omitiu ou subdimensionou a presença
negra na maior floresta tropical do planeta.
“Esta omissão combina com o discurso
ambientalista radical, que quer apagar a presença
do homem na Amazônia”, aponta o pesquisador.
“Os chamados conservacionistas não
entendem que a presença destes grupos
é que permitiu a reprodução
de muitas espécies naturais”, critica.
O antropólogo afirma
que alguns autores, entretanto, registraram
e documentaram a introdução
de escravos na Amazônia, inclusive sua
relação com os povos indígenas.
“Estes trabalhos evidenciam que a força
do trabalho escravo na região não
foi reduzida, como o senso comum tende a imaginar.”
Wagner afirma que a chegada dos negros pelos
portos de São Luís e Turiassú,
no Maranhão, e Belém, no Pará,
vindos principalmente das atuais Guiné,
Angola, Congo e Moçambique, começou
por volta de 1755, com a criação
da Companhia Geral do Grão Pará
e Maranhão. “A data coincide com a
da abolição indígena”,
lembra Wagner.
Ao longo de todo o período
colonial, aproximadamente 50 mil escravos
teriam entrado na Amazônia. Trabalharam
para os jesuítas, militares em áreas
de fronteira – o que os levou para a parte
ocidental do território – e para grandes
empreendimentos da coroa portuguesa e de fazendeiros
brasileiros, como plantações
de cana de açúcar, arroz, mineração
de ouro e pecuária. “Tudo isso era
feito com mão-de-obra escrava. O Estado
português inclusive concedia crédito
para os fazendeiros comprarem escravos”. Com
o abandono das fazendas e o fim da escravidão,
os quilombos se constituíram como núcleos
agrícolas e extrativistas praticamente
isolados da sociedade nacional. “Muitos quilombolas
se tornaram seringueiros como meio de vida,
mas não deixaram de manter sua própria
cultura”, diz a pesquisadora Jô Brandão,
da Conaq.