09/11/2005 - Na sexta e
última reportagem da série São
Gabriel da Cachoeira planeja o seu futuro,
o presidente da Federação das
Organizações Indígenas
do Rio Negro (Foirn), Domingos Barreto Tukano,
explica que o Plano Diretor é a chance
para que as comunidades que estão muito
distantes da sede do município se tornem
menos dependentes dos conhecidos "regatões"
e possam melhorar sua qualidade de vida.
Domingos Barreto Tukano,
diretor-presidente da Federação
das Organizações Indígenas
do Rio Negro (Foirn), fundada em abril de
1987, acredita que a elaboração
de um planejamento urbano e territorial para
São Gabriel da Cachoeira é a
oportunidade para as comunidades do interior
buscarem saídas da histórica
dependência em relação
ao comércio fluvial comandado por homens
brancos, os chamados regatões. Nessa
entrevista ao ISA, o líder indígena
fala também sobre alternativas de geração
de renda e dos problemas enfrentados pelas
comunidades indígenas do município.
ISA - Quais são
as prioridades que a Foirn enxerga para São
Gabriel da Cachoeira, tendo em vista a produção
de um Plano Diretor?
Domingos Tukano
- Em primeiro lugar, a construção
de um Plano Diretor em São Gabriel
da Cachoeira tem muito a contribuir. Esperamos
mostrar à prefeitura os dados obtidos
na pesquisa feita na cidade para que sejam
levados em conta. Nossa pesquisa pode mostrar
um quadro real de problemas da cidade, como
a questão do emprego, que ao meu ver
é o mais grave deles e fruto da falta
de investimento dos governos na região.
Porque nós acreditamos que a atividade
agrícola, a comercialização
de produtos regionais, o artesanato, tudo
isso pode gerar emprego para as comunidades
sobreviverem e gerarem renda. Por isso creio
que o Plano Diretor tem que ter uma visão
voltada para as comunidades fora da sede do
município, e pensar nas realidades
vividas nestes lugares, onde falta infra-estrutura
como esgoto e luz. A vida básica depende
de boa educação e saúde.
Já para São Gabriel, acho que
a construção de mercados indígenas
também pode ser uma boa idéia
para facilitar que os moradores da cidade
tenham mais acesso à renda.
A Foirn elaborou
o Programa Regional de Desenvolvimento Indígena
Sustentável do Rio Negro (PRDIS-RN).
Quais são os principais pontos?
Pedimos a demarcação
física e homologação
das TIs Balaio e Marabitanas-Cué Cué,
a implementação de um plano
de proteção e fiscalização
de todas as TIs e Unidades de Conservação
do município, com a participação
indígena. Outro ponto fundamental é
a consolidação e aprimoramento
do Distrito Sanitário Especial Indígena
do Rio Negro, que vem funcionando desde 1999
por meio de um convênio entre a Foirn
e a Fundação Nacional de Saúde.
Acreditamos também que o apoio dos
governos estadual e federal a formação
de acervos culturais, que valorizem as tradições
dos povos nativos da região, deve ocorrer
para que São Gabriel tenha sua identidade
fortalecida. O apoio à educação
indígena em todos os níveis,
por sinal, é a nosso ver essencial
para a sustentabilidade das comunidades.
Como está
o fluxo das comunidades para a cidade e demais
núcleos urbanos do município?
O fluxo deu uma diminuída,
mas segue existindo. A experiência das
escolas-piloto indígenas tem feito
certa diferença em algumas regiões,
incentivando as pessoas a ficar em suas comunidades.
Ter uma atividade que gera bem-estar ajuda
na permanência das pessoas. Mas em algumas
regiões ainda tem êxodo forte
para a cidade, onde falta uma experiência
ou um projeto como o destas escolas. Mas em
geral a maior parte da região do rio
Negro deu uma freada, graças a estes
projetos de alternativas econômicas
e escolas, que fornecem segurança alimentar
e educação.
Na sua opinião
como o Plano Diretor pode ajudar na interação
entre a sede e o interior do município?
Nós defendemos que
o município seja visto levando-se em
conta sua sede e suas comunidades. O Plano
Diretor não pode se resumir à
cidade, ainda que tenha que trabalhar com
seus bairros, com espaços de comercialização
de produtos regionais, com saneamento básico,
com espaços de lazer e esporte. Fora
isso, tem que pensar em como diminuir a relação
de dependência entre as comunidades
e os regatões. Porque existe uma dependência
clara, já que as comunidades não
acham uma opção e nem o governo
oferece uma opção, seja de atividade
agrícola, seja de criação
de animais ou comercialização
de artesanato. Por isso o Plano Diretor tem
que contemplar essas atividades. Porque fazendo
educação e saúde chegar
lá, junto com programas de crédito,
a dependência vai diminuir. Mas isso
tem que ser feito da maneira nossa, da maneira
indígena, porque a Foirn tem uma experiência
acumulada mostrando o que é viável
em políticas públicas para comunidades
indígenas. Além disso, temos
projetos e dados de macrozoneamento que podem
colaborar para o desenvolvimento regional.
Quais os produtos
indígenas com maior potencial?
Sem dúvida a farinha
de mandioca, na maior parte da região.
Mas falta infra-estrutura para atender a produção
e o escoamento. A maioria das pessoas aqui
na região trabalha com farinha de mandioca.
E a criação de animais, avicultura,
é outra prioridade, assim como a piscicultura.
E diversos tipos de artesanato, como o que
é feito com tucum, com a piaçava,
e mesmo o banco tukano. Eu só queria
afirmar a necessidade das comunidades de quebrar
essa dependência dos patrões.
Temos que criar um canal para levar os produtos
rio acima com preços mais baixos. Mas
aqui na cidade todos os grandes comerciantes
são brancos, temos que quebrar esse
ciclo. Acredito que uma chance é abrir
um financiamento para comerciantes indígenas.
Que outro problema
atinge a população do interior
do município?
A falta de documentos é
grave na região, muita gente precisa
tirar aposentadoria e não consegue,
os órgãos públicos fazem
as pessoas sofrerem para ter acesso a seus
direitos. No PRDIS-RN, aliás, já
pedíamos que o Ministério da
Justiça apoiasse os trabalhos do Balcão
da Cidadania Indígena do Rio Negro,
iniciado em 2001 e finalizado em 2002, para
permitir que as pessoas das comunidades mais
remotas tivessem acesso à documentação
básica a às informações
sobre seus direitos. A falta de cidadania,
contudo, persiste. Somado à ela, o
desemprego faz com que, em São Gabriel
da Cachoeira, famílias inteiras dependam
do namoro ou do casamento de uma de suas filhas
com um branco, seja militar, seja um garimpeiro
velho perdido por aí, para sobreviver.