09/11/2005 - O mais indígena
dos municípios brasileiros, situado
na fronteira da Colômbia e Venezuela,
cujo território é o terceiro
maior do País, testemunha o crescimento
desordenado de sua cidade-sede e demais aglomerados
urbanos. Deste processo surge uma série
de problemas sociais, econômicos e ambientais
que atinge, em especial, a população
indígena jovem. Ao mesmo tempo, as
demandas das mais de 500 comunidades de 23
etnias locais não encontram respostas
adequadas do poder público. Para enfrentar
estas questões, os atores locais estão
elaborando o Plano Diretor do município.
O ISA aproveita a oportunidade e publica reportagem
especial sobre os principais desafios de um
dos maiores símbolos da sociodiversidade
brasileira e suas perspectivas de futuro.
Com mais de 109 mil quilômetros
quadrados de área; habitado por 23
povos indígenas espalhados por mais
de 550 comunidades – e que fazem de sua sede
a cidade mais indígena do País;
situado na fronteira do Brasil com Colômbia
e Venezuela – uma importância geopolítica
confirmada pela presença crescente
de militares; cercado de Floresta Amazônica
por todos os lados e incluído na maior
bacia de águas pretas do mundo. Definitivamente,
São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas,
não é um município comum.
O que o diferencia de muitos
municípios brasileiros, contudo, não
é suficiente para evitar que São
Gabriel, como é mais conhecido, enfrente
atualmente um problema comum a outros lugares
do País: o crescimento desordenado
de sua área urbana. Para se ter uma
idéia, a população da
cidade em 1991 era de quase sete mil pessoas
e hoje está por volta de 15 mil habitantes,
quase a metade da total do município
(estimada em 36 mil). Esta expansão
caótica é, ao mesmo tempo, causa
e efeito de uma série de avarias sociais,
econômicas e ambientais, cuja face mais
visível é o surgimento de bairros
miseráveis e violentos nas bordas da
cidade. A pane é detectada também
no alto êxodo da população
indígena do interior para a cidade,
nos casos de alcoolismo e, sobretudo, no desemprego
que paralisa boa parte da população.
Este fenômeno também é
verificado nos demais núcleos urbanos
do município, como Iauaretê e
Pari-Cachoeira. Saiba mais sobre o êxodo
rural em São Gabriel.
No começo de outubro
a sociedade civil organizada de São
Gabriel da Cachoeira se reuniu para colocar
uma lupa sobre o mapa do município.
Moradores da cidade, lideranças comunitárias,
representantes da prefeitura, do governo federal,
do Exército e de entidades civis- entre
elas o ISA, que há 10 anos tem na cidade
uma de suas subsedes – participaram nos dias
5 e 6 do II Encontro do Plano Diretor de São
Gabriel. Nos dois dias de reunião,
o município foi o foco da atenção
de todos os participantes, que buscaram esmiuçar
os problemas locais para nortear caminhos
e estratégias que resultem em melhores
condições de vida para toda
a comunidade.
O Plano Diretor é
uma lei municipal prevista no Estatuto da
Cidade, criado pelo governo federal em 2001,
para ser o instrumento básico da política
de desenvolvimento e expansão urbana
dos municípios brasileiros. Deve ser
aplicado em todos aqueles com mais de 20 mil
habitantes ou nos que fazem parte de regiões
metropolitanas, tenham grande potencial turístico
ou, ainda, que irão receber obras de
impacto ambiental. Todos estes devem elaborar
até outubro de 2006 seus Planos Diretores
– caso contrário seus prefeitos poderão
responder por improbidade administrativa.
O prefeito de São
Gabriel da Cachoeira, Juscelino Gonçalves
(Partido Social Liberal), afirma que a exigência
legal não é o principal motivo
pelo qual a prefeitura local tem promovido
a discussão, com a participação
ativa de todos os setores da sociedade local.
“A razão mais forte é que estamos
preocupados com os rumos que o município
está tomando. A coisa aqui está
desenfreada”, aponta o gestor, que está
em seu segundo mandato, não consecutivo.
“O progresso está chegando e nós
temos que nos preocupar com o ordenamento
e com a disciplina desse crescimento."
Leia aqui entrevista com o prefeito de São
Gabriel da Cachoeira.
O secretário de Meio
Ambiente e Turismo de São Gabriel,
Salomão Aquino, identifica dois vetores
impulsionando o crescimento da cidade. “Um
são as ações do poder
público, que abre lotes sem planejamento,
e o outro são as ocupações
de áreas públicas pela população,
que invade roças e cria novos lotes”.
Para ele, o parcelamento clandestino do solo
é um dos maiores problemas locais.
“Quando estive a frente do departamento de
terras do município tentei coibir essa
prática, a ponto de ser ameaçado
de morte. Tive que me afastar da prefeitura”.
Aquino defende a revitalização
de bairros centrais para evitar que a cidade
cresça ainda mais sobre a floresta.
“Temos que limpar os igarapés e incentivar
uma arquitetura que remeta às características
da cidade, sua identidade indígena,
para cada vez mais nos beneficiarmos do turismo”.
O encontro
Para conduzir o encontro,
a prefeitura convidou dois técnicos
do Instituto Pólis, ONG de São
Paulo especializada em políticas públicas
e planejamento urbano. “Um dos objetivos do
Plano Diretor é, principalmente, buscar
uma pactuação sobre as prioridades
das atividades e dos usos do território
do município”, explica o advogado Nelson
Saule Júnior, do Pólis. “Isso
é uma coisa relativamente nova, principalmente
para os da Amazônia, que têm grandes
extensões e não foram criados
para ter políticas que abranjam a totalidade
de seus territórios”. Saiba mais sobre
o Plano Diretor.
O especialista afirma que
o Plano Diretor também serve para impedir
que alguns usos, incompatíveis com
características ambientais ou sociais
de determinada região, sejam incentivados
pelo poder público que, na região
amazônica, se apresenta com mais força
pelos órgãos federais, como
o Exército. "A própria
característica da região, com
grandes extensões territoriais, fez
os municípios amazônicos serem
dependentes da esfera federal e dos governos
estaduais. Com o Plano Diretor, as demandas
das populações locais e regionais
poderão ser reconhecidas", acredita
Saule Jr. Saiba mais sobre a presença
militar na região .
Mais de 81% da área
de São Gabriel é composta por
Terras Indígenas homologadas. Este
número pode chegar a 90% se as TIs
Balaio e Marabitanas Cué Cué
forem demarcadas. O presidente da Federação
das Organizações Indígenas
do Rio Negro (Foirn), Domingos Tukano, lembra
que as comunidades do interior do município,
desfocadas de investimentos contínuos
em infra-estrutura, padecem de uma crônica
dependência dos comerciantes brancos
para ter acesso a uma série de produtos
industrializados, e mesmo para poder escoar
suas produções tradicionais.
“Nós acreditamos que a atividade agrícola,
a comercialização de produtos
regionais, do artesanato, tudo isso pode gerar
emprego para as comunidades sobreviverem e
gerarem renda”, pontua. “Por isso creio que
o Plano Diretor tem que ter uma visão
voltada para as comunidades fora da sede do
município, e pensar nas realidades
vividas nestes lugares”. Leia aqui entrevista
com o presidente da Foirn.
De saneamento básico
à regularização fundiária,
da urbanização de praças
e espaços de lazer à financiamento
de casas populares, a população
elencou uma série de carências
e necessidades durante o II Encontro do Plano
Diretor de São Gabriel. Uma lista tão
grande que obrigou os técnicos do Pólis
a enfatizar os limites da lei em construção.
“Ações mais concretas, como
colocar asfalto na rua, e outras melhorias,
têm que estar conjugadas com o orçamento
municipal”, ressalva Nelson Saule Jr.. “O
Plano Diretor diz quais são as prioridades,
suas metas de desenvolvimento, as necessidades
da população, mas a concretização
disso tudo depende também de vontade
política na definição
das diretrizes orçamentárias”.
O perfil da cidade
e de seus moradores
A Foirn e o ISA apresentaram
no primeiro dia o resultado da pesquisa “Levantamento
Socioeconômico, Demográfico e
Sanitário da cidade de São Gabriel
da Cachoeira (AM)", elaborada ao longo
de 3 anos e baseada em visitas a 1.444 domicílios
da cidade. A pesquisa, coordenada pela antropóloga
Cristiane Lasmar, do Programa Rio Negro do
ISA, produziu dados inéditos sobre
os bairros da cidade, e a situação
da infra-estrutura de cada um deles, no que
diz respeito à serviços de saúde,
educação, energia elétrica,
saneamento básico e coleta de lixo.
Também identificou as características
etárias e étnicas de suas populações
(ver tabela abaixo), suas fontes de renda,
relações com as comunidades
do interior do município, e a importância
de costumes tradicionais, como consultas com
benzedores, e de práticas cotidianas
como o cultivo de roças, a pesca e
a caça. Clique aqui para conhecer alguns
moradores de São Gabriel.
A pesquisa tabulou quais
os principais problemas da cidade (ver tabela
abaixo), do ponto de vista dos entrevistados.
“Pudemos assim traçar um perfil dos
moradores de São Gabriel, com especial
atenção à suas feições
multi-étnicas, condições
de vida, avaliações do presente
e expectativas de futuro”, diz o antropólogo
Beto Ricardo, coordenador do Programa Rio
Negro do ISA. “Com isso, a pesquisa pode subsidiar
a mobilização da comunidade
e das autoridades na direção
de um planejamento urbano sensível
às percepções da população”.
O resultado do trabalho
revela a existência de uma cidade com
população extremamente jovem
(49% de seus moradores têm entre zero
e 19 anos), vinda das comunidades indígenas
do interior do território (caso de
43,8% dos entrevistados) e que se estabelece
em casa de parentes, muitas vezes nos bairros
periféricos (Dabaru e Areal, dois dos
bairros mais distantes do centro, concentram
juntos cerca de 52% da população).
As mulheres indígenas casadas com brancos
são as que mais recebem em casa parentes
vindos de comunidades, pois elas dispõem
de mais recursos materiais para tanto.”, diz
Cristiane Lasmar. “O casamento entre mulheres
indígenas e homens brancos, por sinal,
é muito freqüente na cidade”.
Em busca de estudo
e trabalho
Na periferia de São
Gabriel, os novos moradores da cidade podem
se deparar com ausências importantes
de infra-estrutura, como a de energia elétrica
(cerca de 28% das casas do bairro Areal não
têm luz) ou de água encanada
que, por sua vez, atinge mais de 27% dos domicílios
pesquisados em toda a cidade. O saneamento
básico – ou a falta dele – aparece
nas tabelas como um outro grave problema enfrentado
pela população local: Quase
68% dos entrevistados afirmaram que jogam
a água utilizada na cozinha nos igarapés
próximos, na rua ou no próprio
quintal. A água servida no banho tem
o mesmo destino para mais de 70% dos entrevistados.
O levantamento conduzido
pelo ISA e pela Foirn permite afirmar também
que esse “típico habitante” de São
Gabriel chega à cidade, principalmente,
em busca de oportunidades de estudo e trabalho
(ver tabela abaixo). “Quando chegam, porém,
percebem que a cidade não é
um lugar de abundância, ao contrário
do que imaginavam”, observa Cristiane Lasmar.
Quando perguntados sobre os principais problemas
da cidade, 34% dos entrevistados responderam
“desemprego”, 15% “alcoolismo”e 12%, “violência”.
A volta para as comunidades
em caso de insucesso, contudo, não
figura entre as alternativas adotadas. “Os
vínculos com as comunidades vão
se desbotando progressivamente”, diz Cristiane
Lasmar. A antropóloga afirma que muitas
pessoas que se mudaram para São Gabriel
nunca mais voltaram para suas comunidades
de origem. “Isso faz parte de um processo
de enfraquecimento dos laços. Em geral,
são os moradores dos bairros mais recentes
que ainda mantêm relações
mais intensas com os parentes que vivem nas
comunidades, principalmente através
da troca de produtos”.
Capacidade de transformar
A pesquisadora – que também
produziu sua tese de doutorado em São
Gabriel, abordando as mulheres e as relações
de gênero na cidade - diz que a mudança
para São Gabriel embute o desejo de
experimentar o modelo de vida urbano e ocidental.
“Na superfície, este fenômeno
pode ser interpretado como se as pessoas quisessem
deixar de ser índios. Mas as explicações
são muito mais complicadas, que remetem
inclusive ao mito de origem destes povos”,
indica Lasmar. “O que podemos dizer é
que existe uma expectativa de apropriação
de capacidades dos brancos”.
Estas capacidades, segundo
a antropóloga, são representadas
por itens específicos como a educação
escolar e as mercadorias industrializadas.
“Mas se apropriar destas capacidades não
significa, para eles, deixar de ser índio”.
Cristiane Lasmar explica que, ao deixar sua
aldeia e se estabelecer em São Gabriel,
os índios deixam de contar com o anteparo
da comunidade, onde as formas de autoridade
tradicional são reconhecidas e onde
há controle social sobre as condutas
indesejáveis. Além disso, “na
cidade não há mecanismos de
produção de uma auto-estima
comunitária por meio de festas, de
ações coletivas de trabalho,
onde todo mundo tem uma identidade clara”.
Ela diz que, em geral, ao chegar na cidade,
os jovens indígenas vivenciam uma espécie
de “crise de identidade”. E ficam sem emprego,
sem acesso às mercadorias desejadas,
em alguns casos mal conseguem comer direito,
são tratados com discriminação
nas repartições públicas
da cidade, onde sempre são atendidos
depois dos brancos.
Isso tudo dá origem
a uma situação a que os moradores
de São Gabriel costumam se referir
como “o problema da juventude indígena”,
que se traduz no consumo intenso e desregrado
de álcool durante as festas nas boates
da cidade, a formação de “galeras”
(como são chamadas as gangues juvenis)
que, à noite, roubam e espancam transeuntes,
e uma incidência preocupante de casos
de violência sexual contra as próprias
mulheres indígenas. “É por isso
que, pensando na construção
do Plano Diretor, qualquer coisa que venha
a ser feita na cidade vai reverberar nas comunidades
e depois voltar para a cidade”, diz Lasmar.
“Por isso a conexão entre entre a sede
do município e seu interior deve ser
priorizada, com investimentos nos dois lados,
caso contrário o fluxo para a cidade
aumentará e a floresta continuará
cedendo espaço para a periferia urbana”.