Recém-chegados à
cidade, vindos das comunidades das Terras
Indígenas da região, no extremo
noroeste amazônico, jovens cometem atos
extremos, possivelmente em reação
a uma sensação de deslocamento
provocada, entre outras coisas, por fatores
como a desarticulação familiar,
falta de perspectivas de futuro, impossibilidade
de competir com os brancos pelas mulheres
indígenas e no mercado de trabalho
urbano e a falta de alternativas construtivas
de lazer.
Os suicídios de estudantes
da Escola Irmã Inês Penha ocorridos
em outubro e novembro em São Gabriel
da Cachoeira (AM) remetem a um problema que
está longe de ser recente e de ser
configurado por casos isolados. Em agosto
de 2004, o relatório final de uma pesquisa
do ISA e da Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (Foirn) sobre
a violência sexual na cidade já
relatava casos semelhantes envolvendo adolescentes
que estudavam na escola João Marchezzi,
situando-os em um ´amplo quadro de crise
social` vivenciado pelos moradores indígenas
de São Gabriel. A crise parece afetar
de maneira mais contundente os jovens recém-chegados
das comunidades das Terras Indígenas.
E aí se incluem fenômenos como
a ingestão abusiva de álcool
e a existência de gangues formadas por
rapazes dos bairros periféricos que,
à noite, espancam os transeuntes e
roubam seus pertences, além de praticarem
estupros coletivos.
Embora se saiba que os homens
vindos de fora da região também
se envolvem em episódios de estupro,
a postura agressiva e anti-social dos jovens
indígenas recém-chegados à
cidade, acaba por lhes conferir uma imagem
tão negativa que faz com que, muitas
vezes, eles sejam vistos como os principais
responsáveis pelo problema da violência
sexual na cidade. A população
adulta costuma se referir a tudo isso como
´o problema da juventude` - reação
a uma sensação de deslocamento
provocada, entre outras coisas, por fatores
como a desarticulação familiar,
falta de perspectivas de futuro, impossibilidade
de competir com os brancos pelas mulheres
indígenas e no mercado de trabalho
urbano, falta de alternativas construtivas
de lazer.
Urbanização
intensa e caótica
Esses problemas parecem
estar relacionados de alguma maneira a um
processo de urbanização intenso
e caótico. A cidade, sede do município
de mesmo nome, situa-se a 900 km de Manaus,
no extremo noroeste da Amazônia brasileira
e, desde meados do século XVIII, é
o núcleo de povoamento mais expressivo
da região. A população
do município é de 35 mil habitantes,
dos quais 15 mil residem na sede. Nas últimas
décadas, a utilização
de São Gabriel como ponto de apoio
governamental para a implantação
de programas de desenvolvimento transformou-a
em pólo importante da geopolítica
brasileira na fronteira com a Colômbia
e a Venezuela, e levou a um expressivo crescimento
demográfico. Ao longo dos anos, o lugar
se tornou um ponto de passagem, encontro e
interação de uma grande diversidade
de atores: nativos da região e outros
como militares, missionários, funcionários
públicos, pesquisadores e trabalhadores
braçais.
Os resultados de uma recente
pesquisa domiciliar realizada pela Foirn e
pelo ISA em parceria com as Associações
de Bairro, revelam que a população
indígena é maioria também
no contexto urbano (82,4%), fazendo de São
Gabriel da Cachoeira, a cidade brasileira
de maior concentração de índios.
Esta população é composta
por pessoas já nascidas na cidade ou
vindas das comunidades da Terra Indígena
para tentar a vida ali. Porém, apesar
de os índios serem maioria, e da população
indígena apresentar um alto nível
de escolarização, os recém-chegados
ocupam uma posição bem menos
privilegiada no mercado de trabalho urbano.
Além disso, a cidade, sobretudo os
bairros que concentram as famílias
recém-chegadas das comunidades ribeirinhas,
têm precaríssima situação
sanitária e praticamente nenhuma infra-estrutura
de vias públicas e lazer.
Os casos recentes
Os quatro suicídios
recentes de jovens indígenas de São
Gabriel ocorreram entre o início de
outubro e final de novembro, envolvendo jovens
de ambos os sexos de idades entre 12 e 14
anos. Os quatro jovens estudavam na Escola
Irmã Inês Penha, localizada no
bairro do Dabarú, e escreveram cartas
em que se despediam de familiares, amigos
e professores. Nesses textos, eles deixaram
algumas pistas sobre os motivos que os levaram
ao suicídio, mencionando a insatisfação
com suas vidas e conflitos com os pais, entre
outras coisas. Os suicídios chocaram
a população da cidade de São
Gabriel e chamaram atenção da
opinião pública.
Dados do Hospital de Guarnição
do Exército-HGU dão conta que
de outubro a dezembro deste ano aconteceram
cerca de 20 tentativas entre jovens da mesma
faixa etária:10 a 18 anos de idade.
No dia 9 de novembro, o diretor da Escola
Irmã Inês Penha, Sebastião
Maia, convocou para uma reunião algumas
instituições da sociedade civil
organizada, com o objetivo de apurar as causas
e pedir ajuda. Durante a reunião, foram
discutidas as possíveis providências
que a sociedade civil e as instituições
poderiam tomar para acompanhar melhor os jovens
e suas famílias, prevenindo assim novos
casos.
Ainda com o objetivo de
buscar uma solução para o problema,
os representantes de instituições
presentes à reunião se dividiram
em dois grupos. O primeiro, formado pelo Programa
Sentinela, Conselho Tutelar, Diocese, Fundação
Nacional do Índio (Funai) e Hospital
de Guarnição do Exército,
ficou responsável pelo atendimento
aos casos de urgência e por prestar
apoio às famílias. Como medida
de emergência, algumas jovens que tentaram
suicídio estão estagiando no
HGU, fazendo trabalhos de atendimento e atividades
recreativo-culturais, enquanto outras foram
acolhidas na Casa das Irmãs Salesianas.
O segundo grupo de instituições
ficou encarregado de formular uma metodologia
de pesquisa que permita à sociedade
civil organizada aprofundar seu conhecimento
sobre o problema. Esse segundo grupo é
composto pela Foirn, ISA, Fundação
Nacional de Saúde (Funasa), Funai,
Secretaria de Ação Social do
município e HGU. A pesquisa tem o objetivo
mais geral de subsidiar as políticas
públicas voltadas para a juventude
indígena em São Gabriel.
As propostas da
população de São Gabriel
A solução
para os problemas gerados pelo crescimento
desordenado da cidade de São Gabriel
não será simples. Mas no que
se refere especificamente à situação
da juventude indígena na cidade, a
própria população já
apresentou suas sugestões e propostas.
Reproduzimos aqui a lista de recomendações
extraída do documento final de um seminário
realizado em agosto de 2004, no contexto da
pesquisa Sexualidade, Violência e Relações
de Gênero em São Gabriel da Cachoeira
(ISA/Foirn). Recomendações aos
poderes públicos:
a) trabalhar de maneira
articulada, e em parceria com as entidades
e instituições da sociedade,
através da realização
de audiências públicas semestrais,
voltando assim suas preocupações
para as prioridades da população;
b) ampliar os quadros das
polícias civil e militar, para que
se possa fiscalizar e fazer aplicar as leis
relacionadas com o consumo de bebida alcoólica
nos bares e clubes e demais lugares da cidade;
c) realizar esforços
no sentido de aparelhar a delegacia da mulher,
para que as vítimas de violência
sexual tenham um lugar específico para
serem atendidas;
d) criar aqui na cidade
a defensoria pública;
e) criar a vara da infância
e adolescência;
f) aparelhar e dar mais
apoio ao Conselho Tutelar;
g) apoiar as associações
de bairro com relação às
iniciativas de criar espaços para atividades
de esportes e lazer para os jovens;
h) construir complexos esportivos
em cada bairro;
i) elaborar e implementar
uma política agrícola que valorize
os sistemas tradicionais dos povos da região;
j) criar uma feira diária
para que os produtores tenham onde vender
seus produtos.
Além destas recomendações
aos poderes públicos foram discutidas
algumas propostas que deverão ser implementadas
entre as instituições e entidades
presentes durante o seminário, quais
são:
:: estruturação
de um sistema de informações
sobre os eventos que envolvem violência,
integrando os diversos sistemas institucionais
já existentes, em parceria;
:: elaboração
de estudos e plano para a criação
de uma escola que seja diferenciada, partindo
do princípio da valorização
das línguas e identidades dos povos
indígenas e voltada para as oportunidades
de trabalho na região;
:: realização
de encontros e oficinas direcionados aos jovens,
trabalhando e atendendo as demandas já
feitas no encontro realizado no final de 2002
e priorizando os esportes e outras atividades
culturais;
:: realização
de oficinas sobre direitos e cidadania para
comunidades e lideranças, discutindo
questões sobre a vinda das famílias
das comunidades para a cidade;
::trabalhar e ampliar as
parcerias para aprofundar o conhecimento sobre
a questão da violência e outros
temas relacionados como consumo de bebidas
alcoólicas, lazer e esportes para os
jovens, atendimento às mulheres vítimas
de violência e outros.