Antonio
João (MS) – O líder Guarani-Kaiowá
Loretito Vilhalva interrompe a conversa para
apontar o homem corpulento a chacoalhar na
carroceria da caminhonete que passa pela estrada
pedregosa. "Aquele ali é um que
pilotou o trator que passou em cima da casa
da gente e depois ajudou a queimar",
mostra ao repórter da Agência
Brasil, que visitou na última quarta-feira
(18) o acampamento das cerca de 200 famílias
à beira da MS-384, entre Antonio João
e Bela Vista (450 quilômetros a sudoeste
de Campo Grande).
Rapidamente, Vilhalva volta
a mostrar as pessoas que estão sem
seus documentos pessoais, por terem tido suas
casas queimadas pelos fazendeiros, logo após
a desocupação feita pela polícia
por ordem judicial, em 15 de dezembro. A maioria
conseguiu trazer consigo pouco mais que a
roupa do corpo. Desde o início do mês,
a Fundação Nacional do Índio
(Funai) vem trazendo funcionários para
ajudar os índios a recuperar os documentos,
evitando que tenham problemas para, por exemplo,
receber benefícios sociais como as
aposentadorias.
É corriqueiro o convívio
entre os Guarani-Kaiowá que esperam
há quase dez anos o processo de criação
da terra indígena de Nhanderu Marangatu
e os fazendeiros que contestam essa reivindicação.
Nhanderu fica a poucos quilômetros da
cidade de Antonio João, onde reside
boa parte dos produtores rurais da área.
Antes de iniciarem a ocupação
dos 9,3 mil hectares de Nhanderu, no início
de abril do ano passado, os índios
moravam provisoriamente em 26 hectares cedidos
por fazendeiros. E parte da comunidade sobrevivia
de trabalhos temporários nas fazendas
próximas, como conta Vilhalva.
Hoje, essas saídas
para o trabalho estão suspensas. O
grupo procura se organizar para evitar a repetição
do que ocorreu com o cunhado de Vilhalva,
Dorvalino Rocha. Na porteira que dá
acesso a área de 26 hectares, ele foi
assassinado na véspera de Natal por
um segurança contratado pelos fazendeiros
para vigiar o local. Um suspeito já
confessou o crime, mas alega legítima
defesa, segundo informação da
Funai, contestada pelos índios.
A definição
sobre o mandante pode ser ainda mais difícil.
Há 23 anos, foi assassinado a poucas
centenas de metros do lugar onde Dorvalino
foi baleado, na vila do Campestre, outro guarani,
o líder Marçal de Souza. Na
época, ele denunciava esforços
de fazendeiros da região para expulsar
índios que tradicionalmente ocupavam
áreas transformadas em propriedades
rurais onde hoje é a terra indígena
Pirakuá. O crime prescreveu em 2003
sem que o culpado por mandar matar Marçal
fosse conhecido.
No sul do Mato Grosso do
Sul, janeiro é mês de sol forte
e muita chuva. Em tempo de cuidar da plantação
de verão, os Kaiowá estão
afastados à força das roças
que plantaram há alguns meses. O milho
branco sagrado, as abóboras, a batata-doce
estão logo além das cercas,
em meio aos troncos queimados da palmeira
bacuri que, por alguns meses, serviram para
sustentar as paredes das novas casas de Nhanderu
Marangatu.
Enquanto o milho branco
"saboró" cresce fora do alcance
dos xamãs que deveriam rezar para evitar
as pragas e trazer boa colheita, os índios
vivem das cestas básicas doadas pelo
governo estadual. "Nós não
somos animais de confinamento pra viver recebendo
alimento de mês em mês",
discursa o professor Isaías Sanches
Martins.
Além das cestas básicas,
os índios vêm recebendo água
potável, assistência médica
e odontológica no acampamento à
beira da estrada de terra. Os cuidados não
impediram a morte de uma criança, na
semana passada, por desidratação,
segundo os líderes da comunidade. Com
seus maracás e adornos coloridos de
algodão e penas, os xamãs estão
benzendo a estrada, para proteger as crianças
e evitar novas mortes.
"Esse sol quente está
judiando da gente. Não pára
doença aqui", diz o kaiowá
Braz Silva Gonçalves, um dos acampados.
Ele especula sobre as razões do mal-estar.
"Essa lona preta que está cobrindo
as barracas tem cheiro. É igual veneno",
diz ele. "Essa água que a gente
está bebendo sai quente da torneira.
A criança bebeu, uma semana depois
já morreu".
Debaixo da lona, por causa
da chuva forte a cair do fim de tarde, prossegue
a reunião da comunidade com os representantes
da Funai. O procurador-geral da fundação,
Luiz Fernando Villares e Silva, explica aos
índios o que o governo vem fazendo
para acompanhar a tramitação
do julgamento da ação dos fazendeiros
que pede a suspensão da criação
de Nhanderu, no Supremo Tribunal Federal.
Mais tarde, enquanto esperamos a chegada do
carro da Funai que nos levaria para passar
a noite no hotel, desabafa: "Não
dá para explicar para eles que nós
estamos dependendo da Justiça. Para
eles, é tudo responsabilidade do governo,
não existe a separação
de poderes que para nós é senso
comum".
"Eu já não
sei mais a quem pedir. A gente corre aqui,
o pessoal diz que tem que ir lá. Vai
lá, não é...", lamentava,
mais cedo, Isaías. "A gente já
não sabe mais em quem confiar",
relata a professora Léia Aquino, outra
das lideranças dos índios da
área.