31/01/2005
– O superintendente de Pesca da Sema (Secretaria
de Meio Ambiente e Recursos Hídricos),
Thomaz Lipparelli, assegura que a estiagem
prolongada do ano passado não prejudicou
o movimento reprodutivo dos cardumes nos rios
do Pantanal. Dados colhidos por técnicos
da Sema desde setembro atestam que os peixes
subiram os rios para se reproduzirem, embora
o nível das águas estivesse
baixo.
Entretanto, o mesmo estudo
evidencia redução drástica
nos recursos pesqueiros, em comparação
com anos anteriores. Lipparelli sintetiza
a pesquisa em um artigo, que segue abaixo
na íntegra, podendo ser livremente
reproduzido e publicado pelos veículos
de comunicação.
ESTIAGEM NÃO
AFETOU A PIRACEMA 2005-2006 NO PANTANAL
Dr. Thomaz Lipparelli
Superintendente de Pesca da SEMA-MS
Biólogo, Mestre e Doutor em Biologia
de Peixes pela UNESP
Conselheiro da Sociedade Brasileira de Ictiologia
Há uma tentativa
de relacionar o sucesso reprodutivo dos peixes
do Pantanal com o chamado pulso de inundação.
De fato a sazonalidade extrema dos rios da
planície de inundação
afeta o ambiente, e conseqüentemente
alguns aspectos da biologia dos peixes, tais
como a disponibilidade de alimento, seus movimentos,
crescimento e, alguns casos a época
de reprodução. Entretanto, a
hipótese de que a estiagem prolongada
no final de 2005 no Pantanal teria afetado
o processo reprodutivo dos peixes, é
especulativa e insustentável tecnicamente.
A maioria das espécies
mostra uma periodicidade em seu processo reprodutivo,
iniciando-o em uma época anterior àquela
de reprodução, e completando
este processo no momento em que as condições
ambientais forem adequadas à fecundação
e desenvolvimento de sua prole.
A partir do momento em que
uma espécie inicia sua atividade reprodutiva
(primeira maturação é
atingida), vária fatores ambientais
passam a atuar sobre os indivíduos,
de modo que as condições na
época de desova sejam favoráveis
à sobrevivência e crescimento
de sua prole.
Há um conjunto de
fatores externos (ambientais) e internos (hormonais)
que sinalizam às espécies a
melhor época para se reproduzirem.
Os fatores externos que sinalizam essa época
são chamados de FATORES PROXIMAIS (ou
gatilhos). Dentre estes existem os (1) Preditivos,
que incluem o fotoperíodo e a temperatura,
e que podem operar em diferentes fases do
desenvolvimento das gônadas (formadoras
de gametas); (2) Sincronizadores (nível
fluviométrico, disponibilidade de alimento,
condutividade, etc) que sinalizam a ocorrência
de condições favoráveis
à desova, e que atuam na maturação
final dos gametas e no comportamento dos indivíduos
de ambos os sexos, levando à fecundação;
(3) Finalizadores (hormonais) que sinalizam
o final do período reprodutivo, levando
à regressão das gônadas.
Existem ainda os FATORES MODIFICADORES, como
a qualidade da água, ciclo lunar, estado
nutricional dos adultos, interações
entre as espécies, etc, que podem acelerar
ou retardar a velocidade dos processos de
longo termo, também regulados tanto
por gatilhos preditivos como finais e, provavelmente,
dos processos mais rápidos induzidos
por gatilhos sincronizadores. Há ainda
os FATORES TERMINAIS, como a qualidade do
ambiente e a ocorrência de eventos cíclicos,
como as cheias, que garantem a sobrevivência
dos ovos e desenvolvimento das larvas.
Como vimos o sucesso reprodutivo
de uma espécie depende de vários
fatores, muitos dos quais atuaram sob a espécie
antes mesmo do período das cheias,
e de outros após o período de
cheias. As variáveis que determinam
onde e quando cada espécie se reproduz
são os fatores terminais. Essas variáveis
devem assegurar, no período reprodutivo,
uma disponibilidade de oxigênio dissolvido
suficiente, maximizar a disponibilidade de
alimento adequado às fases iniciais
de desenvolvimento e minimizar os riscos de
predação sobre a prole.
Entretanto é extremamente
perigoso afirmar que todos os modelos reprodutivos
das espécies de peixes de uma planície
de inundação estejam sincronizados
ao aumento dos índices fluviométricos,
ou que respondessem aos mesmos fatores.
Estudos recentes de pesquisadores
da Universidade Estadual de Maringá,
constataram que a intensidade reprodutiva
de determinadas comunidades de peixes da bacia
do rio Paraná começa a aumentar
com o aumento da temperatura da água
e da duração do dia (Fatores
Proximais Preditivos) que desencadeiam o início
do desenvolvimento das gônadas (onde
são produzidos os gametas) dos peixes,
e não necessariamente do aumento do
volume de água do rio. Neste mesmo
estudo, mostrou-se que para outras espécies,
o fator que regula o início da desova
(Fator Proximal Sincronizador) é a
cheia, que amplia o ambiente, propiciando
abrigo e alimento adequado às fases
iniciais de desenvolvimento. O final do período
de intensidade reprodutiva mais elevada é
determinado pelo pico da cheia (Fator Proximal
Finalizador), quando os valores de duração
do dia e a temperatura começam a decrescer;
neste período a prole já deve
ter atingido a fase juvenil, sendo capaz de
suportar as pressões ambientais resultantes
da queda do nível fluviométrico,
do período de luz e da temperatura.
Há inúmeros estudos que mostram
a relação exponencial entre
intensidade reprodutiva e duração
do dia e a temperatura da água.
Na literatura especializada
há inúmeros outros estudos apontam
que determinadas populações
de peixes de planície de inundação
cumprem sua atividade reprodutiva mesmo na
ausência de cheias. Pesquisadores do
NUPELIA/Maringá ao estudarem a atividade
reprodutiva de peixes do rio Paraná,
constataram valores de intensidade reprodutiva
superiores para o período de 1986/1987,
curiosamente quando o nível fluviométrico
do rio Paraná não apresentou
variação cíclica marcada,
com cheia quase inexistente. Pôde-se
supor que um maior esforço reprodutivo
(incremento na produção de gametas)
da comunidade de peixes, representa uma resposta
a esta condição desfavorável,
determinante de maior mortalidade das fases
iniciais de desenvolvimento, em função
da menor disponibilidade de abrigos e, conseqüentemente,
de maior predação, e da menor
disponibilidade de alimento adequado.
Assim, devemos considerar
que mesmo em um período longo de estiagem,
em qualquer bacia hidrográfica, muitas
espécies mantêm seu padrão
reprodutivo e até mesmo podem apresentar
um maior esforço reprodutivo em decorrência
a sua plasticidade adaptativa frente às
adversidades ambientais. Temos aquelas espécies
que em condições adversas passam
a produzir um maior número de gametas
frente a um possível incremento de
mortalidade. Em condições ambientais
ou hormonais extremas, que não é
o caso atual no Pantanal (2005-2006), há
uma alternativa: os indivíduos podem
reabsorver seus gametas (atresia folicular),
processo bastante comum em espécies
marinhas.
Outro aspecto relevante
e perigoso nesta discussão é
a generalização. E não
precisa ser técnico para entender isso.
É falsa a idéia de que todos
os peixes do Pantanal reproduzem-se entre
Novembro a Fevereiro, no período de
cheias. Na verdade, há uma sazonalidade
reprodutiva diferenciada para as espécies
de peixes no Pantanal. Uma mesma espécie
pode iniciar e finalizar sua atividade reprodutiva
em diferentes períodos em diferentes
sub-bacias. Estamos propondo um novo conceito
para esta questão. Observando a duração
do período do ano em que as espécies
se reproduzem ao evento cíclico de
variação do nível fluviométrico
de um rio, podem-se estabelecer quatro grupos
de peixes: (1) reprodução curta
– em média quatro meses, sazonal com
pico entre novembro a fevereiro; (2) reprodução
média antecipada – em média
sete meses, sazonal antecipado para enchente
(setembro a março); (3) reprodução
média prolongada – em média
sete meses, sazonal prolongada para cheia
(outubro a abril) e (4) reprodução
longa – em média nove meses, não
sazonal. Pesquisadores da UEM, utilizando-se
desta metodologia, constataram para a bacia
do rio Paraná, que 35,9% apresentam
o padrão (1), 52,8% o padrão
(2) ou (3) e apenas 11,3% o padrão
(4).
Sabemos muito pouco das
estratégias reprodutivas dos peixes
no Pantanal. Qualquer hipótese aventada
em relacionar a redução dos
índices pluviométricos a um
possível “fracasso reprodutivo” ou
como uma das “causas da redução
dos estoques de peixes no Pantanal” é
mera especulação, sem qualquer
embasamento científico.
Apesar das tentativas em
apontar fatores externos para a redução
dos estoques pesqueiros (p.ex. barragens,
navegação, utilização
de várzeas para agricultura, urbanização,
extração de água e despejo
de resíduos) ou ambientais (p.ex. períodos
de cheias ou seca), não podemos esquecer
da forte e crescente pressão da pesca
sob os estoques.
A pesca resulta na remoção
seletiva de grupos de tamanho ou idades diferentes,
podendo resultar em alterações
nas densidades populacionais, levando a mudança
nos parâmetros reprodutivos dos peixes.
No passado, a pesca era limitada pelo numero
de localidades onde houvesse peixes. Hoje
o limite é o número de peixes
nos rios. Assim, aumentar o número
de pescadores profissionais, como alguns defendem,
não incrementará o volume de
pesca, mas sim colocará em colapso
o pouco que ainda nos resta.
A Secretaria
de Meio Ambiente e Recursos Hídricos
de Mato Grosso do Sul vem adotando uma corajosa
revisão da Política de Pesca
na bacia do rio Paraguai, através da
adoção de medidas, muitas vezes
impopulares, que objetivam redefinir a sustentabilidade
da pesca no Pantanal e garantir um ambiente
saudável para esta e futuras gerações.