31/01/2006
- Cerca de duzentas pessoas referendaram publicamente
a proposta de criação da Resex
do Iriri, em uma reunião organizada
pelo Ibama, nos dias 19 e 20 de janeiro. O
evento pode ser considerado um passo fundamental
para a proteção da área.
A expectativa é que, dentro de um ou
dois meses, o governo federal decrete a reserva,
que também é considerada importante
na consolidação do mosaico de
áreas protegidas da Terra do Meio.
As 55 famílias que
vivem na área prevista para a implantação
de uma Reserva Extrativista (Resex) com 400
mil hectares às margens do rio Iriri,
na Terra do Meio, no Pará, começaram
finalmente a decidir o destino de suas terras,
depois de décadas de abandono e exclusão.
Cerca de duzentas pessoas referendaram publicamente,
inclusive por aclamação, a proposta
de criação da Unidade de Conservação
(UC), em uma reunião organizada pelo
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama),
entre 19 e 20 de janeiro, na localidade conhecida
como praia do Frisan, a 320 quilômetros
de Altamira (PA) em linha reta. O evento pretendia
esclarecer os moradores da região e
colher subsídios técnicos e
pode ser considerado um passo fundamental
para a criação da reserva. Os
laudos para a formalização do
processo já estão praticamente
finalizados e a expectativa é que o
governo federal decrete a UC dentro de um
ou dois meses.
O entusiasmo que marcou a reunião estimulou
também o início de uma organização
mais consistente da comunidade. Os ribeirinhos
elegeram uma espécie de junta provisória
da futura associação de moradores
do Iriri. A idéia é preparar
o caminho para a constituição
efetiva da entidade e começar a discutir
com o governo os próximos passos para
a decretação e implantação
da Resex.
O clima de festa do encontro
no Iriri contrastou com o que ocorreu em outra
reunião de esclarecimento organizada
pelo Ibama no processo de criação
da Resex do Médio Xingu, no dia 14
de janeiro, na localidade conhecida como Pedra
Preta, às margens do rio Xingu, entre
dois ou três dias de barco de Altamira.
Lá, um grupo influenciado pela Amazônia
Projetos Ecológicos, empresa pertencente
ao conglomerado CR Almeida e que se diz dona
da área, manifestou-se contrariamente
à criação da UC. A empresa
está dando emprego aos ribeirinhos
e vem distribuindo cestas básicas e
remédios para conquistar a confiança
e a simpatia da população (saiba
mais).
A área reivindicada
pela Amazônia Projetos Ecológicos,
de 1,2 milhão de hectares, também
incide sobre o território previsto
para a Resex do Iriri. Mas as pretensões
de empresas da CR Almeida na Terra do Meio
não acabam por aí: a Indústria,
Comércio, Exportação
e Navegação do Xingu Ltda. (Incenxil)
reivindica a propriedade de outro latifúndio
gigantesco de 4,7 milhões de hectares
que incide igualmente sobre a área
prevista para a Resex do Iriri. Somadas, as
duas áreas cobiçadas pelo grupo
CR Almeida na Terra do Meio representam um
império de 5,9 milhões de hectares.
Corredor de áreas
protegidas
A Resex do Iriri também
é considerada importante na consolidação
do mosaico de áreas protegidas da Terra
do Meio, proposto em um estudo realizado pelo
ISA, em 2002, sob encomenda do Ministério
do Meio Ambiente (MMA). Entre o final de 2004
e o início de 2005, seguindo as sugestões
do trabalho, o governo federal criou a Estação
Ecológica (Esec) da Terra do Meio,
o Parque Nacional da Serra do Pardo e a Resex
do Riozinho do Anfrísio (736 mil hectares),
totalizando mais de 4,2 milhões de
hectares protegidos. Restariam ainda ser oficializadas
uma Área de Proteção
Ambiental (APA), na região de São
Félix do Xingu, a Floresta Estadual
do Iriri, entre as Terras Indígenas
(TIs) Kuruaya e Baú, e a Resex do Médio
Xingu. A implantação da APA
e da Floresta Estadual é um compromisso
assumido pelo governo paraense, desde fevereiro
de 2005, que ainda não foi cumprido.
A complementação
do mosaico poderá significar a constituição
de um grande corredor de áreas protegidas
com cerca de 26 milhões de hectares,
provavelmente o maior do mundo e que deverá
estender-se por quase toda a Bacia do rio
Xingu, desde o Parque Indígena do Xingu,
no norte do Mato Grosso, passando pelas TIs
Capoto-Jarina, Menkragnoti e Kayapó,
no sul do Pará, até o arco de
TIs ao norte da Terra do Meio (Cachoeira Seca,
Arara, Kararô, Koatinemo e Trincheira-Bacajá)
(saiba mais).
A Terra do Meio é
um dos últimos grandes trechos de floresta
contínua ainda intocada no Pará.
A pesquisa realizada pelo ISA, em 2002, revelou
que a região é uma das mais
ricas do País em biodiversidade e outros
recursos naturais, como jazidas de ouro e
uma grande concentração de madeiras
de lei, sobretudo do valioso mogno. Por essa
razão, a área é alvo
de grupos de grileiros e madeireiras ilegais.
Quase todos os ribeirinhos entrevistados pela
reportagem do ISA no local relataram casos
de perseguições, expulsões,
ameaças e outros crimes praticados
por pistoleiros.
Mobilização
em defesa das terras
Na região do rio
Iriri, já há algum tempo, os
moradores iniciaram uma pequena mobilização
para proteger suas terras. Organizações
como a Comissão Pastoral da Terra (CPT)
e a Fundação Viver, Produzir
e Preservar (FVPP), que atuam em Altamira,
também vêm apoiando o movimento
e fazendo um trabalho de esclarecimento da
população sobre seus direitos.
Além disso, pela proximidade, os moradores
do Iriri tem muito contato com os ribeirinhos
da Resex do Riozinho do Anfrísio, criada
em novembro de 2004. Notícias sobre
investimentos e benefícios já
obtidos pela Associação dos
Moradores do Riozinho do Anfrísio (Amora),
como a compra de um barco e a aprovação
de um projeto de cerca de R$ de 100 mil para
comercialização dos produtos
da comunidade, têm chegado ao Iriri
e estimulado a luta pela criação
de uma Resex ali também.
“No Iriri, os ribeirinhos
estão mais conscientes do significado
da criação de uma reserva em
seu território e dos benefícios
que isso vai trazer para eles”, avalia Antônia
Melo da Silva, integrante da FVPP e coordenadora
do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA)
na região da Transamazônica e
Xingu. Ela considera que a diminuição
da pressão exercida por grileiros e
mesmo pelas empresas ligadas à CR Almeida
resulta do maior grau de organização
da comunidade. “Este é um momento histórico
na vida dessas populações, principalmente
porque elas passam a ser os sujeitos dessa
conquista, da melhoria da qualidade de vida
e da garantia de suas terras”.
Apesar da população
ter clareza de que quer garantir a conservação
dos recursos naturais que explora tradicionalmente
na região, o que coincide com os objetivos
da Resex, restam ainda dúvidas básicas
em relação às normas
para a utilização destes recursos.
Durante a reunião dos dias 19 e 20,
os riberinhos do Iriri levantaram várias
questões, como ocorreu na reunião
do Xingu, sobre eventuais restrições
às suas atividades tradicionais e manifestaram
temor por possíveis represálias
de grileiros e pistoleiros, no caso da UC
ser oficializada. Os “beiradeiros”, como também
são conhecidos os ribeirinhos, temem,
por exemplo, que sejam proibidos de pescar,
de retirar madeira e de portar armas de caça
caso a Resex seja decretada.
O receio é tão
grande que os funcionários do Ibama
foram obrigados a repetir várias vezes,
durante a reunião, que a caça,
a pesca, o cultivo de roças e a retirada
de madeira em pequenas quantidades, entre
outras atividades tradicionais dos moradores,
são garantidos pela lei, mesmo antes
da aprovação do plano de manejo
da área. A falta de escolas e de qualquer
tipo de atendimento médico também
voltou a ser citada como problema importante.
Muitas pessoas afirmaram que os dois temas
devem ter prioridade no processo de implantação
da Resex.
“O primeiro trabalho que
faremos na região será um esforço
para tirar os documentos de vocês para
que passem a existir para o Estado. Hoje,
vocês simplesmente não existem”,
anunciou, durante o evento, Marco Antônio
Delfino, procurador recém-empossado
do Ministério Público Federal
(MPF) em Altamira, ressaltando a importância
do registro dessas comunidades para que possam
ter acesso aos benefícios e serviços
públicos básicos. Ele prometeu
conversar com a prefeitura de Altamira e com
o governo estadual para que sejam construídos
na região uma escola e um posto de
saúde. Delfino disse que recebeu várias
denúncias sobre a atuação
de grileiros e pistoleiros e prometeu apurá-las
o mais rápido possível.
Povo esquecido
“Aqui não tem escola,
não tem atendimento médico,
parece que somos um povo esquecido”, lamenta
Josefa Jerônima da Silva, a dona Zefa,
53 anos, 42 deles no rio Iriri. Mesmo sem
saber dizer ao certo como vai funcionar a
Resex, ela se diz a favor de sua criação
porque julga que, depois que o assunto passou
a ser discutido na região, a atuação
de grileiros e pistoleiros diminuiu bastante.
“Antes disso, os bandidos iam à casa
da gente e diziam que éramos ‘piabas’
que os ‘tucunarés’ iam comer. Diziam
que não tínhamos direito a nossa
terra. Que quem tinha direito era quem tinha
dinheiro. Acho que isso não vai acontecer
mais”, acredita a ribeirinha, que, como conta,
“não tem leitura”.
Dona Zefa é uma parteira
de mão cheia, tem dez filhos (sendo
uma menina adotada), mas já perdeu
seis, por aborto, pneumonia e malária.
A matriarca tem ainda doze netos. Comunicativa
e cativante, esta paraense franzina de pouco
mais de 1,60 m parece personificar a resistência,
a luta e a história cheia de adversidades,
mas também a alegria, dos beiradeiros
da Terra do Meio. Ela já foi ameaçada
de morte por se recusar a sair de sua terra
e conhece várias histórias de
vizinhos assassinados pelo mesmo motivo. Depois
de 33 anos de casada, separou-se e hoje vive
na mesma localidade com os dez filhos.
Dona Zefa com um
dos doze netos: "Diziam que não
tínhamos direito a nossa terra. Que
quem tinha direito era quem tinha dinheiro."
Dona Zefa explica que, durante
o casamento, trabalhava junto com o marido
em atividades normalmente realizadas pelos
homens. Ela diz que sabe fazer de tudo o quanto
é preciso para sobreviver na região:
pesca, caça, capina, corta seringa,
faz farinha, apanha e carrega castanha. E
ainda tem tempo para cuidar dos filhos e netos.
“Espero que Deus ajude para que o governo
olhe por nós. O governo ainda não
fez nada de bom porque nós não
éramos reconhecidos, mas tenho a esperança
que ele olhe por nós agora”.
A intuição
de dona Zefa de que o processo de criação
da Resex pode diminuir a grilagem de terras
é corroborada por organizações
da sociedade civil que atuam em Altamira.
“A criação das UCs na Terra
do Meio teve um efeito imediato que foi frear
a grilagem de terras. O preço da terra
despencou. Ninguém quer comprar mais
nada lá”, comenta Tarcísio Feitosa,
da CPT. Ele adverte, no entanto, que a situação
pode ser revertida se o governo não
fizer um esforço concreto para garantir
sua presença e implantar efetivamente
as áreas protegidas na região.
Enquanto isso, os desmatamentos ilegais continuam
avançando.
Há mais de um ano,
o Ibama, em parceria com o governos estadual
e a prefeitura de Altamira, vem desenvolvendo
um trabalho de identificação
das famílias e mapeamento de suas áreas
de uso e dos recursos naturais da região.
Antes disso, as instituições
do Estado praticamente inexistiam. Há
mais de 30 anos, não há uma
escola no lugar A maior parte dos moradores
não tem documento de identidade e nunca
teve atendimento médico. O índice
de mortes por doenças como pneumonia,
malária e diarréia, por exemplo,
é bastante alto. O analfabetismo beira
os 100%.