16/03/2006
- A definição pela rotulagem
clara dos produtos transgênicos exportados,
durante as negociações sobre
o Protocolo de Biossegurança em curso
em Curitiba, sofre com a resistência
de países como Paraguai e Argentina,
que registram centenas de casos de pessoas
doentes pelo contato com herbicidas utilizados
em plantações de soja transgênica.
No México, outro país que tem
sido refratário ao termo "contém",
os agricultores denunciam a contaminação
de sementes de milho nativas por variantes
transgênicas vindas dos Estados Unidos.
CURITIBA - O terceiro dia
da 3ª Reunião das Partes do Protocolo
de Cartagena sobre Biossegurança (MOP
3) foi emblemático ao demonstrar o
quão larga é a distância
entre os interesses dos governos de alguns
países e a defesa de direitos de suas
populações mais pobres. Enquanto
grupos de camponeses e agricultores argentinos,
paraguaios e mexicanos se reuniam em uma sala
para denunciar os danos causados à
suas comunidades pela contaminação
causada pela monocultura da soja transgênica
(na Argentina e no Paraguai), e pela contaminação
do milho transgênico (no México),
na sala ao lado delegados dos governos destes
mesmos países somavam coro para, durante
a discussão do artigo 18.2 (a) do protocolo
- sobre a rotulagem de Organismos Vivos Modificados
(OVMs) destinados à exportação
-, afirmar que não aceitam a proposta
brasileira pelo termo “contém” nos
rótulos dos produtos.
Se a posição
destes países for mantida até
esta sexta-feira, o principal ponto na pauta
da MOP 3 será postergado para a próxima
reunião das partes, ainda não
agendada, frustrando as expectativas de diversos
países e entidades ambientalistas,
que buscam consolidar o marco legal sobre
biossegurança no comércio internacional
de OVMs. A delegação brasileira,
entretanto, ainda acredita no fim do impasse.
“Quarta-feira foi o dia do jogo começar,
e neste processo negociador sempre surgem
posições extremadas”, disse
Luiz Alberto Figueiredo Machado, chefe da
delegação brasileira.
Machado, diretor do Departamento
de Meio Ambiente e Temas Especiais do Ministério
das Relações Exteriores, concedeu
uma entrevista coletiva na manhã desta
quinta-feira (16/3) afirmando que a rotulagem
de OVMs de movimentação transfronteiriça
é tema agora de um grupo de 30 delegados,
de quinze países, que deve trabalhar
o dia inteiro – e mesmo durante a madrugada
- até se esgotarem as chances de entendimento.
"Hoje é o dia decisivo. Vamos
defender nossa proposta de forma firme e estamos
em diálogo permanente com as partes
que manifestam posições contrárias
às nossas para buscarmos um progresso
efetivo". Segundo estimativa de observadores
do grupo, a posição brasileira
contaria hoje com o apoio de 11 dos 15 países
incluídos no grupo.
Paraguaias emparedadas
Neste grupo fechado de 15
países, as chances das negociações
avançarem são maiores do que
na sessão do grupo de trabalho sobre
o artigo 18.2 (a) do Protocolo de Cartagena,
ocorrida na tarde de ontem, que era aberta
a todos os países e demais interessados.
A sessão revelou muito das artimanhas
usadas pelos diplomatas interessados em impedir
o avanço do protocolo sobre biossegurança.
Em uma sala lotada, discutia-se o texto apresentado
pelo Brasil como base para a nova redação
sobre a questão da identificação
e rotulagem de produtos transgênicos
destinados à exportação.
A delegação
do Paraguai, composta por duas diplomatas,
estava ladeada por representantes de dois
países que não ratificaram o
Protocolo de Cartagena: Estados Unidos e Argentina,
dois grandes exportadores de grãos
geneticamente modificados. Se de um lado os
representantes do governo norte-americano
mantinham atitude discreta em relação
à discussão em pauta, membros
do time argentino conversavam ostensivamente
com as representantes paraguaias, chamando
a atenção da imprensa e de organizações
não-governamentais que acompanhavam
a sessão. Um dos delegados argentinos,
inclusive, ao ser fotografado, passou a proteger
o rosto com as mãos e logo retirou-se
da sala.
A intervenção
paraguaia na discussão do texto brasileiro,
que propõe a adoção da
rotulagem com o termo “contém”, concedendo
prazo de quatro anos para que exportadores
se adaptem à nova regra, foi surpreendente.
Se na MOP 2, no ano passado, o Paraguai pactuou
com a proposta de rotulagem clara e precisa
do termo “contém”, desta vez a delegada
de Assunção contestou cada um
dos pontos da proposta brasileira, manifestando-se
à favor da rotulagem “pode conter”,
que interessa diretamente a países
exportadores como Argentina e EUA. O México,
por sua vez, afirmou não aceitar regras
que possam trazer prejuízos econômicos
ao país, que já usa o “pode
conter” a partir de um acordo comercial com
Estados Unidos e Canadá.
A socióloga Marijane
Lisboa, da Associação para Agricultura
Orgânica, organização
brasileira, explica que a mudança do
Paraguai se deve a uma dupla pressão:
interna, feita pelos sojicultores do País,
e externa, exercida neste corpo-a-corpo feito
pela Argentina e Estados Unidos durante a
MOP 3. Marijane explica que a pressão
dos sojicultores é, em parte, equivocada.
“A rotulagem é um problema para as
grandes empresas exportadoras, todas transnacionais,
e não para os fazendeiros. Estes vão
continuar produzindo e vendendo do mesmo jeito,
quem vai ter que fazer a identificação
e rotulagem são as empresas”.
A especialista diz que as
transnacionais, por sinal, demonstram não
ter problemas de adaptação a
mercados exigentes, como o europeu. “Elas
já identificam suas cargas para 90%
do mercado importador de milho e soja. O que
está em jogo são os 10% restantes,
os mercados africano e latino-americano, que
hoje recebem doações de alimentos
sem poder saber se as cargas são transgênicas
ou não”. O México, por exemplo,
importa cerca de seis milhões de toneladas
de milho por ano em grãos apenas dos
Estados Unidos, onde metade da produção
é transgênica.
Identidade contaminada
De acordo com Álvaro
Salgado, representante do Centro Nacional
de Apoio às Missões Indígenas
do México, presente em Curitiba, a
contaminação do milho transgênico
dos EUA no México já atinge
nove dos 31 estados daquele país. O
governo mexicano, contudo, assume apenas a
contaminação de sementes em
dois estados. O México é o país
com a maior variedade de milho nativo do mundo
e o lugar onde o grão se originou.
“O milho para nós não é
um alimento, um grão, é um Deus,
algo sagrado”, afirma Salgado. Ele conta que
a entrada das sementes transgênicas
está comprometendo a produção
e a identidade cultural de milhões
de camponeses que cultivam o milho no México,
especialmente as comunidades indígenas
do sul do País. “A contaminação
de nossas sementes está acabando com
a resistência de muitas delas à
fungos e gerando florações mal
formadas”.
O relato da contaminação
do milho mexicano por sementes transgênicas
dos Estados Unidos foi feito durante reunião
na tarde de ontem, que também apresentou
dois casos graves de impactos causados pelo
uso de agrotóxicos em plantações
de soja transgênica na Argentina e no
Paraguai. O caso argentino foi contado pela
camponesa Sofia Gatica, que atacou o monocultivo
de soja transgênica em Córdoba,
uma das principais províncias argentinas.
Ela denuncia que cerca de cinco mil argentinos
estão sofrendo com doenças causadas
pela contaminação do glifosato,
herbicida utilizado no cultivo da soja transgênica
Roundup Ready. “Temos em um único bairro
rural de Córdoba mais de 300 casos
de câncer. Além de doentes, os
moradores estão perdendo suas terras”,
afirma Gatica. Ela também diz que problemas
respiratórios, infecções
intestinais, enfermidades sanguíneas,
hepatite, malformações e abortos
estão vitimando a população
da localidade. A líder comunitária
relata que o grupo de afetados pela contaminação
está processando o governo argentino.
“Não vamos parar até que a contaminação
cesse e deixemos de ficar doentes”.
A contaminação
por glifosato causou resultados ainda mais
trágicos no Paraguai, segundo o testemunho
de Petrona Villasboa, integrante da Coordenadoria
Nacional de Mulheres Rurais do Paraguai. Villasboa
tem a dor estampada no rosto e a voz fina
de quem não acredita mais na justiça.
Seu filho Silvino Talavera morreu envenenado
em 2003, dias depois de ser banhado por um
jato do herbicida lançado por um trator.
Tinha 11 anos e voltava da escola caminhando
por uma trilha paralela a uma plantação
de soja transgênica.
Villasboa afirma que o sojicultor
lançava o veneno de quinze em quinze
dias sobre a plantação, de trator
e de avião, o que acabou por contaminar
todos os seus oito filhos. Silvino, o mais
novo, não obteve socorro médico
em tempo e, após agonizar com hemorragia
interna e queimaduras, faleceu. “Os médicos
me disseram que não podiam salvá-lo
com os equipamentos e medicamentos disponíveis”.
A autópsia feita no menino revelou
a presença de três tipos de substâncias
tóxicas em seu organismo. Villasboa
relata que processa o fazendeiro responsável
pela morte do filho e, ainda que tenha ganhado
em primeira e segunda instância, a sentença
final sempre é contestada por advogados.
O caso está agora na Suprema Corte
do Paraguai. “Até hoje o responsável
não passou um dia sequer preso”.
A comunidade de Petrona
é uma das seis comunidades de camponeses
paraguaios cercadas por áreas de plantio
de soja transgênica. O avanço
das plantações sobre as comunidades
costuma ser precedido pelo conflito entre
os fazendeiros e os camponeses. Em um episódio
no ano passado, 270 camponeses foram expulsos
de suas propriedades, 54 casas foram queimadas,
cinco dos resistentes ficaram feridos e dois
foram mortos. Quem conta o caso é Jorge
Galeano, dirigente do Movimento Agrário
Popular do Paraguai. “A cada ano, 90 mil pequenos
agricultores paraguaios são expulsos
de suas casas e obrigados a mudar-se para
favelas em cidade maiores para dar lugar à
soja transgênica”. Segundo dado de Galeano,
a plantação de soja no Paraguai
cresce a um ritmo de 250 mil hectares por
ano.