21/03/2006 - Integrantes
da delegação brasileira à
Convenção da Diversidade Biológica
(CDB)admitem ser praticamente impossível,
no curto prazo, a chegada a um consenso ou
qualquer mudança significativa no rumo
dos debates sobre grande parte dos tópicos
previstos. Surpresas podem acontecer nas negociações
que afetam interesses dos países ricos
e das grandes corporações transnacionais
da biotecnologia. Populações
indígenas e comunidades locais são
minoria e não têm direito a voto.
CURITIBA - A 8ª Conferência
das Partes (COP 8) sobre a Covenção
da Diversidade Biológica (CDB) começou
ontem, 20 de março, em Curitiba (PR),
sem muitas expectativas de avanços
importantes nas negociações
sobre os principais temas do encontro. A COP
segue até o próximo dia 31 e
reúne quase quatro mil pessoas, entre
delegados oficiais, observadores, pesquisadores,
empresários, representantes de entidades
da sociedade civil, povos indígenas
e comunidades locais (quilombolas, extrativistas,
caiçaras, ribeirinhos etc) de 187 países
e o bloco da União Européia.
As atividades no primeiro dia resumiram-se
à abertura oficial, informes, relatórios
sobre encontros preparatórios e muita
articulação política
em reuniões paralelas realizadas entre
blocos de países e por organizações
não-governamentais. As principais discussões,
que ocorrem nos Grupos de Trabalho (GTs),
começam a partir desta terça-feira.
Integrantes da delegação
brasileira admitem ser praticamente impossível,
no curto prazo, a chegada a um consenso ou
qualquer mudança significativa no rumo
dos debates sobre grande parte dos tópicos.
O problema é que as surpresas podem
acontecer – até com possibilidade de
retrocessos do ponto de vista ambiental –
justamente nas tratativas cujos resultados
concretos podem ir contra os interesses dos
países ricos e das grandes corporações
transnacionais da biotecnologia.
O poder de pressão
dos dois grupos e a lentidão das negociações
reforçam a impressão de setores
da sociedade civil e do movimento indígena
de que a implementação da CDB
é cada vez mais influenciada por interesses
econômicos e de que ela continuará
tendo poucos efeitos práticos no futuro
imediato, pelo menos no que diz respeito à
garantia dos direitos das populações
tradicionais. A situação contrasta
com o discurso de autocrítica e da
necesidade de colocar em prática as
determinações da Convenção,
que tem pautado seus vários fóruns
nos últimos anos (reuniões de
diversos GTs, órgãos e instâncias
auxiliares). A dificuldade em avançar
nas negociações também
coloca em xeque a meta de conseguir reduzir
as taxas de perda de biodiversidade até
2010.
Poucas novidades
No caso do regime internacional de acesso
aos recursos genéticos e repartição
dos benefícios da biodiversidade, por
exemplo, a previsão é de poucas
novidades – no máximo a abertura de
novos GTs e negociações. O regime
pretende estabelecer regras internacionais
para regular as relações entre
os países provedores e os usuários
dos recursos genéticos.
Por outro lado, quando o
assunto é a regulamentação
do uso das chamadas tecnologias genéticas
de restrição de uso (GURTS,
na sigla em inglês), o lobby dos grandes
laboratórios ligados ao agronegócio
consegue impôr-se mesmo em um encontro
diplomático com foco em questões
ambientais. Por conta destas pressões,
em um cenário mais pessimista, cogita-se
até a derrubada da proibição
temporária de experiências com
as chamadas sementes Terminator, que dão
origem a plantas estéreis, incapazes
de gerar novas sementes, mas resistentes a
alguns herbicidas.
Organizações
da sociedade civil, o movimento social e vários
pesquisadores temem que plantações
desenvolvidas com este tipo de manipulação
genética possam contaminar e, em conseqüência,
extinguir variedades locais e tradicionais
de algumas espécies agrícolas,
como o algodão. Além disso,
o uso dos GURTS também pode vir a ser
responsável pela consolidação
do monopólio das grandes empresas multinacionais
de transgênicos.
Além do regime internacional
sobre o acesso aos recursos genéticos
e dos GURTS, outro dos principais temas da
CDB é a regulamentação
de seu Artigo 8(j), que trata de um regime
específico (sui generis,, no jargão
diplomático) para proteção
dos conhecimentos tradicionais – informações
sobre o poder curativo de plantas medicinais,
por exemplo. A Convenção foi
assinada durante a conferência Rio-92
e tem três grandes objetivos, que constituem
eixos temáticos: a conservação,
uso sustentável da biodiversidade e
a repartição justa e equitativa
de seus benefícios.
Guerra pela propriedade
intelectual
“Estamos lidando com interesses econômicos
e comerciais poderosos. Trata-se de um `vespeiro`.
É ilusão acharmos que poderemos
negociar isso [o regime internacional de repartição]
rapidamente”, adverte Eduardo Vélez,
diretor do Departamento de Patrimônio
Genético (DPG) do Ministério
do Meio Ambiente. Ele explica que a grande
maioria dos países desenvolvidos não
tem nenhum interesse em fazer avançar
as tratativas sobre o tema e costuma emperrá-las
com uma série de manobras protelatórias.
É bom lembrar que a discordância
de apenas um país pode impedir a conclusão
de muitas das negociações travadas
durante a COP.
Vélez comenta que
o tópico da propriedade intelectual,
em especial, é responsável por
uma verdadeira “guerra” entre nações
ricas e pobres. A proposta apoiada pelo Brasil
- de se regulamentar e limitar o direito de
patenteamento de produtos obtidos a partir
de recursos genéticos e conhecimentos
de populações tradicionais mediante
a exigência da declaração
de origem e do certificado de procedência
legal - tem chances extremamente remotas de
ser aprovada. Os dois documentos atestam se
aqueles produtos foram obtidos ou não
com o consentimento prévio das comunidades
envolvidas e de acordo com as legislações
nacionais sobre o assunto.
O tema dos direitos de propriedade
intelectual tem importância estratégica
para os países em desenvolvimento e
afeta diretamente povos indígenas e
comunidades locais. As nações
pobres respondem por uma pequena fração
do número total dos pedidos de patentes
feitos em todo o mundo, mas detém a
maior parcela da biodiversidade do planeta
e, portanto, são os maiores fornecedores
de recursos biológicos. Por outro lado,
o patenteamento, em muitos casos, pode significar
uma forma de expropriação dos
recursos e conhecimentos das populações
tradicionais.
“Não acho que as
negociações vão avançar.
Muitos países ricos defendem até
que esses assuntos nem deveriam ser tratados
na CDB, mas no âmbito da Organização
Mundial do Comércio (OMC)”, reforça
Fernanda Kaingáng, secretária-executiva
do Instituto Indígena Brasileiro de
Propriedade Intelectual (Inbrapi). A advogada
e delegada indígena na COP 8, ela cita
os obstáculos impostos, em especial,
pelo grupo de países formado pelo Japão,
Canadá, Austrália, Nova Zelândia
e México, entre outros, com apoio dos
Estados Unidos, que ainda não ratificaram
a Convenção e não têm
direito a voto em suas deliberações.
Fernanda Kaingáng lembra que embates
diplomáticos semelhantes costumam arrastar-se
por anos. “A declaração sobre
os direitos das populações indígenas
está sendo debatida há dez anos
na Organização das Nações
Unidas (ONU)”.
A ministra do Meio Ambiente,
Marina Silva, expressou o seu descontentamento
com os impasses sucessivos nas negociações
internacionais sobre a biodiversidade durante
a cerimônia oficial de abertura dos
trabalhos da Conferência, na manhã
de ontem. “Há muito tempo venho manifestando
nossa preocupação com a multiplicação
de acordos multilaterais que não se
traduzem em ações concretas”,
disse. Apesar disso, ela afirmou que está
“otimista” em relação às
negociações. "Espero que
a complexidade dos debates não nos
desviem de nosso maior desafio: propostas
e encaminhamentos concretos para a implementação
da CDB."
Minoria, sem direito
a voto
No primeiro dia da COP, o Fórum Internacional
Indígena sobre Biodiversidade (FIIB)
divulgou um manifesto no qual denuncia a visão
mercantil e privatista sobre os recursos e
os conhecimentos dos povos indígenas,
que se reflete nos debates em Curitiba. “A
CDB não pode se converter em ameaça
aos nossos direitos humanos fundamentais aos
territórios, terras, águas e
recursos naturais e, inclusive, ao conhecimento
tradicional que guardamos em nossas mentes”,
afirma o texto.
O documento critica ainda
o que considera uma interpretação
distorcida do princípio da soberania
nacional sobre os recursos genéticos
que vem sendo adotada por alguns países
que fazem parte da CDB para limitar algumas
das prerrogativas. "O direito internacional
e, em particular, as normas de direitos humanos,
demonstram que existe um princípio
jurídico desenvolvido, segundo o qual
os Povos Indígenas têm o direito
coletivo às terras e territórios
que tradicionalmente têm utilizado e
ocupado. Esse direito abrange o de utilizar,
possuir, administrar e controlar os recursos
naturais que neles se encontram".
O FIIB é uma organização
de assessoramento oficial da secretaria-executiva
da CDB e conta com mais de cem representantes
indígenas de todo o mundo. Apesar disso,
os povos indígenas e as comunidades
locais são a minoria e não têm
direito à voto na Convenção,
apesar de estarem entre os grupos mais afetados
por suas deliberações e pela
atuação dos grandes centros
de pesquisa, laboratórios e empresas
do ramo da biotecnologia. A delegação
indígena oficial na COP 8 tem aproximadamente
150 pessoas, das quais cerca de 80 brasileiros
– entre os quase quatro mil participantes
da Conferência.
Representantes de comunidades
locais brasileiras apresentaram uma solicitação
na plenária principal da COP, na tarde
de ontem, para que também passem a
ser reconhecidos oficialmente pela CDB, o
que poderá conferir apenas direito
à voz em vários espaços
e fóruns da Convenção.
Marina Silva assegurou que a reivindicação
será atendida.
Entenda o significado
:: Populações tradicionais -
povos ou grupos que, vivendo em áreas
periféricas à nossa sociedade,
em situação de relativo isolamento
face ao mundo ocidental, construíram
formas de se relacionar entre si e com os
seres e coisas da natureza muito diferentes
das formas vigentes na nossa sociedade. Entre
eles, estão: quilombolas, ribeirinhos,
extrativistas, caiçaras, raizeiros,
sertanejos, geraizeiros, comunidades de "fundos
de pasto" e "faxinais" (leia
mais sobre o assunto, clicando aqui).
:: Conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade - Incluem
conhecimentos, inovações e práticas
relativos às propriedades e características
da diversidade biológica. Por exemplo:
informações sobre o poder curativo
de raízes e extratos vegetais.
:: Recurso genético
- É todo o material de origem vegetal
ou animal que contenha a informação
genética (DNA) responsável pela
produção das substâncias
e tecidos essenciais ao organismo (hormônios,
proteínas, órgãos etc).
:: Repartição
dos benefícios oriundos da biodiversidade
- É a compensação financeira
ou de outra natureza que devem receber os
povos tradicionais pelas pesquisas feitas
a partir de seus recursos naturais ou conhecimentos.
:: Consentimento prévio
informado - É a autorização
preliminar dada por uma comunidade a uma pesquisa
ou estudo realizado em seu território,
com seus conhecimentos ou recursos biológicos.
:: Sistema de propriedade
intelectual - Confere direitos de propriedade
a descrições e estudos sobre
processos que visam a obtenção
de invenções, as quais, por
sua vez, apresentem uma inovação
e permitam o uso comercial. Em todo o mundo,
existem organizações e escritórios
responsáveis por conceder esses direitos,
que podem ser patentes, marcas, registros
e copyrights, entre outros. No Brasil, o Instituto
Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi)
tem a competência de conceder e registrar
tais direitos.