24/03/2006 - Em entrevista
concedida ao ISA, o líder indígena
colombiano Lorenzo Muellas Hurtado fala sobre
tecnologias genéticas de restrição
de uso, os chamados GURTS, a Convenção
da Diversidade Biológica e sobre o
regime de acesso aos recursos genéticos,
que está sendo negociado na COP-8,
em Curitiba, e pretende estabelecer regras
internacionais para regular as relações
entre os países provedores e os usuários
dos recursos genéticos.
Na manhã de ontem,
dia 23 de março, quinta-feira, um senhor
colombiano chamado Lorenzo Muellas Hurtado
pediu a palavra no Grupo de Trabalho (GT)
sobre diversidade agrícola que está
discutindo o tema das tecnologias genéticas
de restrição de uso (GURTS,
na sigla em inglês) na 8ª Conferência
das Partes (COP-8) sobre a Convenção
da Diversidade Biológica (CDB), que
acontece em Curitiba (PR), até o próximo
dia 31. Ele fez um discurso contundente contra
o uso das sementes modificadas geneticamente,
denominadas Terminator, que geram plantas
estéreis, incapazes de produzir novas
sementes, mas são mais resistentes
a mudanças climáticas e a certos
tipos de herbicidas. As pesquisas com este
tipo de tecnologia estão proibidas
atualmente, mas o poderoso lobby das empresas
multinacionais de tecnologia, como a Monsanto,
tenta liberá-las na CDB. O assunto
é considerado um dos mais polêmicos
da COP-8.
Hurtado qualificou as Terminator
não só como “sementes assassinas”,
mas também como “genocidas”. Organizações
da sociedade civil, o movimento social e vários
pesquisadores temem que plantações
desenvolvidas com este tipo de manipulação
genética possam contaminar e, em consequência,
extinguir variedades locais e tradicionais
de algumas espécies agrícolas.
Além disso, o uso dos GURTS também
pode vir a consolidar o monopólio das
grandes empresas multinacionais de transgênicos
e a dependência financeira dos pequenos
e médios produtores rurais.
Hurtado: "A CDB não
foi feita por uma necessidade das populações
indígenas, mas pelos governos e pelas
empresas multinacionais de biotecnologia."
Pertencente ao povo Guambiano,
Hurtado, 68 anos, mal aprendeu a ler e a escrever,
mas já foi governador, senador e deputado
constituinte de seu país. Ele concedeu
uma entrevista ao ISA logo depois de fazer
seu discurso no GT de biodiversidade agrícola.
Nela, fala sobre os GURTS, a CDB e sobre o
regime de acesso aos recursos genéticos,
que está sendo negociado na Convenção
e pretende estabelecer regras internacionais
para regular as relações entre
os países provedores e os usuários
dos recursos genéticos.
ISA – Por que o Sr. é
contra as pesquisas com os GURTS?
Lorenzo Muellas Hurtado – Essas sementes foram
feitas para nos escravizar. O tipo de tecnologia
dos GURTS foi desenvolvido para nos obrigar
a comprar mais e mais sementes de seus fornecedores.
Por outro lado, as Terminator também
ameaçam nossa identidade cultural.
Para nós, Guambianos, as sementes não
servem apenas para o nosso sustento, para
nossa alimentação e para o nosso
vestir. Elas têm papel importante na
comunicação com nossos antepassados
e com o mundo espiritual. Tem um valor simbólico
importante, como oferenda para os espíritos
que estão no alto das montanhas e nos
lagos.
Mas você não
acha que as sementes geneticamente modificadas
podem significar uma boa alternativa econômica,
se as variedades tradicionais forem preservadas
também?
Nossas sementes já estão suficientemente
testadas por milhares de anos de inovações
e experiências. Se quiserem considerar
a questão apenas do ponto de vista
econômico, posso garantir que nossas
sementes são muito boas e resistentes.
Mas este tipo de visão é para
capitalistas e nossas sementes não
podem ser reduzidas apenas a um bem econômico.
Qual a sua expectativa em
relação às negociações
da COP-8?
A CDB não foi feita por uma necessidade
das populações indígenas,
mas pelos governos e pelas empresas multinacionais
de biotecnologia. Essas negociações
nos causam preocupação e temor,
nos incomodam. Creio que as determinações
tomadas na Convenção não
servem para proteger e garantir os direitos
das populações indígenas.
Não esperamos nada de bom da COP. Aqui,
estão cegos, surdos e mudos para nossos
problemas e nossos direitos.
Qual a solução,
então, para proteger os recursos biológicos
e os conhecimentos associados à biodiversidade
das populações tradicionais?
A solução é articularmos
uma mobilização massiva dos
povos indígenas, uma grande organização
em nível internacional que possa levar
adiante a nossa luta.
Como o Sr. avalia a atuação
do Fórum Internacional Indígena
para a Biodiversidade (FIIB), órgão
auxiliar oficial do secretariado da CDB?
Não acho que o FIIB está tendo
uma atuação correta. Eles trabalham
na perspectiva de que a CDB vai conseguir
implementar mecanismos para uma repartição
justa e equitativa dos benefícios.
Não acho que isso vá acontecer.
O Sr. acha que os delegados
indígenas deveriam retirar-se da COP-8?
Isso poderia ser uma arma política
eficiente?
Alguns indígenas acreditam nessa repartição
justa e eqüitativa de benefícios.
Eles estão pensando em dinheiro. Estes
nem deveriam estar aqui. Os representantes
dos povos indígenas deveriam estar
lutando contra a venda de seus recursos. Nossa
luta é em defesa de nossa dignidade.
Estamos na América há milhares
de anos lutando por ela.
O Sr. não acredita
ser possível instituir um sistema internacional
de repartição justa dos benefícios
da biodiversidade?
Os colonizadores da América foram responsáveis
pelo saque do continente. Eles nos fizeram
pobres, não porque fôssemos pobres.
Hoje, as grandes multinacionais querem nos
levar os últimos recursos. Nunca vão
querer dividir de forma justa, mas vão
querer arrancar de nós o máximo,
nossas águas, nossas terras, nossos
recursos biológicos e até o
nosso sangue. Isso foi tudo o que os nossos
antepassados nos deixaram e é aquilo
que devemos deixar para os nossos descendentes.
Este é o nosso legado.
O Sr. acha que os recursos
e os conhecimentos dos povos indígenas
podem ser comercializados?
Nossa luta tem de ser para mantê-los
em seus sítios originais. Nossos sábios
sabem que não somos os donos de nossas
terras e de nossos recursos: somos seus administradores.
E os deuses nos orientam como usá-los.
Também precisamos sempre presenteá-los
com o fruto dessas terras e desses recursos.
Assim eles continuarão nos abençoando.
Qual seria a alternativa
a um regime internacional de acesso aos recursos
genéticos e repartição
dos benefícios?
Temos duas culturas: a ocidental e a nossa
cultura tradicional. Concordamos que deve
haver trocas entre elas. A cultura tradicional
também desenvolve ciência e deve
ser usada pela ciência ocidental para
desenvolver tecnologia. Mas isso não
deve acontecer a serviço das grandes
empresas multinacionais de biotecnologia.
Isso deve ser feito com cuidado, com zelo
e envolvendo pessoas honestas, pessoas dignas,
e não mentirosos. Nós mesmos,
povos indígenas, temos nos apropriado
da tecnologia ocidental para nosso proveito:
estamos usando os computadores e o correio
eletrônico para nos organizarmos, por
exemplo. Isso é uma coisa positiva.
Em linhas gerais, como é
a legislação colombiana sobre
o assunto? Os povos indígenas colombianos
estão satisfeitos com ela?
A Colômbia ratificou a CDB. A Constituição
colombiana reproduz vários dos dispositivos
da Convenção. A CDB é
muito ampla: trata desde microorganismos até
o material colido de seres humanos, como sangue.
Não estamos satisfeitos com isso. Temos
denunciado as conseqüências disso,
porque a legislação liberalizou
o acesso aos nossos recursos e conhecimentos.
Um pesquisador com a lei na mão tem
acesso liberado aos nossos territórios
e aos nossos recursos. Somos contra este livre
acesso para a bioprospecção
(pesquisa biológica com fins comerciais).
Eles virão de qualquer jeito, até
à força, e queremos tentar impedir
isso.
Existem muitos casos de
roubo de conhecimentos e recursos dos povos
indígenas na Colômbia?
Em 1992, logo nos 500 anos da chegada dos
colonizadores, por exemplo, pesquisadores
colombianos vieram até muitas aldeias
afirmando que iriam curar ou pesquisar problemas
de saúde. Retiraram o sangue de várias
pessoas afirmando que iriam fazer análises
para curar essas doenças. Quando nos
demos conta, o material já estava em
laboratórios de genética dos
Estados Unidos. Quando era senador, lutei
para repatriar o material, mas até
hoje não conseguimos fazê-lo.