A Associação
Nacional de Ação Indigenista
(ANAÍ), o Conselho Indigenista Missionário
(CIMI), e o Mestrado em Saúde e Ambiente
da Universidade Federal do Maranhão
(MSA/UFMA), vêm a público expor,
e posicionar-se sobre, os graves problemas
detectados no processo de realização
da IV Conferência Nacional de Saúde
Indígena que, a nosso ver, comprometem
muito seriamente sua representatividade e
a legitimidade de suas propostas, enquanto
instância máxima propositiva
da política nacional de saúde
indígena, conforme disposto na Lei
8.142/90, a saber:
1 – ETAPAS PREPARATÓRIAS
Conforme estabelecido em
seu Regimento (aprovado na 155ª Reunião
Extraordinária do Conselho Nacional
de Saúde, realizada aos 8 e 9 de junho
de 2005), suas etapas locais deveriam ter
sido realizadas até 30 de outubro de
2005, e suas etapas distritais até
31 de dezembro de 2005.
Foram vários os problemas
na realização das etapas locais
e distritais da IV Conferência Nacional
de Saúde Indígena, entre povos
e comunidades indígenas abrangidos
por vários DSEIs.
No Maranhão, por
exemplo, essas Conferências Locais simplesmente
não foram realizadas, o que motivou
representantes indígenas e da Universidade
Federal do Maranhão a fazer uma série
de contatos com a Comissão Organizadora,
em Brasília, por telefone, e-mail e
pessoalmente.
As instruções
repassadas por membro da Comissão Organizadora,
em reunião realizada em 14 de novembro
de 2005, na sede do Departamento de Saúde
Indígena da FUNASA (em Brasília/DF),
foi de que todos os problemas no processo
de realização das etapas preparatórias
do evento, no âmbito do Distrito Sanitário
Especial Indígena do Maranhão,
deveriam ser encaminhados a seu respectivo
Conselho Distrital. – Ora, como fazê-lo,
se este não se reuniu uma única
vez, ao longo de 2005?(...) Diante deste contra-argumento,
o referido membro da Comissão Organizadora
limitou-se a negar este fato, reiterando que
o Conselho Distrital de Saúde Indígena
do Maranhão estava, sim, funcionante
(no que seria flagrantemente desmentido, posteriormente,
pelos próprios membros deste Conselho
Distrital de Saúde Indígena,
durante a II Conferência Distrital de
Saúde do Maranhão, realizada
de 22 a 24 de março de 2006).
Esta situação
motivou o Mestrado em Saúde e Ambiente
da Universidade Federal do Maranhão,
a protocolar uma representação
contra a FUNASA, junto à Procuradoria
da República no Maranhão, em
11 de janeiro de 2006, solicitando: a) que
fosse assegurada a realização,
no estado, de todas as etapas preparatórias
previstas (locais e distrital) da IV Conferência
Nacional de Saúde dos Povos Indígenas;
b) que fosse postergada a realização
da etapa nacional da IV Conferência,
de modo a assegurar prazo hábil para
que a todas as comunidades indígenas
no Maranhão fosse garantida ampla,
ativa e representativa participação
em todas as etapas do evento, em igualdade
de condições com as comunidades
abrangidas pelos demais DSEIs da Federação.
À revelia da não-realização
de suas etapas locais, e de todas as demandas
e protestos encaminhados à Comissão
Organizadora da IV Conferência, a FUNASA
anunciou que realizaria a II Conferência
Distrital de Saúde Indígena
do MA de 6 a 8 de fevereiro de 2006.
Em 7 de fevereiro de 2006,
índios Krikati, Gavião, Awa-Guajá
e Guajajara bloquearam a Ferrovia Carajás
em seu km 289, entre os povoados de Poeira
e Três Bocas, no município de
Alto Alegre do Pindaré, em protesto
contra a FUNASA (que anunciava já estar
realizando, naqueles dias, a II Conferência
Distrital de Saúde Indígena
do MA), com as reivindicações,
entre outras, de: exoneração
do Coordenador Regional da FUNASA, Zenildo
Oliveira; autonomia política, administrativa
e orçamentária para o DSEI-MA;
criação de mais 2 DSEIs no MA;
anulação da II Conferência
Distrital de Saúde Indígena,
então sendo pretensamente realizada
em São Luís; rescisão
do contrato com a Missão Kaiowa para
atendimento à saúde indígena
no Maranhão.
Na seqüência,
a Coordenação das Articulações
dos Povos Indígenas no Maranhão
(COAPIMA) e a Associação dos
Povos Indígenas do Grajaú (ASSINGRA)
entraram com representação junto
ao Ministério Público Federal,
solicitando a anulação da Conferência
realizada pela FUNASA entre os dias 6 e 8
de fevereiro, e a realização
de uma nova.
Essa mobilização
dos índios foi bem sucedida em vários
aspectos, tendo obtido a demissão de
Zenildo Oliveira do cargo de Coordenador Regional
da FUNASA no MA, e o reconhecimento, por parte
da FUNASA, de nova Conferência Distrital
de Saúde Indígena do MA, a realizar-se
de 22 a 24 de março de 2006, em São
Luís/MA.
Paralelamente, a representação
movida pelo Ministério Público
Federal resultou em liminar da Justiça
Federal, anulando a Conferência Distrital
realizada pela FUNASA, de 6 a 8 de fevereiro.
Assim que os índios
retiraram-se da ferrovia, entretanto, a FUNASA
tornou a acionar seus prepostos de plantão
no sentido de reverter vários dos compromissos
assumidos pela instituição,
quando da negociação com os
índios na ferrovia, entre eles o da
rescisão do contrato com a Missão
Kaiowa, e o da anulação da Conferência
Distrital por ela realizada em fevereiro (um
agravo movido pela FUNASA contra a liminar
concedida pela Justiça Federal conseguiria
derrubá-la em 27 de março, véspera
do início da Conferência).
Esta atitude dos representantes
da FUNASA aumentou muito a tensão da
delegação eleita na Conferência
Distrital do MA realizada em março,
e sua suspeição quanto a outras
possíveis manobras que os prepostos
da instituição poderiam perpetrar
para dificultar sua participação
na etapa nacional, inclusive na emissão
dos PTAs para transporte dos delegados até
o local do evento, de modo que, com o apoio
da Secretaria de Estado de Desenvolvimento
Social do Maranhão, do Mestrado em
Saúde e Ambiente da Universidade Federal
do Maranhão, e do Deputado Sebastião
Madeira, parte da delegação
do estado optou por meios alternativos de
transporte e hospedagem para a etapa nacional.
Na Bahia as etapas locais,
em cada pólo-base, não foram
realizadas.
Foram realizadas apenas
duas grandes reuniões, em Feira de
Santana e em Porto Seguro, que fizeram as
vezes de etapas locais, nas quais os delegados
à etapa distrital já chegaram
definidos pelos Presidentes de Conselhos locais.
2 – ETAPA NACIONAL
O Regimento e o Regulamento
da IV Conferência estabeleceram regras
que engessaram uma programação
de atividades já pré-definida
e extensa, restringiram o acesso dos delegados
às Plenárias Temáticas,
e complicaram a condução das
mesas e votações.
A cada delegado só
era permitida a participação
efetiva (com direito a voto) em apenas uma
das Plenárias Temáticas, por
meio de inscrição prévia,
registrada no “sistema” (os bancos de dados
da Comissão Organizadora) e impressa
em seu crachá.
Muitos delegados tiveram
sua inscrição remanejada “pelo
sistema”, contra sua vontade, para outras
Plenárias Temáticas, em função
de ter “estourado” a cota pré-definida
para sua respectiva categoria de representação
(“usuário”, “trabalhador indígena
de saúde”, “trabalhador não-indígena
de saúde”, “governo”, “prestador de
serviço”) na Plenária Temática
de sua escolha.
No que se refere à
delegação do Maranhão,
além das sucessivas ações
anteriores da FUNASA e da Comissão
Organizadora para impugnar a legítima
II Conferência Distrital, reconhecida
pelos índios (realizada de 22 a 24
de março), já durante a etapa
nacional, esta teve novamente de mobilizar-se
para enfrentar as conseqüências
do encaminhamento inicial capcioso, por parte
da mesma Comissão Organizadora, de
seu pleito pelo reconhecimento pela Plenária,
quando de sua instalação, em
27 de março: inicialmente reprovado
(porque mal explicado), seu pleito teve de
ser reconduzido à Plenária em
28/3 pela manhã, quando só então
foi reconhecido, por votação
unânime.
Em decorrência deste
mau encaminhamento inicial do pleito da delegação
do Maranhão, esta só foi efetivamente
credenciada ao final da manhã de 28/3,
de modo que seus delegados foram distribuídos
aleatoriamente, “pelo sistema”, pelas diversas
Plenárias Temáticas.
Na manhã de 29/3,
para sua surpresa, os delegados do Maranhão
foram informados que não poderiam optar
pelas Plenárias Temáticas de
seu interesse, pois “o sistema” os teria redistribuído
pelas demais, e, ainda mais grave, que as
propostas aprovadas na II Conferência
Distrital do Maranhão não poderiam
ser apreciadas, discutidas e votadas em nenhuma
dessas Plenárias Temáticas,
por não terem sido encaminhadas a tempo
de serem incorporadas ao caderno “Relatório
consolidado das Distritais”, distribuído
pela Comissão Organizadora: a única
possibilidade de encaminhá-las no evento
seria na forma de moções à
Plenária Final.
Outro dispositivo engessante
do Regulamento estabelecia, no entanto, que
só moções com no mínimo
96 assinaturas poderiam ser encaminhadas à
Plenária Final – de modo que tampouco
para nenhuma das várias moções
elaboradas pela delegação do
Maranhão, contendo propostas da II
Conferência Distrital de Saúde
Indígena do Maranhão, conseguiu-se
número suficiente de assinaturas, neste
curto espaço de tempo, para ser apreciada
pela Plenária Final.
Além de todos os
problemas na instalação e no
andamento das Plenárias Temáticas,
acima descritos, o encaminhamento de suas
propostas para votação na Plenária
Final também foi muito problemático.
À metodologia engessada adotada pelo
Regulamento, somaram-se conduções
de mesa ora excessivamente burocráticas
e ininteligíveis, ora autoritárias
e truculentas, que inviabilizaram um acompanhamento
atento e participativo da maior parte dos
presentes, especialmente dos delegados indígenas.
A votação
mais conturbada da Plenária Final certamente
foi a da questão da gestão da
Política Nacional de Saúde Indígena,
já na manhã de 31/3, não
apenas pela importância estratégica
do assunto, mas, novamente, pela falta de
clareza na condução da mesa:
vários dos delegados indígenas
que votaram na proposta vitoriosa (a de que
se mantivesse a FUNASA como gestora) protestariam
publicamente, na madrugada de 1/4, contra
a confusa coordenação daquela
mesa de votação, que os teria
induzido a votar contra a proposta que na
realidade defendiam.
À tarde de 31/3 a
delegação do DSEI-Xingu, em
protesto, anunciava sua retirada da Plenária
Final, que começou, a partir de então,
a dispersar-se.
Diante da insatisfação
geral com o andamento dos trabalhos, à
noite de 31/3 começava a circular a
proposta de impugnação da IV
Conferência. Por volta das 3 hs. Da
madrugada de 1/4, ainda com a Plenária
Final em andamento, grande parte dos delegados
indígenas retiraram-se e, em reunião
realizada em paralelo, em local próximo,
convocaram o coordenador da mesa (Clóvis,
do Conselho Nacional de Saúde) e o
repreenderam duramente, assim como a toda
a Comissão Organizadora, pela manipulação
dos trabalhos, redigindo documento, subscrito
por 27 dos 34 Presidentes de Conselhos Distritais
presentes, além da COIAB e outras organizações
indígenas, denunciando o processo e
solicitando a impugnação da
IV Conferência.
3 – PERSPECTIVAS
Entendemos que, conforme
mencionado, os problemas no processo de realização
da IV Conferência Nacional de Saúde
Indígena comprometem muito seriamente
sua representatividade, e a legitimidade de
suas propostas, enquanto instância máxima
propositiva da Política Nacional de
Saúde Indígena, conforme disposto
na Lei 8.142/90.
Entre as quatro Conferências
Nacionais de Saúde Indígena
já realizadas, esta IV Conferência
certamente será lembrada pela dissonância
entre a gravidade da situação
e da crise em andamento em boa parte dos DSEIs
no período, e o desproporcional volume
de recursos aplicados em hotéis de
luxo para a realização do evento,
sem qualquer necessidade objetiva para tanto:
a má qualidade das discussões
o comprovam.
O movimento indígena
saberá avaliar a conveniência
e a dimensão das medidas a serem tomadas
a respeito – e, sobretudo, como mobilizar-se
e preparar-se para evitar que, no futuro,
estas situações se repitam em
eventos desta importância, às
custas de recursos públicos.
A ANAÍ, o CIMI e
o MSA/UFMA endossam o protesto e os termos
do documento elaborado e subscrito, na madrugada
de 1 de abril, pela maioria dos Presidentes
de Conselhos Distritais de Saúde Indígena
e demais delegados indígenas presentes,
denunciando a falta de representatividade
da IV Conferência Nacional de Saúde
Indígena, e a discutível legitimidade
das propostas por ela aprovadas.
7 de abril de 2006.