18/05/2006 - Grupo de vinte
representantes de organizações
indígenas do rio Tiquié, no
Alto Rio Negro, Amazonas, realiza viagem de
três semanas pela região colombiana
do rio Pirá-paraná e renova
planos de cooperação transfronteiriça
entre povos do noroeste amazônico.
Um grupo de vinte representantes de organizações
indígenas do rio Tiquié, na
região do Alto Rio Negro, no Amazonas,
fez em março passado uma viagem de
três semanas pelo rio Pirá-paraná,
na Colômbia, para visitar seis comunidades
indígenas do outro lado da fronteira
e renovar os planos de cooperação
e aliança entre os povos do noroeste
amazônico. O grupo foi composto por
membros das etnias Tuyuka, Tukano e Desana,
entre lideranças, professores e alunos
de escolas indígenas. Eles representaram
a Associação Escola Indígena
Tuyuka Utapinipona (AEITU), a Associação
Escola Indígena Tukano Yupuri (AEITY),
a Associação das Tribos Indígenas
do Alto Rio Tiquié (ATRIART), Associación
de Autoridades Tradicionales Indígenas
de la Zona Tiquié (AATIZOT).
O Instituto Socioambiental
acompanhou a expedição, que
retribui o encontro realizado em abril de
2004, quando quase trinta lideranças
e pesquisadores indígenas do Pirá-paraná,
junto com assessores da Fundação
Gaia Amazônica, da Colômbia, estiveram
no povoado tuyuka de São Pedro, no
Alto Tiquié. As principais etnias que
habitam a região do Pirá-paraná
são Makuna, Barasana, Tatuyo e Taiwano.
A idéia que motiva esse movimento de
aproximação é a preocupação
comum com o futuro da região - uma
das mais preservadas do ponto de vista ambiental
de toda a bacia amazônica - e os desafios
que os povos indígenas de ambos os
lados da fronteira têm pela frente.
A educação indígena e
o manejo ambiental estão entre as principais
estratégias comuns de trabalho, a partir
das quais surgem outras questões relevantes,
como a transmissão de conhecimentos
entre as gerações, pesquisa
indígena e intercultural e saúde.
Pirá-paraná
e Tiquié são dois rios grandes,
situados, respectivamente, nas bacias do Uaupés
(e Negro) e Apapóris (e Japurá-Caquetá).
Mas estão relativamente próximos
espacialmente, havendo diversos caminhos que
ligam o alto Tiquié com diferentes
afluentes do Pirá, sempre usados por
seus moradores; pelos brancos, em alguns momentos,
desde o período colonial. Em comum,
há uma região de lagos e chavascais
nas nascentes de formadores tanto do Tiquié
quanto do Pirá, chamado Ewura, de expressivo
significado na geografia xamanística
desses povos, e que pretendem manejar de forma
conjunta, uma oportunidade de cooperação
concreta entre as organizações
indígenas e os conhecedores (“los tradicionales”,
como dizem na Colômbia) dessas duas
áreas.
A população
de ambos os rios é composta por grupos
da família lingüística
Tukano Oriental: no Tiquié predominam
os Tukano, Tuyuka, Desana e Bará; no
Pirá, os Makuna, Barasana, Tatuyo e
Taiwano. Todo o Pirá está situada
em território colombiano, assim como
uma parte do Tiquié, mas a maior parte
deste está no Brasil. A história
de contato e interferência das sociedades
nacionais é bem diversa em cada caso.
Em certa medida, podemos atribuir ao longo
(quase um século) e intenso período
missionário, as mudanças ocorridas
nas comunidades do Tiquié, sobretudo
em sua vida ritual; algo que ocorreu de forma
mais intermitente e recente no Pirá,
com menor impacto nessas práticas.
A viagem
Começou no Tiquié.
Todos vindos da parte brasileira desse rio
se juntaram em Pupunha (primeira comunidade
do Tiquié colombiano); daí seguiram
até a cabeceira desse rio, de onde
sai um varador para o Pirá-paraná,
passando por seus afluentes Timiña
e Colorado (onde o grupo parou por um dia
na comunidade de Villanueva). Uma vez no Pirá,
foram visitadas cinco comunidades: Puerto
Ortega, onde se chegou pelo caminho; de lá
subiram o rio até Hena, começo
do terrítório dos Tatuyo; descendo
novamente o rio, paramos em Moawi, onde moram
famílias barasana e tatuyo; daí
continuaram rio abaixo, até Sonaña,
centro atual dos Taiwano; em seguida, San
Miguel, maior povoação barasana,
já no médio Pirá; por
último, chegaram a Piedra Ñi,
região dos makuna e início do
baixo Pirá. O retorno ao Tiquié
se fez pelo igarapé Komeña,
seu afluente Cunuri e daí para o alto
Castanha.
Basicamente, os Tatuyo habitam
no alto Pirá, os Barasana no médio
e alguns afluentes importantes (Colorado,
Piedra, Tatu), e os Makuna (que se dividem
em Yeba-masã e Ide-masã, dois
grupos distintos mas que falam a mesma língua)
no baixo Pirá, incluindo outros afluentes
importantes (Komeña, Japu e Toaka).
Os Eduria ou Taiwano formam um grupo que está
em meio aos Barasana e tem sua língua
ameaçada pelo predomínio daqueles.
Historicamente, os Tatuyo e Eduria teriam
chegado ao Pirá através do Tiquié,
enquanto os Makuna e Barasana vieram do Apapóris
(onde deságua o Pirá); assim
contam em suas narrativas de origem.
Nesse itinerário,
foi possível conhecer um pouco a realidade
e a geografia do Pirá, entender melhor
as relações com o Tiquié
e como elas podem ser ampliadas e dinamizadas.
Para o pessoal do Tiquié, foi uma experiência
que gerou admiração e muitos
aprendizados, tendo sido um estímulo
para pensar sua própria história
e a situação atual de sua gente
e de suas comunidades.
Práticas
vivas
Uma das impressões
dominantes entre aqueles que foram do Tiquié
é a de que entre os grupos do Pirá-paraná
se mantêm vivos várias práticas
e conhecimentos, especialmente os ciclos rituais
com danças cerimoniais e benzimentos
de proteção que os acompanham,
as narrativas cerimoniais, a iniciação
masculina com flautas sagradas, enfim, todo
um conjunto de procedimentos de manejo do
mundo e das relações entre seus
seres. Em boa medida, essas práticas
foram sendo abandonadas no Tiquié no
decorrer do século passado, sobretudo
nos trechos abaixo de Pari-Cachoeira.
Ver como essas práticas
se realizam foi uma experiência inédita
para os jovens e mesmo para os adultos de
meia-idade Tukano e Desana, do médio
Tiquié, que participaram da viagem.
Pela primeira vez, por exemplo, tentaram acertar
o passo das danças dos velhos (kapiwayá),
tomaram caapi (yagé, como dizem na
Colômbia), inalaram pó de tabaco,
e tiveram que vomitar água no dia seguinte,
na beira do rio, para limpar o estômago
e poder se alimentar sem fazer mal para o
corpo. Segundo Robinelson, aluno da Escola
Tukano Yupuri, morador da comunidade Santa
Luzia, “a cultura está inteira, com
ela mesma que eles estão vivendo, é
melhor do que aqui, porque lá tem mais
cultura, as crianças, todos os filhos
aprendem dentro da maloca”. “Para mim”, diz
João Bosco, professor da AEITY, “a
maloca já é uma escola e, comparando
com nossa região do Tiquié,
isso a gente não tem”. Ele diz que
nas comunidades visitadas é mais fácil
de buscar o conhecimento. “Pelo o que eu vi,
os conhecedores nunca tiveram essa escola
do branco, eles têm essa sabedoria que
aprenderam dentro da maloca com os pais. Isso
me impressionou bastante: uma pessoa indígena
que não estudou na escola tendo essa
sabedoria, mais do que outras pessoas que
passaram dentro da escola”.
Os Tuyuka, do mesmo modo,
sentiram a energia das malocas no convívio
cotidiano e nas cerimônias. Mateus,
professor da Escola Tuyuka, analisa que os
povos do Pira têm coisas que já
se perderam no lado brasileiro da fronteira
e que isso é uma porta aberta para
futuros intercâmbios e perspectivas
para os jovens do Tiquié. “Podemos
começar a incentivar a garotada a viajar
e ter parte de sua formação
no Pirá”, sugere. Marcos, o único
aluno dessa escola tuyuka presente na excursão,
concorda e diz que gostaria que tivessem vindo
mais alunos e alunas, colegas dele. Adão,
vice-coordenador da AEITU, afirma que essa
aproximação não pode
parar por aqui. “Tem que continuar todo o
tempo, tem que marcar e ficar só nesse
rio Pirá, para podermos aprender as
coisas que eles têm, ficando mais tempo.”
O professor Bosco revela
uma das motivações para buscar
essa “tradição”. Ele atribui
à falta de benzimentos e proteção
xamânica dos conhecedores, os freqüentes
desentendimentos e brigas, amiúde com
feridos, que se vê hoje nas comunidades
tukano do médio Tiquié quando
se bebe o caxiri. “Lá não tem
nada de brigas, confusão, porque lá
eles benzem tudo, antes da bebida, antes da
festa, depois da festa. Tudo isso, pra mim,
é o controle que o kumu tem da situação.
Se o kumu benzer bem, mesmo que o jovem seja
atrevido, ele fica calmo. Por isso que ele
benze tudo”, observa. “O benzimento é
muito importante na festa, é o mais
importante, porque o lugar bem benzido, casa
bem benzida, ela não traz problemas.
Mesmo que a bebida seja forte, mesmo quando
chega muita gente, mesmo assim, se a casa
é bem benzida, bem protegida, bem preparada
para a festa pelo kumu, ela não traz
problema”. Kumu, ou kumua, no plural, é
a palavra tukano de uso comum na região
do Uaupés e Pirá-Paraná
que designa um dos especialistas xamânicos
dos povos Tukano Orientais, responsável
pelos benzimentos que acompanham o ciclo de
vida da pessoa, desde seu nascimento.
“A escola está
tirando sua força”
O pessoal do Pirá
freqüentemente se refere à maloca,
lugar central na vida ritual desses povos,
como sua escola, lugar privilegiado da formação
dos jovens. Distintamente do que ocorreu no
Brasil, lá as malocas nunca foram abandonadas,
embora tenham deixado de ser, nos povoados
formados a partir dos anos 60 pelos missionários,
a moradia coletiva. Nessas comunidades maiores,
ela convive com as casas menores, familiares,
e com as várias benfeitorias construídas
com recursos do governo, como escolas e postos
de saúde.
Mas a maloca como escola
das novas gerações passou a
ter a concorrência da escola oficial
que, no caso colombiano, parece mais estruturada
e com mais recursos que no Brasil. Isso vem
sendo um problema difícil de lidar
por parte das lideranças indígenas,
uma vez que o sistema educacional daquele
país tem se mostrado pouco flexível
a mudanças, que são necessárias
para que elas passem a ser escolas indígenas
e autônomas. No Brasil, no vazio deixado
pela decadência das escolas salesianas,
aliado a um certo descaso dos agentes oficiais,
o sistema escolar se mostrou permeável
a novas idéias e, pouco a pouco, mas
com intensidade, está sendo controlado
pelas comunidades indígenas, principalmente
em alguns contextos, como dos Tuyuka do alto
Tiquié e dos Tukano do médio
curso desse rio. Esse contraste tem sido um
interessante tema de discussão entre
lideranças dos dois rios.
Segundo Higino Tenório,
coordenador da Escola Tuyuka e principal divulgador
da idéia de escola indígena
no Tiquié, a cultura no Pirá
ainda está muito forte. “Mas a escola
está sendo um entrave e precisa ser
revista e moldada de acordo com os interesses
deles, bem pensada, para futuramente poderem
manter sua cultura. Muitos alunos já
não estão se preocupando mais
com suas tradições, crenças,
festas, rituais, estão se distanciando,
e isso pode enfraquecer se eles não
tomarem uma atitude mais séria, mais
politizada, definirem sua política
cultural e educacional para poder manter viva
a cultura”.
Um exemplo das contradições
que a escola oficial está trazendo
para a vida no Pirá é relatado
por Inácio Valencia, velho conhecedor
makuna: “na cerimônia de jurupari existem
certas normas consagradas na cultura, e essas
normas vem sendo violadas”, diz ele. “Em que
sentido? O menino está um dia em uma
cerimônia, um jurupari ou um dabucuri,
apenas termina e ele entra no colégio.
E o que acontece? Encontra mulheres em menstruação,
come comida assada, e quando chega à
maloca, para tomar caapi, para dançar,
já começam a revoltar-se, a
falar grosserias, a brincar. Alguns conhecedores
que temos aqui, o são porque cumpriram
as normas”. Para evitar isso, a Associación
de Capitanes y Autoridades Tradicionales Indígenas
del Pira Paraná (ACAIPI) propôs
uma mudança no calendário escolar,
adiando o começo do ano letivo de março
para maio, depois da temporada de cerimônias
e iniciação dos jovens, o que
ainda não foi aceito pelo governo colombiano
e gerou um impasse nesse ano: em abril, muitos
jovens ainda não haviam comparecido
aos colégios.
A esse respeito, durante
uma reunião final da viagem em Piedra
Ñi, Ernesto Ávila, da equipe
coordenadora da ACAIPI, perguntou “qual conhecimento
de fora também aporta à vida
atual? Os pais estão tendo que decidir
quantos filhos e com que objetivo são
enviados para a escola, e quantos e porque
ficam em casa, na escola tradicional. Quando
falamos de articular, nos parece muito difícil,
porque os sistemas são completos, como
um corpo, não se pode articular um
braço a mais, seria errado. Temos os
companheiros tuyuka que já experimentaram
um processo educativo em sua escola, assim
como os companheiros tukano. Que venham demonstrar,
complementar. Já criamos um espaço
crítico sobre essa problemática,
já está suficientemente identificada.”
Higino analisa que, “embora
tenham conhecimentos, dos pajés e kumua,
o espaço da escola está confrontando
com essa força, então eu creio
que a escola tem que ser definida pelos povos
indígenas, não por outro povo,
porque o outro povo tem sua cultura, esse
é o mal da escola. Logo, se continuar
assim, daqui a cinqüenta anos, se não
definirmos nossa política, nossas decisões,
nossa autonomia, vamos acabar perdendo. É
importante que definam suas políticas
de educação”.
O manejo conjunto
do mundo
Outro assunto recorrente
durante essa viagem, que vem sendo cada vez
mais discutido e desenvolvido pelas organizações
indígenas de ambos os rios, é
o manejo ambiental. No Pirá, com a
realização das cerimônias
que fazem parte do calendário anual,
há uma permanente mediação
entre seus povos, através dos conhecedores
– kumua e pajés -, e as outras gentes
que povoam o mundo. Há uma atividade
permanente de manejo xamânico do mundo,
através dos benzimentos de proteção
realizados nesses rituais e no dia-a-dia,
que são acompanhados de regras de dieta
e comportamento. As restrições
à pesca e caça em algumas áreas
- locais associados a episódios ocorridos
na origem de seus diversos povos – é
tema constante nas reuniões da ACAIPI
e no trabalho dos pesquisadores indígenas.
No Tiquié, ao lado do manejo xamânico,
vêm sendo desenvolvidas iniciativas
de monitoramento e estudo de alguns recursos
mais importantes e pressionados pelo uso permanente,
para posterior manejo sustentável dos
mesmos. Isso vem sendo feito com os peixes,
discutindo-se as formas predatórias
que vêm causando sua escassez e como
substituí-las, sem comprometer o sustento
de seus moradores.
Há interesse de uns
e outros pelo que tem sido feito sobre esse
tema. Com a viagem ao Pirá, o grupo
do Tiquié atentou para outras possibilidades
de trabalhar o calendário ecológico-econômico,
em sua interface com o ciclo ritual, também
com as narrativas de origem como meio de pensar
seu meio ambiente. Por sua parte, os povos
do Pirá têm percebido uma crescente
escassez de pescado, e começam a aventar
outras formas de manejo que se somem ao tradicional.
“Essa aproximação precisa ser
bem programada entre ambas as partes, mas
é muito importante”, avalia Higino
Tenório. “O pessoal está animado
em fazer mais intercâmbios, eu mesmo
tenho interesse em acompanhar a escola deles.”
Roberto Marín, da coordenação
da ACAIPI, pediu aos visitantes do Tiquié,
em San Miguel, que “comuniquem para que todos
os tradicionais trabalhem tendo uma só
visão, pensando no bem-estar comum
dos indígenas. Todos nós perseguimos
o bem-estar ‘de la gente’.”
Roteiro da viagem
A expedição
para o Pirá começou pelo Tiquié,
com uma semana no povoado de Pupunha, primeiro
no lado colombiano desse rio, onde foi feita
uma oficina sobre benzimentos relacionados
ao nascimento de uma criança. Essa
atividade faz parte de um conjunto de iniciativas
que buscam uma maior integração
entre as organizações indígenas
de ambos os países, no âmbito
desse rio, cortado pela fronteira desde a
década de 1920. Essa oficina foi encerrada
com uma dança (chamada Dasia-basa,
dança do camarão) dos tuyuka
e benzida por um bará, foi uma das
cerimônias de proteção
que fazem parte do ciclo anual.
Depois desses dias em Pupunha,
seguimos rio acima. Passando por Trinidad
(o maior povoado e centro escolar do Tiquié
colombiano) fomos pernoitar em Sobo Taro (lago
de espuma), uma comunidade bará. No
dia seguinte chegamos na boca do varador para
o Pirá-paraná, local chamado
Musa Tuku (poço de urucum), onde já
existiu uma grande maloca dos bará.
Daí seguimos até uma casa abandonada
situada nesse caminho que liga a cabeceira
do Tiquié ao Caño Colorado (Okosõa),
afluente do Pirá, onde paramos para
descansar e passar a noite. No outro dia,
depois de algumas horas de caminhada, chegamos
na comunidade de Villanueva, situada no Colorado.
Esse igarapé, como o nome sugere, tem
suas águas meio avermelhadas. O Tiquié,
e os igarapés Colorado, Japu e Inambu
(esses dois, afluentes do Papuri), tem suas
nascentes situadas em área de buritizais
e lagos chamada Ewura, muito significativa
na geografia xamanística dos povos
que habitam essa região – as águas
desses rios são consideradas como sumo
das frutas silvestres que aí existem.
Villanueva está no alto Colorado, tem
sua população formada por barasana
e bará, há duas malocas e várias
casas menores, tem um posto de saúde
e uma pista de pouso. Ficamos na grande maloca
de Firmiano (pai de Faustino, liderança
local), onde à tarde conversamos com
o pessoal da comunidade, que relatou a origem
dessa comunidade e de sua população
e respondeu perguntas sobre a disponibilidade
e o manejo dos recursos naturais, como peixe
e caça.
No dia seguinte (13/03),
por volta do meio dia, o grupo seguiu pelo
caminho até a beira do Pirá-paraná,
na altura do povoado chamado Puerto Ortega.
O caminho estava seco, depois de dois dias
sem chuvas, e muito bem conservado, o que
permitiu percorrê-lo em três horas
e meia, sem dificuldades. O pessoal dessa
comunidade já nos aguardava na maloca,
onde vive Benedito e sua família. Foi
oferecida uma refeição comunitária;
logo em seguida iniciaram os preparativos
para a dança. Reinel, líder
da comunidade, é também benzedor
e mestre de cerimônia (baya, aquele
que puxa o canto-dança). Antes de começar
a dança houve forte temporal com muitos
trovões, que os benzedores da maloca
disseram tratar-se dos seres dessa região
querendo saber quem chegara. Passada a tormenta,
dançaram Keno-basa (dança de
jutaí, um fruto silvestre). A dança
se prolongou por toda a noite e a manhã
seguinte. Depois foi oferecida uma refeição,
já tendo se realizado os primeiros
benzimentos sobre os alimentos. No dia seguinte,
houve uma conversa com a comunidade, onde
todos se apresentaram e se fizeram perguntas,
enquanto outros tipos de alimentos eram benzidos.
Algo que chamou atenção dos
visitantes do Tiquié é o fato
de fazerem benzimentos em separado para cada
tipo de alimento.
Seguimos então (15/03)
para Hena, onde chegamos no final da tarde
– além de duas horas de viagem de motor
de popa, é preciso percorrer meia hora
de caminhada, contornando as corredeiras,
até chegar ao povoado, que é
o centro dos Tatuyo do alto Pirá-paraná.
Nessa comunidade há uma escola, que
conta com um docente dessa etnia e quatro
outros, ainda voluntários. Pretendem,
em certa medida inspirados na experiência
que conheceram da Escola Tuyuka, transformá-la
em uma escola tatuyo autônoma, com currículo
próprio, uso dessa língua na
alfabetização e na instrução
e gestão independente. Assim, o dia
seguinte à nossa chegada foi dedicado
às apresentações, e a
falar de escola indígena e manejo ambiental,
dois temas comuns e que foram recorrentes
em todos os locais que passamos. Explicaram
ainda as divisões internas aos Tatuyo
e a localização atual dos diferentes
grupos. Além do alto Pirá, estão
situados também no igarapé Japú,
afluente do alto Papuri. A relação
entre esses dois grupos tatuyo passa por uma
crise, uma vez que um morador do Japu emprestou
uma cuia cerimonial (cuia do sol) há
poucos anos e não quer mais devolver.
No outro dia (17/03) foi feito um dabucuri
de carne para os tuyuka, seguido por dança
dos Tatuyo. Os Tuyuka foram convidados e também
dançaram, alternando com os da casa
o espaço de dança. Ofereceram
caapi e a dança se prolongou até
a manhã seguinte.
De Hena fomos para Moawi
(19/03), onde estão os barasana e tatuyo.
Uriel é dono da maloca e tem como esposa
uma velha bará - levada há muito
tempo do Tiquié - que é a principal
ceramista da região. Impressionou-nos,
não só nessa comunidade, o uso
ainda corrente de muitos utensílios
de cerâmica (todos os fornos são
de cerâmica, muitas panelas, potes,
trempes, buzinas...). Nesse mesmo dia que
chegamos, chegaram também outros de
povoados vizinhos, para a festa, sobretudo
de Puerto Ortega. Nessa tarde e noite dedicaram-se
aos preparativos, benzimento de breu e cera
de abelha, diálogos cerimoniais, preparo
de ipadu...Dançaram Ikiga (inajá),
e os Tuyuka novamente alternaram com eles.
Descendo o Pirá,
chegamos (21/03) em Sonaña, que é
o centro de referência dos Taiwano (ou
Eduria). Há uma escola, fundada na
década de 70 por missionários
católicos, que agora querem que sirva
como meio de retomada e reafirmação
da língua, bastante ameaçada
pelo predomínio do barasana. Faustino,
principal liderança, também
esteve em São Pedro em 2004; seu pai
é o dono de uma maloca grande onde
nos hospedamos. Houve, novamente, um dia de
conversa, onde as experiências de escola
indígena no Tiquié foram mais
bem expostas. Em vista do início iminente
de mudanças na escola daí, havia
um vívido interesse em ouvir como essas
mudanças foram feitas no Tiquié.
Também em Sonaña se juntaram
pessoas de várias comunidades, principalmente
do vizinho caño Piedra, onde estão
muitos "tradicionales". Depois houve
uma dança eduria, chamada Weku-basa
(dança da anta), que seria "uma
demonstração", mas se prolongou
por toda a noite, até a manhã
seguinte. À tarde, houve uma conversa
sobre o calendário ecológico,
tema desenvolvido pelos pesquisadores indígenas
do Pirá, apoiados pela Gaia; a trajetória
de origem dos Eduria, que subiram pelo Tiquié
e chegaram ao Pirá; e como entendem
sua relação com os povos que
habitam hoje o Tiquié – consideram
os Tuyuka como seus irmãos menores.
De Sonaña fomos para
San Miguel (24/03), onde chegamos depois de
um trecho por rio e alguns por terra, varando
uma série de cachoeiras que dificultam
a navegação no rio. Em San Miguel
fomos conduzidos para a maloca, que acabara
de ser concluída, e recebidos com uma
farta refeição. O dia seguinte
foi dedicado aos preparativos para a festa
de inauguração da maloca e a
algumas conversas com as artesãs locais
e, à noite, sobre o manejo ambiental,
durante o preparo do ipadu e os benzimentos
para a cerimônia. Nessa madrugada já
começaram a dança do beiju.
Para essa festa foi preparada uma grande quantidade
de beiju de tapioca, empilhado junto ao esteio
direito dos fundos da maloca e distribuído
no final da festa. Depois da dança
do beiju, cantaram Hauã-basa, com bastões.
San Miguel é uma comunidade bem dinâmica
e organizada, centro dos barasana. Antes de
deixarmos San Miguel, houve uma manhã
de conversa sobre dois assuntos: a escola
indígena e a continuidade da cooperação
entre as organizações dos dois
rios.
Piedra Ñi, já
em território dos Makuna, foi nosso
último destino, chegamos no dia 28,
depois de duas horas de viagem, com trechos
de predomínio de igapós às
margens do Pirá. Aí existe um
colégio grande, que alcança
o nono ano. Ano passado foram mais de 200
alunos. Nesse, com o desacordo entre a Secretaria
de Educação e a ACAIPI a respeito
do calendário, só havia uns
70. A ACAIPI quer que o ano comece em maio,
depois da temporada de cerimônias, iniciações
e as restrições que acompanham;
mas para o governo tem que ser março.
Foi realizada a festa da
pupunha, com máscaras (baile de muñeco,
como é chamada na Colômbia),
para a qual chegou muita gente, especialmente
do Komeña, de onde vieram aqueles encarregados
de confeccionar as máscaras e dançar
na festa. Foram esperados com grande quantidade
de pupunha, que é estocada em um grande
silo feito com varas e folha de sororoca,
fixado próximo à porta dos fundos
da maloca. Provavelmente havia uns 600 litros
de massa de pupunha, reunida também
com colaboração do pessoal do
Timiña e Umuña, dois igarapés
que deságuam próximo a Piedra
Ñi. A festa começou no dia 30,
seguiu pelo 31 e terminou no dia 1º de
abril, pela manhã. Pouco a pouco vão
entrando os dançantes mascarados, que
representam espíritos de animais (num
total de 89!). Cenicamente é muito
expressiva e há um amplo repertório
de cantos. A maloca ficou cheia e algumas
pessoas ainda acamparam fora. Na manhã
do último dia foi feita uma reunião
final com coordenação da ACAIPI,
os representantes do Tiquié e assessores
de Gaia e ISA, além de alguns velhos
kumua que haviam participado da festa.