15/05/2006 - Entre
os dias 17 e 19 de abril, os Kootiria, conhecidos
no Alto Rio Negro (AM) como “povo da água”,
realizaram a cerimônia de formatura
do ensino fundamental da 1ª Turma de
alunos da Escola Khumuno Wu’u, símbolo
de uma educação que valoriza
a cultura indígena e fortalece o vínculo
dos estudantes com suas comunidades.
O povo Kootiria vive na
Terra Indígena Alto Rio Negro, na margem
esquerda do Alto Rio Uaupés, no trecho
entre o distrito de Iauaretê e Querari,
na fronteira do Brasil com a Colômbia,
no município de São Gabriel
da Cachoeira, estado do Amazonas. Está
localizado também em várias
comunidades do lado colombiano, na margem
direita do Uaupés. Chamados também
de “povo da água”, os Kootiria estão
em festa. Celebraram em abril passado a primeira
formatura da Escola Khumuno Wu’u, um marco
na educação indígena
na região por ter, entre seus objetivos,
a formação de pessoas capazes
de enfrentar o mundo que está em contínua
transformação e de contribuir
para a melhoria da qualidade de vida de suas
comunidades.
Antes da criação
da Escola Khumuno Wu’u, os alunos das comunidades
Kootiria estudavam até a 4ª série
do ensino fundamental em salas multisseriadas
em suas comunidades. A partir da 5ª série,
tinham que se deslocar para o povoado de Iauaretê
ou para a sede do município de São
Gabriel. Por conta disso, os pais desses alunos
tinham que trabalhar dobrado na comunidade
para produzir excedentes para o sustento de
seus filhos enquanto estudavam. Esses pais
tinham também que arcar com todas as
despesas para o deslocamento de suas comunidades
até Iauaretê ou São Gabriel
da Cachoeira para levar alimentos para os
seus filhos.
Este fator contribuiu para
uma grande migração de famílias
Kootiria, esvaziando diversas comunidades,
pois os pais sentiam-se melhor acompanhando
os seus filhos nesses novos lugares. Para
tanto, abandonavam suas roças e casas
para morar num lugar diferente, com mínimas
condições frente aos desafios
impostos por essa nova realidade a que se
defrontavam.
A metodologia de ensino
que era utilizada nessas escolas não
levava em consideração os conhecimentos
próprios dos Kootiria nem dos demais
22 povos indígenas da região
do Alto Rio Negro, ou seja, os alunos eram
tidos como meros “depositários” de
conhecimentos alheios à sua realidade
lingüística e sócio-cultural.
Assim sendo, a formação dessas
escolas não preparava os alunos para
contribuírem com suas comunidades,
mas sim para irem morar em outros lugares,
como na sede do município.
Diante dessa realidade,
em 2002 os professores Kootiria, cursistas
do Magistério Indígena I, tomaram
a iniciativa de criar uma escola específica,
que respeitasse a sua cultura e língua
ancestral, pois estavam preocupados com a
melhoria da qualidade da educação
em sua região. Para tanto, procuraram
parcerias para que pudessem viabilizar a criação
dessa nova escola.
Uma das primeiras atividades
realizadas nas comunidades com a assessoria
do ISA foram as oficinas de lingüística,
realizadas a partir de 2003, que contribuíram
com a discussão da criação
da escola que os Kootiria queriam para aquela
região. Ainda naquele ano escolheram
o nome da escola, que ficou denominada Khumuno
Wu’u que significa “casa do pajé”.
Em 2004, uma grande assembléia nomeou
a associação da escola de Associação
da Escola Khumuno Wu’u Kootiria (ASEKK). A
associação, legalmente criada,
é a instância de gestão
e representação da escola, que
congrega todas as comunidades kootiria do
lado brasileiro.
Em 2004 também foi
solicitada a criação oficial
da Escola Kootiria pelo poder público,
dado o início a discussão de
nucleação de suas escolas, organização
gradual do ensino em ciclos escolares, alfabetização
em kootiria, continuidade na elaboração
de materiais didáticos específicos,
cadastramento no censo escolar e nos programas
do Ministério da Educação.
Principais objetivos
Os principais objetivos
da Escola Khumuno Wu’u são formar alunos
conhecedores de sua cultura (como saber benzer,
cantar e dançar nos rituais tradicionais,
pescar, caçar e trabalhar com artesanato);
formar alunos que ao sair da escola saibam
ler e escrever em kootiria e em português;
formar alunos cidadãos através
de metodologias específicas que os
levem ao desenvolvimento de suas criatividades;
formar alunos conscientes de seus direitos
e deveres frente à sociedade kootiria,
às outras sociedades indígenas
da região do Alto Rio Negro e frente
a sociedade brasileira em geral; possibilitar
a formação de alunos solidários
com seus afins e com as demais etnias existentes
no Alto Rio Negro; possibilitar que a escola
forme profissionais que possam contribuir
para a melhoria da qualidade de vida de suas
comunidades, tendo em vista os seus projetos
de sustentabilidade; formar alunos comprometidos
com a sua cultura e que após o término
de seus cursos possam trabalhar em pról
de suas comunidades; formar seus futuros líderes,
professores, políticos e assessores.
As comunidades Kootiria
querem que os alunos saiam da escola com uma
profissão e, para tanto, todas as salas
de aula da Escola Khumuno Wu’u trabalham tendo
em vista esta formação futura,
que leve em conta os projetos de futuro das
comunidades. Dessa forma, trabalham a metodologia
de pesquisa dentro das disciplinas, por meio
de temas de interesse das respectivas comunidades.
A formatura
Entre os dias 17 e 19 de
abril de 2006 os Kootiria e seus convidados
reuniram-se para avaliar o andamento da escola,
pensar em propostas para a sua melhoria, participar
da apresentação do resultado
das pesquisas feitas pelos alunos formandos
e comemorar, com a cerimônia Bua Bahsa,
(flauta da cotia), a conquista por uma escola
diferenciada.
O evento aconteceu na comunidade
Koama Phoaye, sede da Escola Khumuno Wu’u,
e contou com a presença de representantes
de algumas instituições parceiras:
Marcelo Mazzoli (do Unicef), Erivaldo Almeida
Cruz (da Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro), Irmã
Edilúcia de Freitas (secretária
municipal de Educação de São
Gabriel da Cachoeira), Geraldo Andrello (ISA)
e da colaboradora do ISA, Kristine Stenzel.
Além da presença de representantes
da Escola Tariana do distrito de Iauaretê.
No dia 17, os Kootiria fizeram
uma avaliação das atividades
realizadas na escola na qual todos apresentaram
o seu contentamento com a implantação
da escola diferenciada em suas comunidades,
enfatizando a necessidade o mais breve possível
da realização de cursos profissionalizantes
que levem em conta seus projetos de sustentabilidade
nas áreas de psicultura, manejo agro-florestal,
informática, cinegrafia e documentação
cultural. Aproveitaram o momento para questionar
as instituições convidadas em
como poderiam colaborar com a melhoria da
escola naquela região. Todos os representantes
se dispuseram a continuar apoiando as iniciativas
da escola.
Por fim, os Kootiria comunicaram
que querem a continuidade do ensino médio
naquela região e que, mesmo sem o apoio
imediato dos órgãos competentes,
iniciaram o 5º ciclo (ensino médio)
diferenciado neste ano com os alunos que estavam
se formando naquele momento. A mensagem estava
presente também no discurso da formatura,
lido pelo aluno Silvestre Galvão Trindade:
“... Nós formandos
desta escola paramos um bom tempo sem estudar,
muitos de nossos colegas desistiram por falta
de ensino fundamental completo nos lugares
mais próximos da nossa localidade.
Enfim conseguimos implantar uma escola nesta
comunidade e nós não esperamos
e nos matriculamos logo e continuamos a estudar
na série em que nós paramos
com muita alegria. Aprendemos muitas coisas
que nós não sabíamos
antes.... Assim queremos continuar a servir
a nossa comunidade, afim de melhorar a nossa
condição de vida, pois a comunidade
precisa de nós e nós precisamos
dela. Senhores autoridades, nós queremos
que apoiassem a implantação
do ensino médio na nossa comunidade
porque essa é a nossa esperança,
pois mesmo sem apoio estamos começando
com muita animação....É
com a educação que mantemos
viva a nossa cultura.”
Finalmente no dia 19, ao
som das flautas da cotia, os Kootiria começaram
a sua cerimônia de comemoção
de formatura. No decorrer da cerimônia
muitas lágrimas e emoções
por uma conquista muito importante para aquele
povo, “é a relização
de um sonho que esperamos por muito tempo
para acontecer“ afirmava o coordenador da
escola Joselito Galves Trindade. A festa prosseguiu
por mais um uma noite, com os presentes dançando
as 7 partes da cerimônia da flauta da
cotia, ritual que terminou no dia seguinte,
às 22:00 horas.
O nome tradicional dos Wanano
é Kootiria que quer dizer “povo da
água”. Segundo a sua mitologia de origem,
os ancestrais deste povo viviam em forma de
morcego (Soa Mahsã) numa árvore
oca na foz do rio Querari. Um dia o povo Kubeo
estava fazendo uma festa de dabucuri de carajuru
(wahsisoã), e os Kootiria apareceram
em forma de homens para participar da festa.
Como eram bonitos, logo as mulheres Kubeo
gostaram deles. Então, enquanto os
Kubeo dançavam e bebiam, os Kootiria
roubaram suas mulheres e as levaram para a
árvore oca. No dia seguinte, os Kubeo
sentiram falta de suas mulheres e foram procurá-las.
Em sua busca, começaram a ouvir os
barulhos de gargalhadas dessas mulheres vindo
da árvore oca e ficaram muito furiosos
e resolveram incendiá-la para matar
todos que lá estavam. Enquanto ateavam
fogo, contudo, caia água que o apagava,
por isso se questionavam: quem é essa
gente? São o povo da água? Por
esse motivo os Kootiria receberam este nome
dos Kubeo, que em sua língua esta palavra
quer dizer ko= água, tiria= povo/gente.
O povo Kootiria está
distribuído em 10 comunidades do lado
brasileiro e pelo menos 13 comunidades do
lado colombiano. Nessas comunidades a maioria
dos homens é Kootiria, que são
casados com mulheres de outras etnias como:
Tariano, Baniwa, Dessana, Tuyuka, Tukano,
Kubeo, Siriano e Arapasso. Mas, vale destacar
que, nesta região tradicional dos Kootiria
também vivem homens de outras etnias
como os Tukano, Desana, Kubeo, Siriano, Tariano
e Piratapuya com quem mantêm relações
culturais, cooperação econômica
e ritual. As famílias destas comunidades
sobrevivem utilizando, em sua grande maioria,
os recursos naturais do meio ambiente com
a ajuda de processos e técnicas tradicionais
na pesca, cultura agrícola, caça
e na cultura artesanal. Os homens, as mulheres
e as crianças têm cada um sua
função especifica e complementar
para a convivência harmoniosa de todos.
Os Kootiria são conhecidos, entre as
diversas etnias da região, como hábeis
cantores e dançarinos e possuem ativos
mestres de cerimônias, os bagaroa.