23/06/2006 - O ISA
publica, a partir de hoje, um conjunto de
reportagens a respeito dos problemas no atendimento
médico-sanitário dos povos indígenas.
O especial apresenta uma cronologia das denúncias
veiculadas pela imprensa desde o começo
de 2005 até o mês passado, em
todo o Brasil, e inclui entrevistas com especialistas
e as explicações da Fundação
Nacional de Saúde (Funasa), órgão
federal responsável pela gestão
do sistema.
A saúde indígena
no Brasil enfrenta um período difícil.
Se em 2005 houve uma explosão nos protestos
de diferentes etnias em todo o Brasil, revelando
situações de abandono e descaso
no atendimento das populações
indígenas, em 2006 o panorama não
se alterou. Greves se sucedem nos Distritos
Sanitários Especiais Indígenas,
os chamados DSEIs, interrompendo o atendimento
das populações e permitindo
que doenças antes controladas retornem
com força de epidemia. A desnutrição
infantil vitima um número crescente
de crianças – de 48 mortes em 2004
para 50,9 em 2005 (para cada grupo de mil
indivíduos).
A dificuldade da Fundação
Nacional de Saúde (Funasa), órgão
vinculado ao Ministério da Saúde,
em gerir o sistema chamou a atenção
do Ministério Público Federal.
No começo do ano, o MPF criou um grupo
de trabalho para investigar problemas com
os convênios firmados com as organizações
que realizam o atendimento local e averiguar
também a excessiva burocracia da Funasa,
que estaria por trás dos recorrentes
atrasos nos repasses de recursos - e deixaria
as aldeias sem médicos ou medicamentos.
Boa parte dos problemas
enfrentados nesses dois últimos anos
pode ser atribuída a mudanças
promovidas em meados de 2004 no modelo de
gestão da Funasa. Essas modificações
se deram em direção oposta à
reestruturação do sistema, promovida
em 1999, quando a fundação substituiu
a Fundação Nacional do Índio
(Funai) no atendimento à saúde
indígena. Naquela época, estabeleceu-se
um modelo de descentralização
do atendimento às comunidades indígenas
por meio de parcerias firmadas preferencialmente
com a sociedade civil. Entretanto, em 2004,
a Funasa retomou o controle de itens fundamentais
da gestão da saúde, como a aquisição
de medicamentos e a contratação
de horas de vôo, deixando às
conveniadas basicamente a administração
de pessoal. Saiba mais sobre as mudanças
no sistema da saúde indígena.
Entre os mais de 235 povos
indígenas com direito ao serviço
de saúde, alguns casos se tornaram
emblemáticos e marcaram regularmente
o noticiário em 2005 e 2006: as mortes
por desnutrição das crianças
Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul,
a volta da epidemia de malária entre
os Yanomami de Roraima e Amazonas, o alto
índice de vítimas fatais causados
por acidentes ofídicos no Alto Rio
Negro, o falecimento de dezenas de crianças
Apinajé no Tocantins e Marubo do Vale
do Javari, no Amazonas. Nem o Parque Indígena
do Xingu, espécie de cartão-postal
da política indigenista oficial e que
conta há 40 anos com a presença
de médicos da Universidade Federal
de São Paulo, se vê livre de
sério problemas: atualmente uma epidemia
de doenças sexualmente transmissíveis
(DSTs) avança sobre a população
xinguana, causando como mais grave consequência
a morte de mulheres por câncer de colo
de útero.
A incidência de doenças
como a malária, a tuberculose e DSTs
tem avançado sobre povos indígenas
de diferentes regiões do país,
o que revela a decadência do atendimento
e o sucateamento da infra-estrutura de saúde.
As lideranças indígenas reclamam
da faltam microscópios e lâminas,
medicamentos, meios de transporte e combustível
nos postos de atendimento no interior das
Terras Indígenas. Também afirmam
que a formação de agentes indígenas
de saúde caminha em ritmo lento, e
que a capacitação dos servidores
não-índios permanece insatisfatória.
Neste cenário, as iniciativas promissoras
de educação para a saúde
foram canceladas e a instabilidade no repasse
de verbas tornou-se constante e as ações
das equipes de saúde, insustentáveis.
Defrontado com esse cenário
de calamidade, o governo federal acena com
um retrocesso ainda maior: devolver a gestão
da saúde indígena à Funai.
Se esse plano for levado a cabo, o governo
terá ignorado a catastrófica
experiência vivida no período
entre 1994 e 1999, quando, à frente
da coordenação do atendimento
aos índios, a instituição
teve um desempenho mediano, obrigando o então
governo Fernando Henrique Cardoso a devolver
a responsabilidade sobre a saúde indígena
ao Ministério da Saúde, na tentativa
de minimizar os prejuízos causados
às populações indígenas
e aos cofres públicos.
Novas regras em
2004 causaram surpresa
Por meio das portarias 69
e 70 (de janeiro de 2004) o Ministério
da Saúde definiu as novas regras para
o atendimento aos índios e, durante
a Primeira Oficina Integrada de Saúde
Indígena (ocorrida em Brasília
entre os dias 2 e 6 de fevereiro de 2004),
anunciou as mudanças, pegando de surpresa
as entidades conveniadas e os povos indígenas.
Saiba mais. A abrupta alteração
no rumo da política de saúde
fez com que organizações da
sociedade civil, como a Urihi, que cuidava
da saúde Yanomami, rompesse com a Funasa
- saiba mais. Assistiu-se também a
uma campanha de difamação contra
algumas organizações da sociedade
civil conveniadas e prefeituras, responsáveis
pelo atendimento.
Assim, a Funasa retomou
o controle sobre a maior parte das verbas
destinadas à saúde indígena,
deixando às instituições
conveniadas um papel “complementar” (contratação
de pessoal, atenção nas aldeias
com insumos, deslocamentos de índios
e combustível).
Os problemas relacionados
à gestão desses recursos e às
atribuições das conveniadas
estão no centro da situação
calamitosa denunciada pelos índios.
Mesmo com a destinação de cerca
de R$ 290 milhões repassados aos 34
Distritos Sanitários Especiais Indígenas
em 2005, a morosidade e a burocratização
no repasse dos recursos federais às
entidades conveniadas causam constantes atrasos
no pagamento de salários e na quitação
de dívidas com os fornecedores. A centralização
da compra de medicamentos e a contratação
de horas de vôo pela Funasa revelaram-se
ineficientes, consumindo os recursos públicos
enquanto a situação sanitária
nas áreas indígenas piora.
Por tudo isso, o ano de
2005 foi marcado por protestos. Dos Assurini
do Trocará no Pará aos Guajajara
no Maranhão; das etnias da região
do Rio Negro, no Amazonas, aos povos do Parque
Indígena do Xingu, no Mato Grosso;
dos Yanomami em Roraima aos povos do Amapá
e os Guarani do Mato Grosso do Sul, todos
denunciaram graves problemas na gestão
da Funasa, com resultados diretos na saúde
das aldeias. Além da gestão
dos recursos, a falta de preparo e compromisso
de algumas equipes de saúde têm
causado sofrimento e morte às populações
indígenas, como denunciado pelos Xavante
(MT), Wajãpi (AP), Guajajara (MA),
Assurini (PA), Pataxó (BA), Munduruku
(PA, AM e MT) e Yanomami (RR), entre outros.
Veja aqui os principais fatos que marcaram
a crise na saúde indígena do
começo de 2005 até agora.
Apesar das denúncias
– que incluem também o loteamento político
dos cargos de coordenação regional
da Funasa nos estados e irregularidades no
trato com a verba pública destinada
ao atendimento à população
indígena - a Funasa avalia como sendo
positiva a atual gestão da saúde
indígena. Leia aqui entrevista com
o presidente da Funasa, Roberto Lustosa.
O cenário enfrentado
pelos Yanomami (RR/AM) é um bom exemplo
do retrocesso que a política de atendimento
à saúde indígena do atual
governo representou para as populações
indígenas e para os cofres públicos.
Segundo dados publicados pela revista Época,
na edição de 6 de setembro de
2005, desde que a Funasa retomou o atendimento
direto a eles — antes sob a responsabilidade
da ONG Urihi-Saúde Yanomami — os gastos
passaram de R$ 8,4 milhões anuais (para
todas as despesas), a R$ 15 milhões,
sem contar o custo de remédios e transporte.
Com a mudança, a hora de vôo,
que custava R$ 690 reais, passou a custar
R$ 1.300. As conseqüências no plano
sanitário, no entanto, não produziram
a melhora dos indicadores. Muito pelo contrário.
A malária, totalmente controlada no
período anterior, alastrou-se novamente
e já assume traços de epidemia.
Em 2003, foram 418 casos, enquanto em 2005
foram registrados 1.645 casos, quase quatro
vezes mais. Veja aqui o avanço da malária
entre os Yanomami.