Panorama
 
 
 

“TRATAR DE ÍNDIO NÃO É BARATO”

Panorama Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Junho de 2006

23/06/2006 - Em abril passado, o presidente da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Roberto Lustosa, recebeu a reportagem do ISA para uma entrevista sobre a gestão do sistema de saúde indígena pelo órgão. Lustosa, hoje cotado para assumir o Ministério da Saúde e quadro tradicional do PMDB do Ceará - tendo ocupado diversos cargos públicos no seu estado e na administração federal -, avalia como positiva a atuação da Funasa, ainda que admita que o órgão passe boa parte do tempo “apagando incêndios”.

O político ainda refuta as acusações de loteamento político do órgão, afirma que a Funasa está trabalhando para aumentar a autonomia dos distritos sanitários e para conseguir um plano que permita a contratação de profissionais qualificados, entre outras mudanças, a fim de evitar que as aldeias fiquem sem atendimento sanitário. Leia a seguir os principais pontos da entrevista.

ISA - As lideranças indígenas acampadas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, durante o Abril Indígena, pedem reestruturação do sistema de saúde, que vem sendo criticado e questionado desde 2004, quando a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) promoveu mudanças no seu funcionamento.

Roberto Lustosa - Sei pela mídia que este acampamento tem reivindicações. A Funasa oferece um grande espaço para os indígenas. Nós não fomos procurados nem instados por esse grupo que está acampado no Congresso. Não foram colocados questionamentos ou dúvidas sobre nosso trabalho diretamente. O que sai na mídia eu respeito, mas não posso ser monitorado por ela. Nós tivemos um sucesso extraordinário na IV Conferência Nacional de Saúde Indígena (ocorrida em março de 2006). A reunião reafirmou democraticamente que a Funasa é o órgão adequado para a atenção à saúde indígena. Temos feito quase mensalmente reuniões com conselhos indigenistas do Brasil, com os Distritos Sanitários Indígenas (Dseis), estamos ampliando os distritos para melhorar a questão logística na área de atuação de cada um e experimentando sua autonomia administrativa, financeira e orçamentária. E não adianta fazer avaliações superficiais, como aconteceu, por exemplo, quando enviamos, na pressão das circunstâncias, pessoas para a aldeia Apinagé. Depois descobrimos que o problema era muito mais sério, era um problema de água e não se identificava o processo de contaminação. Os laudos que solicitamos não foram conclusivos. Ficou a dúvida das causas daquele processo de mortalidade infantil em curso. Chamamos médicos, mas para um médico ser contratado para ir a um lugar como aquele é difícil, se for pela estrutura de salários da Funasa não vamos mandar nenhum médico, nenhum enfermeiro.

Por quê?

Porque não temos salários compatíveis com esses profissionais. Um médico para ir para o interior do Brasil, quer o dobro do que ganha na capital, e com justa razão. Hoje para mandar um médico para uma aldeia, nós estamos pagando 11 mil reais. Tratar de índio não é barato. Tem problema de logística, de respeito à cultura, às peculiaridades das várias etnias, são os temores das pessoas brancas que não estão acostumadas ao ambiente. Estes problemas existem. Agora, as pessoas só vêem o trabalho que a gente fez e se falhou em alguma coisa para esculhambar, mas não enxerga o drama que é.

Embora o senhor esteja há menos de um ano no cargo, não acha que têm ocorrido muitas falhas?

O problema é mais de terra do que de saúde. Nós temos feito um trabalho intenso na Terra Yanomami...

Mas o caso yanomami é exatamente um dos exemplos de piora na saúde, com a volta da malária.

Vamos separar as coisas. Quando digo Yanomami, refiro-me à atenção à saúde indígena, e estamos melhorando bastante os níveis. Você fala de malária, e então vou te dar um dado, porque também temos que trabalhar com estatísticas: temos uma incidência até maior de malária nos últimos anos, mas os casos de óbito caíram tremendamente porque tivemos um tratamento muito mais sofisticado, muito mais adequado. Nós não temos nenhuma ingerência no controle da malária entre brancos no Brasil. Todas essas doenças como malária, tuberculose e dengue, não temos como mexer. Só temos ingerência na malária que diz respeito ao índio. Agora veja a situação: o contato entre as populações indígenas com a branca é muito intenso, então mesmo quando estamos tratando de um grupo indígena, ele pode estar em contato com brancos que não estão sendo tratados, então nosso trabalho é duplicado. Primeiro temos que fazer a prevenção e depois a cura em função do contágio.

Mas os casos de malária aumentaram e os custos do Dsei Yanomami também. Ou seja, mais dinheiro e mais doença.

Nós trabalhamos aqui na Funasa com saneamento ambiental de cinco mil municípios no Brasil. Temos nove mil convênios. Tratamos de saúde indígena em 170 etnias em 220 aldeias indígenas com 460 mil índios, alguns desses locais com grande dificuldade de acesso. Nós não trabalhamos com ação direta, pois não temos estrutura para tanto - precisaríamos de 200 mil trabalhadores. Trabalhamos de forma descentralizada e, para a saúde indígena, selecionamos ONGs ou universidades. Fazemos acompanhamento sistemático do desempenho destas entidades. Quando assumimos a Funasa, em agosto de 2005, identificamos uma série de problemas com as ONGs. Só no Maranhão tivemos que encerrar todos os contratos. Não estou aqui para responsabilizar o passado, mas há vários problemas com as ONGs.

Quais problemas?

No Amazonas fizemos vários Termos de Ajuste de Conduta (TACs) com o Ministério Público com ONGs. Aí quando falta dinheiro lá na ponta para a saúde indígena, cujo atendimento é responsabilidade delegada por nós a uma ONG, vem a mídia esculhambando que a Funasa não está liberando dinheiro. O que ninguém sabe é que estamos fazendo das tripas coração para aceitar prestações de conta cheias de limitações, e que pedimos à Casa Civil que emita uma instrução normativa para que as prestações de conta das ONGs sejam simplificadas. Raciocinamos do ponto de vista do gestor público. Se formos olhar na letra da lei, ferrem-se, lasquem-se, não vamos pagar nada. Mas não foi isso que fizemos. Estamos fazendo gestão pública, apagando um incêndio aqui, outro ali, outro acolá. Quando a coisa é mais crítica, a gente vai lá e diz para resolver parcialmente, e vai resolvendo...

Então a gestão da saúde indígena é feita na base de “apagar incêndios"?

Nós fizemos muito isso, mas agora está começando a mudar. Antes era só apagando incêndio, hoje mudou. Lá com os Apinagés nós estamos com uma força-tarefa com carro, médico, com tudo; no Mato Grosso do Sul, nunca mais tivemos problemas em Dourados, na aldeia Bodoquena não tivemos uma morte sequer de criança; estamos distribuindo com a Funai cerca de 60 mil cestas básicas; suplementação de vitamina A, de ferro; estamos implementando uma série de projetos...claro, o orçamento não sai na velocidade esperada. Fui parlamentar por dez anos e conheço um pouquinho a Casa (Congresso Federal). Segunda coisa: o processo burocrático. Fui ministro da desburocratização, e vivo minhas angústias existenciais porque sei que era preciso fazer uma série de reduções nos processos de tramitações das coisas aqui. Ao mesmo tempo estamos acelerando os convênios. No ano passado houve uma greve de 52 dias na Funasa, por problema de salário. O que quero dizer a você, parafraseando o grande filósofo Ortega y Gasset: eu sou eu e minhas circunstâncias. Sem olhar as circunstâncias a análise não é correta nem justa.

Levando em conta as circunstâncias, e também as críticas, não seria o caso da Funasa defender a transferência da gestão da saúde indígena para uma secretaria especial, ligada ao Ministério da Saúde, como propõem diversas entidades indígenas?

Essa proposta foi votada na IV Conferência e derrotada totalmente, quase por unanimidade. Se isso está sendo levantado no acampamento indígena na Esplanada, eu não sei então qual o fórum adequado, que para nós era a Conferência Nacional de Saúde Indígena, trabalhada a partir de conferências locais e regionais.

Mas o senhor mesmo diz que o custo da saúde indígena é altíssimo, que passou boa parte do tempo apagando incêndios...

O custo da saúde indígena é altíssimo, mas achamos que o País tem uma dívida com essa população e digo para você uma coisa que já disse uma vez para alguns caciques que estiveram aqui: coloquem a saúde indígena sob responsabilidade de uma secretaria do ministério, que vocês vão ser iguais a todo mundo. Aqui vocês são prioridade da Funasa. No ministério, vocês serão iguais a todas as secretarias. Aqui nós brigamos por orçamento, inclusive da parte da saúde indígena, brigamos no Congresso. Fomos até criticados por isso. Eu não sou dono da instituição, estou aqui temporariamente, a Funasa é permanente. Eu acredito na missão desta instituição, acho que, apesar das limitações que ela tem, está fazendo um excelente trabalho na área de saúde indígena. Acho que tem que ser muito melhor ainda, mas está fazendo apesar das limitações. Eu conheço um pouquinho da administração pública e vejo as dificuldades desta instituição aqui: a Funasa não tem até hoje um plano de cargos e salários, nós estamos perdendo engenheiros porque eles ganham menos que um mata-mosquito. Não que os mata-mosquitos ganhem bem.

A maioria dos coordenadores regionais da Funasa é ligada ao PMDB. A Funasa está loteada?

Isso não é verdade. De todas as 26 coordenações regionais, só nove tiveram suas chefias alteradas após 25 de julho de 2005. Uma destas é a do Maranhão, pois o coordenador, indicado pelo senador Sarney (PMDB-AM), tinha criado um problema tão grande com as comunidades indígenas que não teve jeito, os Guajajara iam matá-lo. O do Rio de Janeiro foi trocado porque precisávamos do antigo coordenador aqui em Brasília, por ser um dos melhores quadros da Funasa, e precisamos de um núcleo pensante aqui, pois eu trabalho de maneira estratégica.

Portanto não há uso político da Funasa, como tantas lideranças indígenas afirmam?

Nenhum! Eu estou ficando velho...estou lhe falando que não tem nada disso. No Mato Grosso do Sul (a nomeação do coordenador regional) está pendente até hoje. Sabe por quê? A Corregedoria-Geral da União constatou um monte de irregularidades e o coordenador está sendo processado. Nós até sugerimos uma substituição lá, mas está parada na Casa Civil. Porque as substituições nossas passam pela Casa Civil. Se ela achar que não é politicamente adequado, prende lá e não solta. Por exemplo, os deputados do PMDB do Espírito Santo me pediram para nomear o coordenador lá, eu encaminhei o nome para a Casa Civil e disseram que não iam fazer. No Acre, o cara é do Jorge Viana. No Maranhão, era do PT e isso foi mantido. No Ceará, de onde eu sou, sabe de quem é o coordenador regional? Do Ciro Gomes! Do Ciro Gomes! No Paraná o cara que tinha lá foi mantido. No Rio Grande do Sul foi mantido. Portanto não há e não houve loteamento na Funasa.

Outra reclamação que se ouve é que a maioria dos coordenadores regionais não é de profissionais especializados em saúde indígena.

De acordo com essa lógica eu também não deveria estar aqui. Mas nosso trabalho nestes oito meses vem sendo considerado extremamente importante, pela casa, pelos funcionários, pelos engenheiros, porque tirou a Funasa do marasmo e a transformou em um objeto de desejo político.

Mas afinal porque a Funasa é tão criticada pelas lideranças indígenas?

Não é verdade. Se as pessoas quiserem entender. O problema é que você chega com uma visão aqui e não quer entender. Nós sofremos uma coisa dramática aqui. E ONGs manipulam lideranças indígenas muitas vezes em função de seus interesses.

O documento final da recém-finalizada IV Conferência Nacional de Saúde Indígena aponta a necessidade de se promover uma série de mudanças na área, como a desburocratização e aumentar a autonomia dos Dseis. Portanto há pontos fracos identificados?

Sim, claro, e já começamos fazer a autonomia dos Dseis antes de eles levantarem isso. Mas não se muda tudo de uma vez. Estamos fazendo um primeiro experimento e vamos verificar que erros ocorrem. As coisas são lentas, não temos uma miríade de pessoas para fazer um novo desenho de Dseis. Eu tenho a impressão que 34 Dseis são insuficientes, por problemas de logística inclusive. Estamos estudando para fazer direito. Estamos montando um programa para treinar melhor os agentes de saúde indígena. Com um detalhe: os agentes são das próprias comunidades indígenas onde eles atuam, para evitar choques culturais. A remuneração? Estamos atrás no nosso plano de cargos e salários e vamos pressionar para que isso ocorra, ainda que fuja um pouco da minha alçada. Fico o tempo todo cobrando, mas não vou ficar falando mal do governo o tempo todo.

Porque os estados que mais receberam recursos da Funasa foram os mesmos que registraram o maior número de protestos, manifestações e reclamações de suas populações indígenas em relação ao atendimento de saúde?

É estranho, no meu estado, todos os 11 mil indígenas do Ceará estavam com água potável em setembro. Cem por cento. População branca, nem pensar. Sabe o que aconteceu? De setembro a janeiro, dissidências entre a população indígena geraram cinco ou seis novas aldeias. Então agora não está todo mundo com água potável. Mas é uma idiossincrasia da população indígena, nós temos que respeitar. E vamos ter que levar água para esse pessoal que está aldeado em outros lugares.

Como o senhor planeja resolver o problema das prestações de conta, para evitar que as aldeias deixem de receber medicamentos e atendimentos?

Como a gente faz para passar por cima da lei? Isso eu queria saber. Estamos em um Estado democrático de Direito, não há justificativa para não cumprir a lei. O que fazemos? Pintou um problema em tal lugar, mandamos uma força-tarefa, medicamentos com dinheiro e tudo, em uma operação de guerra. Eu não deixo nenhum problema descoberto. Não resta dúvida que estamos corrigindo estes vícios aos poucos. Pedimos que todos os nossos convênios sejam divulgados na Voz do Brasil (programa diário da Radiobras), com cópia para o Ministério Público da região e para a Câmara de Vereadores das cidades, para que o povo saiba o que estamos liberando e possa exercer o controle social. Estamos ligando diretamente para os Dseis para saber se falta alguma coisa.

A saúde indígena é sua principal dor de cabeça?

É, mas acho que é boa. Queremos chegar ao dia em que nenhuma criança morra de doença evitável. Esse é o nosso sonho.

Esse dia está longe?

Está porque tem lugares que não sabemos como chegar. Está literalmente longe. Veja você um exemplo: doamos aparelhos de ultra-som para aldeias. Eles foram transportados em voadeiras, mas quando chegaram lá estavam quebrados...então agora vamos mandar de helicóptero. Gastamos muito com transporte aéreo.

Como está sendo planejada a autonomia dos Dseis?

Antes a gente mandava dinheiro para muitas coisas, médicos, medicamentos, mas a coordenação regional tinha outras prioridades e usava aquele dinheiro e esperava outra dotação orçamentária para poder atender. Agora não, se a dotação orçamentária é dos Dseis, vai direto para eles, e não passa pela coordenação. Mas ainda não poderão fazer compras, pois não têm estrutura. Nós vamos privilegiar a compra local quando for possível. Mas é difícil, porque você não encontra um grande laboratório produzindo medicamento contra malária em Barcelos, no Amazonas, por exemplo.

Para finalizar, não há loteamento de cargos nem sucateamento do sistema de atendimento de saúde indígena?

Não há nada disso. Não está sucateada por um simples dado que vou lhe dar: o crescimento da população indígena é três vezes maior que o da população branca. E para que uma população cresça, o índice de mortalidade tem de ser inferior ao de natalidade, isso é aritmética simples. Então o que tem ocorrido é a queda da mortalidade infantil e da mortalidade em geral. Por isso a população indígena tem crescido, são 460 mil indivíduos. Há poucos anos a população indígena era de 300 mil índios. Se aumentou é porque deixou de morrer. E está aumentando a expectativa de vida dos índios.

Esse é o indicador que o senhor utiliza?

Primeiro nós cuidamos da quantidade de vida, dos anos de vida e agora estamos cuidando da qualidade de vida, mas não está fácil. Essa é nossa estratégia.

 
 

Fonte: ISA – Instituto Socioambiental (www.isa.org.br)
Assessoria de imprensa (Bruno Weis)

 
 
 
 
 
 

 

Universo Ambiental  
 
 
 
 
     
SEJA UM PATROCINADOR
CORPORATIVO
A Agência Ambiental Pick-upau busca parcerias corporativas para ampliar sua rede de atuação e intensificar suas propostas de desenvolvimento sustentável e atividades que promovam a conservação e a preservação dos recursos naturais do planeta.

 
 
 
 
Doe Agora
Destaques
Biblioteca
     
Doar para a Agência Ambiental Pick-upau é uma forma de somar esforços para viabilizar esses projetos de conservação da natureza. A Agência Ambiental Pick-upau é uma organização sem fins lucrativos, que depende de contribuições de pessoas físicas e jurídicas.
Conheça um pouco mais sobre a história da Agência Ambiental Pick-upau por meio da cronologia de matérias e artigos.
O Projeto Outono tem como objetivo promover a educação, a manutenção e a preservação ambiental através da leitura e do conhecimento. Conheça a Biblioteca da Agência Ambiental Pick-upau e saiba como doar.
             
       
 
 
 
 
     
TORNE-SE UM VOLUNTÁRIO
DOE SEU TEMPO
Para doar algumas horas em prol da preservação da natureza, você não precisa, necessariamente, ser um especialista, basta ser solidário e desejar colaborar com a Agência Ambiental Pick-upau e suas atividades.

 
 
 
 
Compromissos
Fale Conosco
Pesquise
     
Conheça o Programa de Compliance e a Governança Institucional da Agência Ambiental Pick-upau sobre políticas de combate à corrupção, igualdade de gênero e racial, direito das mulheres e combate ao assédio no trabalho.
Entre em contato com a Agência Ambiental Pick-upau. Tire suas dúvidas e saiba como você pode apoiar nosso trabalho.
O Portal Pick-upau disponibiliza um banco de informações ambientais com mais de 35 mil páginas de conteúdo online gratuito.
             
       
 
 
 
 
 
Ajude a Organização na conservação ambiental.