27/06/2006
- O atendimento médico nas comunidades
indígenas do Rio Negro, no Amazonas,
sofre com o atraso no repasse de recursos,
suspensão no pagamento de salários,
falta de medicamentos e equipamentos. A crise
provoca o aumento de doenças e mortes,
afirmam os responsáveis pelo distrito
sanitário indígena local, o
médico Oscar Soares e o coordenador
Hernane Guimarães. Em entrevista ao
ISA, eles apresentam um panorama da saúde
indígena na região e falam do
difícil diálogo entre a entidade
indígena conveniada e a Fundação
Nacional de Saúde.
O Distrito Sanitário
Especial Indígena (Dsei) do Rio Negro
é fruto do convênio celebrado
em 1999 entre a Federação das
Organizações Indígenas
do Rio Negro (Foirn) e a Fundação
Nacional de Saúde (Funasa). A partir
de 2004, com a mudança no sistema de
gestão de saúde indígena
– pela qual a Funasa passou a centralizar
as ações e deixou as entidades
conveniadas responsáveis apenas por
administrar o quadro de funcionários
com a verba repassada por Brasília
– o Dsei Rio Negro começou a enfrentar
uma série de problemas. Atraso no repasse
de recursos, suspensão no pagamento
de salários, falta de medicamentos
e equipamentos estão entre as dificuldades
mais graves, causando muitas vezes a paralisia
no atendimento das aldeias da região
e o aumento de doenças e mortes.
Os atrasos no repasse de verba da Funasa para
o Dsei provocaram uma mobilização
inédita em abril passado. Cerca de
300 funcionários do distrito entraram
em greve pela liberação de recursos
de meses passados e ocuparam o prédio
da Funasa em São Gabriel da Cachoeira
por quatro dias para, de acordo com Hernane
Guimarães, enfermeiro e coordenador
técnico do distrito, impedir que a
fundação seguisse com suas atividades
administrativas e chamar a atenção
da opinião pública nacional
para o colapso da saúde indígena
no Rio Negro. Dias depois, o débito
foi quitado.
Guimarães e o médico
gaúcho Oscar Soares, que trabalham
na região desde o surgimento do distrito
sanintário, concordam que a crise na
saúde indígena pede uma mudança
radical na gestão do sistema. Afirmam
que, no Rio Negro, o índice de mortalidade
indígena dobrou durante a última
paralisão no atendimento e que, neste
período, muitas doenças de fácil
tratamento causaram mortes devido à
falta de dinheiro e de medicamentos. Leia
a entrevista a seguir.
ISA - Desde quando
o Dsei Rio Negro enfrenta atrasos nos repasses
da Funasa?
Hernane
- Isso começou a se agravar em 2004.
Quando houve mudança nos termos do
convênio, pela qual a compra de equipamentos,
insumos e medicamentos foi centralizada pela
Funasa e, à conveniada, coube somente
a contratação dos profissionais
e o ônus que isso traz.
A Funasa envia algum
comunicado sobre o atraso nos repasses?
Oscar -
Existe um ponto chamativo da composição
da Funasa. Cargos importantes que deliberam
ou são ordenadores de despesas são
ocupados por pessoas que não têm
qualificação ou intimidade com
a questão indígena. Imagine
esse fato num país que tem mais de
200 etnias indígenas, que falam mais
de 180 línguas e possuem uma diversidade
cultural enorme. Essas pessoas tendem a achar
que a saúde indígena é
igual em todo lugar. Esses gestores não
têm a mínima concepção
das realidades geográficas e culturais.
O próprio coordenador da Funasa em
Manaus se desculpou numa reunião da
Coordenação das Organizações
Indígenas da Amazônia Brasileira
(Coiab), dizendo que não conhecia nada
de índio. Se ele não conhece
nada de índio, por que está
lá? Por essas e outras a Funasa parece
ser, hoje, uma espécie de loteamento
político progressivo com intuitos escusos.
E isso se reflete na qualidade do serviço.
Farmácia
do Dsei está cheia de gaze e algodão.
Como tratar diarréia, picada de cobra,
pneumonia?
Em relação
à última greve, a Funasa reagiu
afirmando que a prestação de
contas do Dsei tinha pendências.
H - Esses problemas acontecem
com todas as conveniadas do Brasil. No início
do convênio nós não tínhamos
preparo suficiente para tocar o projeto, por
isso ficaram algumas lacunas e uma delas é
o problema com licitações. Nenhuma
conveniada conseguia fazer licitação.
Depois de um ano, começamos a perceber
os erros, então começamos a
capacitar os nossos profissionais. O problema
é que, além dessas licitações,
ainda existem as multas de atrasos por causa
da demora nos pagamentos. Veja só a
incoerência nesse caso: estamos pagando
multa por atraso no pagamento dos encargos
sociais, que não pagamos em dia porque
não recebemos as verbas no prazo. Somos
punidos por iso. E ainda existe o problema
de uma cifra que ficou pendente de convênios
passados, pois na mudança de um governo
para o outro todas as instituições
ficaram sem convênio por 4 meses. Disseram
que nós poderíamos fazer dívidas,
pois a Funasa assumiria. Tudo isso para não
pararmos as atividades em área. Mas
isso não aconteceu, e estamos com um
rombo de mais ou menos 400 mil reais. Isso
aconteceu com várias conveniadas no
Brasil inteiro.
E o que a Funasa
faz para resolver essas lacunas?
O - Pelo que estabelece
o Sistema Único de Saúde (SUS),
cabe à Funasa a ação
executora da saúde e, ao Ministério
da Saúde, a gestão. Só
que a fundação percebeu que
sozinha não é capaz de executar,
por isso procurou no cenário nacional
instrumentos que poderiam ser aliados a ela.
Portanto, a Funasa ficou responsável
juridicamente, mas a execução
de fato ficou com as ONGs, universidades,
fundações federais, prefeituras
e outros. A lei diz que a Funasa é
quem está fazendo, mas não é
ela de fato. Ao longo de seis anos de convênio,
os instrumentos executores estão cada
vez mais desgastados pela falta de diálogo
da Funasa. Outro exemplo é a falta
de competência dos funcionários,
devido ao loteamento político que existe
dentro do sistema da fundação.
Em 6 anos nós tivemos 4 diretores de
Departamento de Saúde Indígena
(Desai). Com essas trocas não deu tempo
de as pessoas amadurecerem e entenderem a
dinâmica do sistema, que aponta onde
estão os erros e os acertos. Se até
a Universidade de Brasília (UnB), que
é um órgão federal conveniado
com outro órgão federal, a Funasa,
teve problemas com seu convênio para
atuar em Roraima, instituições
que não tem tanto respaldo público,
como a Foirn,que é responsável
pelo Dsei, não tem como sobreviver
com esses desgastes progressivos.
O que deve ser feito
para solucionar estes problemas definitivamente?
O - Não há
como resolver esses problemas se o governo
continuar mantendo a Funasa como ela é
hoje. A única possibilidade é
reestruturar esse órgão ou extingui-lo
de vez, propondo outro órgão,
com uma dinâmica maior, dando autonomia
maior aos seus executores. Pois hoje as entidades
que executam o atendimento médico e
sanitário nas aldeias não têm
autonomia financeira, política e administrativa.
E sendo a saúde indígena extremamente
dinâmica, sofrendo sazonalidades de
doenças, com áreas de difícil
acesso, com elementos culturais importantes,
o trabalho requer também uma dinâmica
muito ampla, que necessita desta autonomia.
O caminho seria transformar os distritos em
unidades gestoras, pois assim eles passariam
a contratar seus funcionários, prestariam
conta diretamente ao conselho distrital e
ao Ministério da Saúde e isso,
com certeza, daria maior agilidade no funcionamento
da atuação das equipes de saúde.
O problema é que, se isso acontecer,
as coordenações regionais da
Funasa perderiam funções e seus
funcionários, que são cargos
políticos.
Como fica a situação da saúde
indígena nas aldeias nesses períodos
de paralisação?
O - O número médio
de óbitos por mês gira em torno
de 6. Mas quando estamos paralisados, isso
dobra. Na última paralisação,
o número foi de 18 mortes num único
mês. Isso é a prova de que a
condução da Funasa é
criminosa, pois a grande maioria desses mortos
são crianças que morrem de doenças
que poderiam ser prevenidas e que são
de fácil tratamento. A nossa farmácia
está numa situação precária,
vazia de medicamentos fundamentais, mas cheia
de gaze e algodão. Como tratar diarréia,
picada de cobra, pneumonia, com gaze e algodão?
Essa discrepância nos medicamentos acontece
por que a compra desses remédios é
feita pela Funasa em Manaus, que não
conhece as nossas necessidades. Para eles
nós estamos abastecidos, mas não
temos antibióticos, anti-térmicos
e outros medicamentos básicos.
Qual a situação
dos funcionários do Dsei do Rio Negro,
que ficam em média 3 meses sem receber
salário?
H - Eles estão
numa situação muito difícil.
As famílias passam fome, o comércio
não libera mais o crédito, o
banco faz empréstimos com juros altos.
Eles não têm gás, a energia
está cortada em muitas casas. É
uma situação desesperadora mesmo.
Além do mais, os funcionários
também passam pela incerteza da renovação
ou da não-renovação do
convênio. Isso impossibilita o planejamento
dessas pessoas, pois se o convênio não
for renovado, elas poderiam já se organizar
para procurar outro emprego.
Andreza Andrade.