26/06/2006
- A grande maioria dos acidentes ofídicos
com serpentes peçonhentas não
causa morte no Brasil. Mas em São Gabriel
da Cachoeira, na região do Alto Rio
Negro (AM), os acidentes ocorridos nos últimos
anos têm levado ao óbito um número
de vítimas proporcionalmente muito
maior do que a média nacional. Especialistas
afirmam que o soro distribuído no País,
além de ser escasso na região,
não é eficiente contra o veneno
das cobras rionegrinas.
Até 1999, ano em
que a Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (Foirn) celebrou
o convênio com a Fundação
Nacional de Saúde (Funasa) para a implementação
do Distrito Sanitário Especial Indígena
do Rio Negro (Dsei), nenhuma instituição
de saúde em São Gabriel da Cachoeira,
no Amazonas, realizava notificações
de acidentes ofídicos na região.
Desde então o Dsei passou a registrar
os casos, o que possibilitou a quantificação
de um alto número de vítimas
– uma média de 60 por ano, sendo que
destas seis costumam ser fatais (índice
de mortes de 10%).
No Brasil, a relação
acidentes e mortes é bem menor. No
ano passado, de acordo com dados do Instituto
Butantã, de São Paulo, especializado
no estudo e pesquisas com cobras e na produção
de soros e vacinas, foram registrados 28.321
casos de mordida de cobra no País,
sendo que apenas 111 resultaram em óbitos
(0,39% do total). A localização
geográfica, que dificulta o deslocamento
da vítima até o hospital da
cidade, a falta de transporte e a resistência
da família em levar o acidentado para
tratamento soroterápico estão
entre os motivos que aumentam o risco de morte
entre as vítimas de serpentes no Rio
Negro. Mas as notificações do
Dsei também mostram que pacientes com
quadro clínico considerado de moderado
à grave, medicados com soro nacional,
não respondem ao tratamento. O que
estaria por trás disso?
Uma pesquisa realizada em
2004 levantou indícios de que o veneno
das serpentes do Rio Negro é extremamente
forte. Daniel Fernandes da Silva, herpetólogo
do Museu Nacional do Rio de Janeiro, esteve
por dois meses na região a fim de coletar
algumas espécies para serem analisadas.
Os primeiros resultados mostraram que o veneno
da jararaca do Rio Negro é 30 vezes
mais potente do que o da jararaca encontrada
no Estado de São Paulo. Como o Ministério
da Saúde produz um soro genérico,
seu efeito não seria capaz de combater
os efeitos do veneno das serpentes rionegrinas.
“O soro nacional é destinado a lugares
de adensamento populacional e só vai
curar efetivamente aquelas pessoas que foram
picadas nas cidades grandes”, afirma Oscar
Soares, médico do Dsei. “O Norte do
país é uma região de
adensamento de serpentes e não de pessoas,
e o soro nacional não leva em consideração
essa especificidade, sobretudo quando se pensa
na grande diversidade de serpentes amazônicas
ainda não conhecidas e estudadas”,
ressalva o médico.
As espécies de serpentes que causam
maior número de acidentes no Rio Negro
são do gênero Bothrops Atrox,
conhecido popularmente como jararaca, e a
Lachesis Muta, ou surucucu. Entretanto, já
aconteceram casos de espécies raras
atacarem. De acordo com o banco de dados do
Dsei, uma coral preta sem anéis, muito
rara e extremamente venenosa, atacou um homem
de 40 anos que veio a falecer em menos de
três horas. As jararacas são
encontradas em lugares limpos como nos caminhos
das roças, já as surucucus são
mais comuns em solos úmidos da selva
densa, ambiente que raramente recebe a luz
solar. As pessoas atacadas por elas costumam
transitar na mata fechada, como é o
caso da população que vive nos
interflúvios dos igarapés, geralmente
indígenas das etnias hupda e yuhupda.
Os dados coletados na pesquisa
foram enviados para o Instituto Butantã,
que demonstrou interesse em levar a investigação
adiante. No momento, o Dsei está aguardando
a confirmação do instituto,
que se comprometeu em enviar uma equipe de
herpetólogos para coletar serpentes
em toda região do Rio Negro. O Butantã,
por sua vez, aguarda a autorização
do Ibama para o transporte dos animais. O
Exército, por meio do comando do batalhão
de São Gabriel da Cachoeira, já
confirmou apoio no transporte tanto dos pesquisadores
como também das próprias serpentes.
O Dsei e o ISA participam da pesquisa realizando
a interlocução com as populações
locais para que elas possam ajudar na coleta.
Baixa eficácia,
nenhuma quantidade
Além da pequena eficácia
do soro diante da potência dos venenos
das serpentes da região, o Dsei do
Rio Negro sofre com a falta do medicamento.
Atualmente, a Fundação Nacional
de Saúde (Funasa) é a responsável
pela distribuição de soro antiofídico
nas unidades de saúde pública
no Brasil, por meio do Programa Nacional de
Imunização (PNI). No Amazonas,
o repasse é feito para a Secretaria
Estadual de Saúde (Susam) que, por
sua vez, repassa para os municípios.
Em 6 anos de atividades, o Dsei do Rio Negro
não recebeu nenhuma carga de soro.
Segundo Yéssica Milagros,
coordenadora técnica do distrito, os
pólos-bases deveriam receber ampolas
de soro antiofídico, pois é
a equipe de saúde do Dsei que faz atendimento
de urgência nas comunidades. “Por necessitar
de refrigeração o soro antiofídico
nacional é distribuído somente
para unidades que dispõem energia elétrica.
Mas nós temos condições
de receber algumas ampolas nos nossos pólos-bases
de referência, pois dispomos de motor
gerador 24 horas nesses locais", afirma.
"Como as distâncias no Rio Negro
são enormes, o paciente acidentado
pode correr risco de morte durante o transporte
até a cidade para receber o tratamento
soroterápico. Somos nós que
estamos na linha de frente, nada mais coerente
que também recebamos cargas de soro",
alega. A coordenadora informou que o distrito
sanitário já enviou vários
ofícios, cartas e documentos ao PNI,
à secretaria estadual e à Funasa,
solicitando envio de soro, mas a resposta
é sempre a mesma: “Não é
possível enviar porque as cargas disponíveis
para o município já vem em número
limitado”.
O caminho encontrado pelo
Dsei para amenizar os casos foi recorrer ao
soro colombiano. Liofilizado, este soro é
transportado e armazenado em forma de pó,
que fica ativo ao ser misturado com água
destilada. Por não necessitar de refrigeração,
é mais fácil de ser transportado.
Por ser destinado ao tratamento veterinário
eqüino, entretanto, o uso do soro colombiano
pode apresentar efeitos colaterais no ser
humano. Mesmo assim, foi a única alternativa
encontrada pelo distrito para salvar a vida
de pessoas que precisavam de tratamento com
urgência.
De acordo com Yéssica
Milagros, nenhum efeito colateral ao soro
foi registrado e os pacientes reagem rapidamente
ao tratamento. Ao comunicar à Funasa
a respeito da experiência de sucesso
que estava obtendo, contudo, o Dsei teve que
suspender o tratamento por recomendações
da própria fundação,
pois o soro antiofídico da Colômbia
não possui autorização
de uso e distribuição da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa). Atualmente o Dsei não dispõe
de nenhuma ampola de soro antiofídico,
seja colombiano ou nacional.
Em 2005, o Instituto de
Medicina Tropical de Manaus, por meio de uma
parceria com o Instituto Butantã e
o Exército Brasileiro, iniciou uma
série de testes com o primeiro soro
liofilizado do Brasil. A pesquisa acontece
desde 2000 no Butantã. Agora em Manaus,
os testes estão em fase final e em
breve o soro será liberado pela Anvisa
para distribuição e uso. Porém
ainda não se tem informações
de quais instituições receberão
os soros liofilizados, sabe-se apenas que
serão destinados para áreas
remotas e de difícil acesso.
Oscar Soares afirma que
a situação no Rio Negro é
crítica e a falta de solução
para os atuais impasses está levando
ao óbito pessoas que poderiam ser tratadas
nos primeiros momentos da picada. “Não
faz sentido sermos um país de referência
mundial em pesquisa de vacinas e soros antiofídicos,
se ainda existem muitas pessoas morrendo aqui
por acidentes de fácil tratamento”,
questiona o médico.
Tratamento conjunto
No Alto Rio Negro, os acidentes
ofídicos costumam ocorrer com mais
freqüência no início e no
final do inverno, época de chuva. No
início, as serpentes procuram refúgio
em lugares mais secos, pois as suas casas
ficam alagadas. No final do inverno os igapós
secam e as cobras retornam para seus lugares
novamente. Nos dois períodos, elas
ficam muito agitadas, pois estão à
procura de novas tocas.
Em algumas comunidades indígenas,
a vítima inicialmente procura o pajé.
Se a pessoa não melhora em algumas
horas, a família procura o pólo-base
do Dsei e, dependendo da gravidade, transfere
o paciente para São Gabriel da Cachoeira
para receber o tratamento soroterápico.
O soro antiofídico contém anticorpos
que combatem o veneno injetado pela serpente
no corpo humano.
Segundo Oscar Soares, as
equipes de saúde têm conseguido
realizar um tratamento em conjunto com o pajé,
unindo elementos da medicina tradicional com
o conhecimento da medicina ocidental. Essa
nova concepção de tratamento
tem ajudado muito na recuperação
dos pacientes. “A presença dos pajés
nesse momento é muito importante pois,
além de contribuírem com seus
métodos xamânicos e fitoterápicos,
eles transmitem confiança para o paciente”,
ressalta Soares.
Em São Gabriel da
Cachoeira ou em Manaus, quando o caso é
bastante grave, os profissionais de saúde
costumam optar pela amputação
do membro afetado. Os povos indígenas,
contudo, não consideram a amputação
como cura e demonstram muita resistência
em se submeter ao procedimento. "O indígena
amputado torna-se um ônus para sua comunidade.
No caso da população hupda,
por exemplo, a base da sua sobrevivência
são suas andanças na mata em
busca de caça e frutos. Se um homem
perde o pé ou a perna certamente será
desprezado por todos da comunidade, pois não
poderá ir atrás de comida e
só atrapalhará o grupo”, explica
Soares.
Fernando José Baniwa,
62 anos, foi um dos que conseguiu se curar
sem precisar amputar a perna, apesar do procedimento
ter sido programado. Ele lembra que sua família
lutou bastante para tirá-lo do hospital
e levá-lo de volta para sua comunidade.
Ao chegar, iniciou o processo de cura e, depois
de quase um ano, voltou a andar. Leia aqui
o depoimento de Fernando José Baniwa.
Concepção
mítica para picadas de serpentes
Para alguns povos do Rio
Negro, como os Baniwa, as cobras peçonhentas
surgiram de uma luta entre Nhiãpirikoli
- um ser ancestral criador e Omáwali
- serpente ancestral que era o pai de todos
os peixes e inimigo mortal dos ancestrais
dos seres humanos. Nhiãpirikoli havia
descoberto que sua mulher o traíra
com seu inimigo e tentou matá-lo com
flechadas de zarabatana, porém não
conseguiu nas primeiras tentativas. As flechas
que caíam no chão se transformavam
em cobras venenosas como surucucu, jararaca
e coral.
Por isso, para os Baniwa,
as picadas não são casualidades,
trata-se de resultados de relações
conflituosas de alteridade, como é
o caso da traição da esposa
de Nhiãpirikoli. As pessoas também
podem ser vítimas de estrago-que são
imprecações resultadas de conflitos
ou inveja por parte de outros membros da comunidade.
Sendo assim, o processo de cura da vítima
obedece muitas regras de alimentação
e de reclusão.
Também não
pode ter contato com pessoas que tenham tido
relações sexuais recentemente,
mulheres grávidas ou no pós-parto,
pois o sangue presente nessas pessoas poderia
provocar inchaço ou hemorragia no doente.
Obedece ainda a uma dieta rigorosa, como a
não ingestão de pimenta e de
peixes “lisos” de couro. Os Baniwa acreditam
que a pimenta é semelhante ao veneno
que tempera o corpo para espíritos
canibais e os peixes de couro lembram a pele
das serpentes. A dieta deve ser adotada por
todos os membros da família, como forma
de ajudar na recuperação do
acidentado.
Andreza Andrade.