26/06/2006
- É o que diz Douglas Rodrigues, médico
sanitarista e coordenador do projeto Xingu
da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), em entrevista ao ISA. O projeto
é responsável pelo atendimento
médico de 2.263 índios que vivem
nas aldeias do Médio e Baixo Rio Xingu,
por meio de convênio com a Fundação
Nacional de Saúde (Funasa). Na entrevista,
Rodrigues relata que o trabalho médico
no Xingu enfrenta o desafio de estancar o
avanço de “novas” enfermidades na área,
como as doenças sexualmente transmitíveis
(DSTs), obesidade, hipertensão e desnutrição
infantil. As DSTs, inclusive, estão
por trás da mais recente epidemia diagnosticada
na região: a de câncer de colo
de útero.
De acordo com Douglas Rodrigues,
o atendimento prestado pela Unifesp - iniciado
em 1965 - faz do Xingu uma exceção
positiva em relação ao panorama
da saúde indígena no Brasil,
mas não consegue avançar em
ações de prevenção
e promoção de saúde,
e fica "correndo o tempo todo atrás
das doenças". Ele afirma ainda
que o convênio da universidade com a
Funasa também sofre com atrasos nos
repasses de recursos e que a fundação
ainda não conseguiu adequar o modelo
de atendimento às especificidades dos
povos indígenas. Leia a seguir a entrevista
na íntegra.
ISA - Qual sua avaliação
do sistema de saúde indígena
atual?
Douglas Rodrigues - Eu vivi
o tempo em que a Fundação Nacional
de Índio (Funai) era a responsável
pela saúde indígena e acompanhei
a entrada em cena da Fundação
Nacional de Saúde (Funasa) e a mudança
a partir de 1999, com a criação
dos Distritos Sanitários Especiais
Indígenas, os Dseis. Essa mudança
foi boa, pois melhorou o acesso dos índios
aos serviços de saúde. Os indicadores
mostram isso, a mortalidade infantil diminuiu,
ainda que a Funasa não tenha um sistema
de informação confiável.
O Sistema Único de Saúde (SUS)
ter incluído a saúde indígena
dentro de seu escopo foi também um
grande avanço. Isso é inquestionável.
Hoje existem propostas para a Funai reassumir
o sistema. Acho que isso vai ser uma catástrofe,
pois a Funai não tem estrutura nem
quadros para isso e já mostrou ao longo
dos anos que não consegue fazer. Quando
o Ministério da Saúde assumiu
o sistema, o orçamento da saúde
indígena cresceu muito. Mas ter dinheiro,
é importante dizer, é apenas
o começo.
O que mais deve
acontecer?
A Funasa não adequou
sua cultura institucional, eles continuam
trabalhando com os índios como no tempo
que em que controlavam malária no meio
do mato. Às vezes o pessoal da Funasa
me pergunta quantos índios têm
no Xingu para mandar cesta básica,
e eu digo que não é assim que
funciona. O refinamento do modelo, adequar
o atendimento a cada área, isso não
foi feito. Não dá para pasteurizar
ações desde Brasília.
E isso talvez implique mais pessoal preparado,
formado para isso de forma multidisciplinar.
E isso a Funasa não consegue fazer.
Por que não consegue fazer? Primeiro
porque a fundação não
tem quadro, ela terceiriza tudo. E terceiriza
do jeito que dá, meio assim: ‘com quem
tiver eu faço’. Há poucas ONGs
preparadas com experiência acumulada.
E tem que capacitar as outras parceiras, como
as associações indígenas.
Senão não se cria competência
técnica.
O que você
quer dizer com adequar a cultura institucional?
Eles precisam entender que
o trabalho de saúde indígena
é muito complexo. São 400 mil
índios aldeados no Brasil, mas cada
mil são diferentes dos outros mil e
estes dos outros 500 e por aí vai.
As situações são muito
distintas. Então os critérios
comuns de saúde pública, como
um médico para dois mil habitantes
– que valem para cidades como São Paulo
-, não servem ao Xingu, nem para o
Dsei Yanomami, onde talvez seja necessário
um médico para 500, 300 habitantes.
Os índios são muito vulneráveis,
estão em locais distantes e de difícil
acesso.
Qual a mudança
mais urgente?
O Estado brasileiro tem
que possibilitar a gestão indígena
do sistema. Como isso (a capacitação
das associações indígenas)
nunca foi feito, muitas associações
simplesmente quebraram. Outra coisa é
que as associações indígenas
existem para defender os direitos dos índios,
para brigar com o Estado por estes direitos.
E o modelo atual as torna dependentes do Estado,
do financiamento, e elas ficam com o rabo
preso. Hoje o que você encontra nas
coordenações regionais são
‘consultores’, muitas vezes apadrinhados políticos,
e isso aumentou muito neste atual governo.
O processo seletivo não é claro,
falta transparência e os cargos são
totalmente loteados. E com muita rotatividade,
o que impede a criação de lastro
e entendimento do trabalho. Cada um que entra
quer reinventar a roda. Isso ocorre em todos
os lugares, com raras exceções.
O Xingu é uma delas, graças
à presença da Unifesp, pela
qual a gente tem como capacitar as pessoas,
oferecer perspectivas de estudo e aprimoramento
profissional.
A crise da saúde
indígena também atinge o trabalho
da Unifesp no Xingu?
A parte administrativa e
financeira da Funasa está dissociada
da gestão do sistema de saúde,
então a burocracia é muito grande
e impede que os recursos cheguem a tempo.
Temos recorrentes pendências de pagamento,
normalmente pendências burocráticas.
No ano passado estávamos para fazer
uma campanha de vacinação –
o que fazemos 4 vezes por ano – e não
tinha dinheiro. Quando reclamamos pela imprensa,
a Funasa disse que tinha problema na prestação
de conta. Mas eles não tinham nos avisado
que problema era esse. Assim não ia
resolver nunca. Três dias depois da
nossa reclamação, saiu o dinheiro.
Então quem tem poder fogo, espaço
na mídia para pressionar, passa por
umas dificuldades, mas acaba realizando o
trabalho. Mas nossos problemas são
insignificantes perto do que companheiros
de outros lugares passam. O panorama do atendimento
de saúde indígena no Brasil
é muito desigual.
Qual a diferença?
O diferencial no Xingu é
que tem uma universidade por trás,
que atua na região há mais de
40 anos e que acumulou muito conhecimento
sobre aquela população. Temos
registros epidemiológicos desde 1965.
E o atendimento sanitário no Xingu,
além de ter por trás uma instituição
forte e um programa consolidado em quatro
décadas de trabalho, é apoiado
diretamente pelos índios. Agora sei
que em outras áreas, ONGs e associações
indígenas ficam seis meses sem receber
e não têm como trabalhar. E quando
não tem dinheiro para salário,
não tem também para gasolina,
para motor, para remédio. E isso são
as ações que chamamos de curativas.
As de promoção de saúde,
que são as que deveriam ser priorizadas
neste modelo, nem chegam perto de acontecer.
O Xingu tem o melhor atendimento de saúde
indígena no Brasil?
Em termos de modelo de atenção
e de indicadores de saúde, o Xingu
está entre os primeiros. O Xingu é
parte da Escola Paulista de Medicina, hoje
Universidade Federal de São Paulo.
O que fazemos lá eu nunca vi em outras
áreas: damos cobertura de 97%, índice
superior aos de muitas cidade brasileiras.
Na verdade não temos muita informação
das outras áreas, mas sei que no Rio
Negro, por exemplo, as condições
são muito piores do que no Xingu. Os
Guarani de São Paulo, mesmo estando
no estado mais rico e desenvolvido da União,
estão em péssima situação.
Por isso conseguimos olhar para frente, planejar
ações, e não apenas apagar
incêndios.
Qual deveria ser
a prioridade, prevenção ou cura?
Tem que ter recurso para
as duas coisas. A prevenção
é fundamental para termos menos doenças
lá na frente, mas em muitos momentos
você precisa de recursos, humanos e
financeiros, para cuidar das doenças
que estão acontecendo na hora. Com
o passar do tempo, as ações
de promoção vão diminuindo
este componente de doenças, até
o momento ideal em que este componente fica
pequeno e trabalhamos basicamente com prevenção.
Mas na situação atual isso nunca
vai acontecer, pois não há recursos
para a promoção da saúde
indígena. Então ficamos sempre
apagando incêndio, correndo atrás
da doença. E ainda tendo que escolher
quais doenças tratar, pois muitas vezes
só dá para atacar as que oferecem
risco de vida.
Quais são
os principais problemas de saúde na
população xinguana?
O que vemos é que
no Xingu há uma epidemia de câncer
de colo de útero. Em abril deste ano
operamos 21 mulheres xinguanas, com lesões
graves, sendo que o número de mulheres
sexualmente ativas no parque, que é
o grupo de risco para o HPV (vírus
causador das lesões) não passa
de 900. E já perdemos duas mulheres
no Xingu por causa disso, pela demora nos
diagnósticos, nas operações.
E estamos para perder mais uma paciente. O
câncer de colo de útero é
uma doença emergente introduzida há
uns quinze anos no parque, o que em termos
de saúde pública é uma
introdução recente. Quando eu
comecei a trabalhar no Xingu, há 25
anos, uma gripe colocava um indivíduo
adulto e forte na rede, com 39 graus de febre,
o pulmão chiando. Era um agente agressor
novo. Com o passar do tempo, os organismos
vão ser adaptando às infecções
e as manifestações clínicas
deixam ser tão floridas, como falamos
no jargão médico. Talvez isso
esteja ocorrendo com o HPV. Por ser uma doença
recente as mulheres indígenas estão
tendo uma reação de defesa mais
exacerbada, em um processo inflamatório
que gera alterações celulares
e que pode levar à lesão cancerosa.
Daqui a 40 ou 50 anos a convivência
da população com este agente
infeccioso vai fazer com que mecanismos secundários
de defesa atuem e não provoquem tantos
casos de câncer. Queremos fazer uma
pesquisa para confirmar essa impressão.
Ou seja, os índios
do Xingu estão mais ameaçados
por doenças, digamos, modernas, do
que por enfermidades que prevaleciam há
duas, três décadas, como tuberculose,
gripe e malária?
Sim. O Xingu não
é mais um lugar isolado, as pessoas
entram e saem o tempo todo, o povo de lá
está em permanente contato com a sociedade
branca, e junto com o contato vem o contágio.
Antes só se chegava lá de avião,
os índios ficavam restritos à
área. Hoje vai todo mundo de carro
para todos os lados. Outra mudança
importante é a monetarização
das relações dentro do parque.
Hoje há muitos índios assalariados
no Xingu, seja pela Funai ou por outras instituições
e projetos. Então diminuímos
a incidência das doenças chamadas
tradicionais, mas têm novas doenças
surgindo, muitas ligadas a um estilo de vida
mais sedentário e à alimentação.
Antes a malária matava terrivelmente.
Hoje você tem 30, 40 casos por ano.
Até a década de oitenta essa
quantidade acontecia a cada semana. Ao mesmo
tempo, naquela época não havia
praticamente casos de hipertensão arterial
ou obesidade no Xingu, nem diabetes. Isso
não é mais verdade. Só
na área da aldeia NGoyvere e dos postos
indígenas Pavuru e Diauarum temos quase
40 pessoas hipertensas, tendo que tomar remédios.
Tivemos dois óbitos por acidente vascular
cerebral, os primeiros da história
do Xingu. Já temos dois ou três
índios usando marca-passos, devido
a cardiopatias conseqüentes de hipertensão
arterial.
Quais os outros
impactos desta mudança no estilo de
vida dos índios do Xingu?
A mudança de hábito
leva também a dois extremos: obesidade
e desnutrição, principalmente
nas grávidas, nas crianças e
nos idosos. E a desnutrição
em crianças simplesmente praticamente
não existia. Hoje temos 15 a 20% das
crianças menores de cinco anos com
algum grau de desnutrição. No
Xingu não temos casos graves, tirando
uma ou outra exceção. Mas isso
está avançando. E é intrigante.
Como em aldeias cheias de alimentos tem um
monte de criança desnutrida? A conclusão
a que estamos chegando, a partir dos relatos
dos próprios índios, é
que isso tem a ver com mudança de hábitos
relativos aos cuidados com as crianças.
Por exemplo, uma comida especial. No Xingu,
uma criança pequena não come
uma série de coisas, é só
um ou outro peixe que pode comer, ela se alimenta
basicamente de caldos. Isso vem se perdendo.
Os antigos Kaiabi nos contaram que antigamente
as crianças andavam com uma cuiazinha
cheia de farinha de peixe, para cima e para
baixo, isso não tem mais. Além
do mais, as roças estão diminuindo,
a rapaziada está mais interessada nas
coisas da cidade do que em abrir roça.
Quer mais arrumar trabalho para poder comprar
arroz e feijão.
Outra coisa que está
diminuindo ou mesmo acabando no Xingu é
o intervalo interpartal, o que chamamos de
‘couvade’. O período durante o qual
o casal não mantém relações
sexuais, que entre os índios é
de um a dois anos. Exatamente para evitar
que venha um filho atrás do outro.
O conhecimento tradicional diz que o sujeito
não pode mexer com a mulher até
o filho começar a andar. Por isso que
muitos têm duas ou três mulheres.
Mas agora ninguém respeita mais isso.
E dizem que é ‘porque é assim
que os brancos fazem’. Então, agora,
há uma mulher grávida e amamentando,
que em algum tempo vai ter sete, oito meninos
para dar de comer, a roça vai ter que
aumentar, e ela acaba cuidando mais de uns,
menos de outros. Portanto, há uma conjunção
de causas, mas não é falta de
alimento, de disponibilidade de comida. Lá
as pessoas plantam, o que está acontecendo
é que a comida não está
chegando na boca das crianças da forma
adequada, da forma tradicional. Diferente
da aldeia Guarani aqui em São Paulo,
por exemplo, onde não tem espaço
para plantar um pé de milho.
E a obesidade?
Esse é outro
problema. Antes todo mundo remava seus barcos
para cima e para baixo. Agora é só
barco a motor. Cortava madeira no machado,
agora com motossera. E tem também o
aumento da ingestão de sal e de açúcar.
Para a gente entender isso, temos que lembrar
da teoria do gene econômico, que diz
que populações que tem acesso
a alimentos de forma sazonal, ou seja, de
forma irregular ao longo do ano, com períodos
de fartura alternados com períodos
de escassez, como os povos indígenas,
tem metabolismo diferente. Estas pessoas teriam
em sua estrutura genética um ou mais
pares de genes que fazem com que os indivíduos
absorvam muito para poder armazenar nos períodos
de escassez. São os tais genes econômicos.
Agora, com a sedentarização
fazendo com que se gaste menos energia nas
atividades diárias, e a contínua
oferta de alimento, o cara fica obeso e pode
desenvolver diabetes. Esse problema atinge
os índios norte-americanos desde a
década de sessenta. Isso agora está
acontecendo no Brasil. No Xingu tivemos até
hoje dois casos de diabetes, ambos de mulheres
de grandes caciques. E os índios, por
terem o gene econômico, têm essa
tendência de desenvolver a obesidade
e diabetes. Estes problemas são ameaças
importantes, atuais, e a Funasa não
está nem pensando em tratar, o problema
deles é conseguir vacinar, controlar
a diarréia.
Bruno Weis.