28/07/2006
- Lideranças indígenas afirmam
em audiência na Procuradoria-geral da
República que suas comunidades não
vêm sendo consultadas sobre empreendimentos
econômicos que afetam suas terras. A
indignação pela omissão
do Estado diante das reivindicações
e dos efeitos dos projetos de infra-estrutura
sobre as comunidades deu o tom marcante da
audiência. A maior parte dos representantes
do governo federal presentes era de técnicos
sem poder de decisão, o que motivou
o protesto dos organizadores do encontro.
As populações
indígenas de todo o País querem
que os projetos de infra-estrutura que tenham
impacto direto ou indireto sobre suas terras
sejam suspensos até que elas sejam
ouvidas sobre o assunto. Foi este o recado
dado por cerca de 60 lideranças, de
34 etnias e 27 organizações
indígenas, reunidas ontem, quinta-feira,
dia 27 de julho, em uma audiência pública
na Procuradoria-geral da República,
em Brasília, para discutir o assunto.
Elas pediram também a lista de todas
as obras que afetam seus territórios,
a regulamentação do licenciamento
ambiental desses projetos e que daqui em diante
os povos indígenas sejam consultados
antes desse licenciamento, do início
das obras e mesmo da formulação
das políticas públicas para
o setor.
As lideranças afirmam
que as populações indígenas
não vêm sendo consultadas sobre
os projetos de infra-estrutura que afetam
seus territórios. A indignação
pela omissão do Estado diante das reivindicações
das comunidades e dos efeitos desses sobre
suas terras deu o tom do encontro. A polêmica
construção da Pequena Central
Hidrelétrica (PCH) de Paranatinga II,
no rio Kuluene, na região das cabeceiras
do Xingu, no Mato Grosso; a pavimentação
da rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163),
que liga o Mato Grosso ao Pará; a transposição
do rio São Francisco; os projetos das
hidrelétricas do rio Madeira, no Amazonas,
de Belo Monte, no Pará, e do Estreito,
em Tocantins; e a duplicação
da rodovia BR-101, no Rio Grande do Sul foram
destacados pelos índios como as principais
obras com fortes impactos sobre suas populações.
Segundo eles, muitas obras já estão
em andamento e as compensações
por seus impactos às comunidades continuam
sendo uma promessa. O agravamento de doenças
incomuns nas aldeias, mortes por contaminação
de agrotóxicos, prostituição,
a destruição de mananciais,
a diminuição de peixes e animais
de caça em vários pontos do
País também foram denunciados
como conseqüências dos empreendimentos
e do avanço da monocultura da soja
e do eucalipto sobre as Terras Indígenas.
“Em todo o Mato Grosso,
estão previstas 110 PCHs, seis delas
nas cabeceiras do Xingu. Projetos como estes
já tem causado a diminuição
de peixes em vários lugares porque
impedem a piracema (migração
rio acima para desova)”, advertiu Pablo Kamaiurá,
morador do Parque Indígena do Xingu.
Ele reconheceu que o País precisa de
mais eletricidade para atender o crescimento
da economia, mas insistiu que o Estado precisa
investir em estudos sobre o uso de formas
alternativas de energia, como a solar. Pablo
também contestou os supostos benefícios
dos projetos hidrelétricos previstos
pelo governo não só para os
índios, mas também para toda
a população brasileira. “Queremos
deixar claro que nossa luta é para
impedir a construção de qualquer
barragem em toda a região das nascentes
do rio Xingu, que é uma região
fundamental tanto para a segurança
alimentar quanto do ponto de vista cultural
e histórico para as populações
xinguanas”. A PCH Paranatinga II está
paralisada por uma decisão judicial
que determinou a anulação e
a federalização de seu licenciamento
ambiental (saiba mais).
Com exceção
de Luiz Felippe Kunz Júnior, diretor
de Licenciamento e Qualidade Ambiental do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama),
estiveram presentes ao evento funcionários
sem poder de decisão da Casa Civil,
da Fundação Nacional do Índio
(Funai), dos ministérios de Minas e
Energia, dos Transportes, da Integração
Nacional, do Meio Ambiente e da Justiça.
Vários deles procuraram minimizar ou
relativizar a responsabilidade de seus órgãos
diante do problema discutido na audiência.
Alguns alegaram falta de recursos, pessoal
e coordenação da política
indigenista nacional para justificar as deficiências
do Poder Público para enfrentar a questão.
A desatenção dada ao encontro
pelo governo federal foi motivo de protesto
da parte das lideranças indígenas.
“Hoje, percebemos claramente
a violação e o desrespeito aos
direitos indígenas e humanos. Várias
pessoas e vários órgãos
governamentais têm rasgado a Constituição
todos os dias”, criticou Jecinaldo Barbosa
Cabral Saterê-Mawé, coordenador-geral
da Coordenação das Organizações
Indígenas da Amazônia Brasileira
(Coiab). Ele lembrou que os licenciamentos
ambientais da maior parte dos projetos são
concedidos sem levar em conta os prejuízos
às comunidades indígenas. “Depois
das obras já concluídas, somos
chamados a participar de consultas que têm
apenas o objetivo de legitimar um fato consumado”.
Jecinaldo cobrou uma intervenção
firme da Casa Civil e do Ministério
Público Federal (MPF) para obrigar
o governo a apresentar a lista e fazer um
amplo diagnóstico de todos os empreendimentos
que impactem as Terras Indígenas.
Política fragmentada
O subprocurador Eugênio
Aragão, integrante da 6ª Câmara
do MPF (de Índios e Minorias), lembrou
que a política indigenista nacional
está hoje fragmentada em uma série
de programas fragmentados por diversos órgãos
e ministérios, o que também
impediria uma ação integrada
adequada para o tratamento do problema dos
impactos das obras de infra-estrutura. “Temos
de exigir uma política pública
unificada para o setor, com um órgão
executivo e um orçamento unificado
que possa incluir a opinião dos índios
na formulação das ações
do governo na área de infra-estrutura”,
defendeu. Aragão defendeu que a Funai
seja transformada na secretaria-executiva
do futuro Conselho Nacional de Política
Indigenista, cuja criação e
estrutura estão sendo discutidas entre
o governo e o movimento indígena. O
subprocurador comprometeu-se a centralizar
o trabalho de consolidar a lista com todos
os projetos de infra-estrutura que afetem
as TIs e cobrar o encaminhamento das reivindicações
dos índios.
“Temos insistido na necessidade
de criarmos um fórum adequado para
discutir o problema e concordamos que precisamos
aprofundar o reconhecimento dos direitos indígenas,
mas devo lembrar que o País precisa
ampliar sua capacidade de geração
de energia elétrica”, justificou Márcia
Camargo, coordenadora do Núcleo Estratégico
de Gestão Socioambiental do Ministério
de Minas e Energia. Ela lembrou também
que a legislação para o licenciamento
de obras localizadas fora das TIs, mas que
tenham impactos sobre elas, ainda precisa
ser regulamentada e que isso vem dificultando
a resolução do problema. “Estamos
conversando com o Ibama e a Funai para apresentar
uma proposta sobre o assunto”.
A audiência fez parte
da programação do Seminário
de Articulação Nacional do Movimento
Indígena, promovido pela Coiab e pela
Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil (APIB), de 25 a 29 de julho, em
Brasília, e foi intermediada pela 6ª
Câmara do MPF. O evento pretendeu fazer
uma análise sobre o impacto de grandes
empreendimentos econômicos nas Terras
Indígenas e discutir as normas e procedimentos
vigentes sobre o tema hoje, entre outros,
como educação e saúde
indígenas, articulação
do movimento indígena e controle social
da política indigenista brasileira.
Uma carta assinada pelos participantes da
audiência foi encaminhada aos representantes
do governo expressando a preocupação
dos povos indígenas com os projetos,
seus impactos sobre as Terras Indígenas
e a ausência de consultas. (leia o texto
na íntegra abaixo).
CARTA DOS POVOS INDIGENAS
AO GOVERNO BRASILEIRO
ALERTANDO SOBRE OS EMPREENDIMENTOS DE INFRA-ESTRUTURA
QUE IMPACTAM TERRAS INDÍGENAS
Nós, representantes
de Povos e Organizações Indígenas
de distintas regiões do país,
participantes do Seminário de Articulação
Nacional do Movimento Indígena; realizado
em Brasília no período de 25
a 29 de julho de 2006, no qual analisamos
os empreendimentos governamentais que impactam
Terras Indígenas, vimos por meio desta
carta apresentar ao Governo Brasileiro as
seguintes considerações e reivindicações:
Nos preocupa o aumento vertiginoso
de propostas de projetos de infra-estrutura,
desenvolvimento e integração
regional, principalmente de asfaltamento e
construção de estradas, hidrovias,
hidrelétricas e linhas de transmissão
que provocam impactos diretos e indiretos
na vida dos Povos Indígenas, causando
conflitos sócio-ambientais e maior
pressão sobre os recursos naturais
das Terras Indígenas.
Este quadro de impactos
é agravado pelo fato de a maioria destes
empreendimentos serem planejados e implementados
ignorando a presença dos Povos Indígenas,
e sem qualquer consulta previa e informada
a esses Povos e Comunidades Indígenas
afetadas, em desrespeito aos direitos indígenas
assegurados na Constituição
Federal e na Convenção 169,
da Organização Internacional
do Trabalho (OIT).
Lembramos que a Constituição
Federal estabelece que empreendimentos em
Terras Indígenas só poderão
ser efetivados se forem de relevante interesse
da União, previstos em Lei Complementar
e se tiverem autorização do
Congresso Nacional precedidos de audiência
pública com os Povos e comunidades
indígenas afetadas.
A Constituição
Federal garante aos Povos Indígenas
um tratamento diferenciado, portanto exigimos
urgentemente a regulamentação
de mecanismos específicos para o licenciamento
de empreendimentos que causem impacto em terras
indígenas.
Exigimos ainda que o Governo
Federal apresente imediatamente, para a Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
a relação de todos os empreendimentos
de infra-estrutura e desenvolvimento em planejamento
ou implementação que afetam
diretamente ou indiretamente todas as Terras
Indígenas do Brasil, bem como os procedimentos
que estão sendo adotados com vistas
a assegurar os direitos constitucionais e
originários dos Povos Indígenas.
Nós lideranças
indígenas não admitiremos a
continuidade desses processos de planejamento
e implementação de empreendimentos
e estamos unidos e prontos para reagir na
defesa de nossos direitos, nossa cultura e
nossos Territórios.
Brasília, 27 de julho
de 2006.
Oswaldo Braga de Souza.