04/09/2006
- Dentre as medidas do Plano Diretor de São
Gabriel da Cachoeira (AM), projeto de lei
que será encaminhado à Câmara
de Vereadores para votação,
está a descentralização
do planejamento municipal, o que possibilita
que as terras indígenas elaborem seus
próprios planos diretores regionais,
e a regulamentação em nível
municipal de dispositivos da Convenção
169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT).
Está na lei que municípios
com mais de 20.000 habitantes devem ter Planos
Diretores para organizar o crescimento urbano
e ordenar o território municipal de
acordo com as peculiaridades locais. Embora
se apliquem à totalidade do município,
os planos diretores sempre foram vistos como
instrumentos de ordenamento urbano, e normalmente
prestam pouca atenção ao desenvolvimento
das áreas rurais ou destinadas a outros
usos não urbanos, como o são
as terras indígenas e as unidades de
conservação.
Quando começaram
a ser elaborados nos imensos municípios
amazônicos, nos quais a área
urbana é uma pequena parte do território
e nem sempre abriga a maior parte da população,
percebeu-se que não se poderia pensar
e utilizar esse instrumento da mesma forma
que para os municípios do sul do país.
As prioridades deveriam ser repensadas, a
forma de planejar, modificada.
Foi diante desse desafio
que o município amazonense de São
Gabriel da Cachoeira, na região do
Alto Rio Negro, discutiu, durante mais de
um ano, como elaborar uma lei que ajudasse
a organizar e harmonizar o desenvolvimento
da totalidade de seu território, sem
que fossem desconsideradas as peculiaridades
étnicas e culturais de um município
que abriga mais de 23 povos indígenas
espalhados ao longo de seus mais de 109 mil
quilômetros quadrados.
Com a assessoria técnica e jurídica
do Instituto Pólis, que tem larga experiência
na elaboração de planos diretores
ao redor do país, e o acompanhamento
permanente de um conselho gestor formado por
representantes de todos os setores da sociedade
local, a prefeitura liderou o processo de
discussão e elaboração
pública da proposta. Seguindo a metodologia
proposta pelo Ministério das Cidades,
a minuta de projeto de lei foi submetida à
deliberação pública nos
dias 25 e 26 de agosto, quando foi realizado
o Congresso da Cidade, que reuniu secretarias
municipais, associações de moradores,
organizações indígenas
e ONGs com atuação no município.
A proposta aprovada tem
novidades interessantes. Uma delas é
a descentralização do planejamento
municipal, por meio da criação
de regiões administrativas que elaborarão
seus próprios planos diretores regionais,
o que abre a porta para a harmonização
entre o ordenamento territorial municipal
e a gestão das terras indígenas,
que correspondem a mais de 80% do território
de São Gabriel da Cachoeira. Se por
um lado os povos indígenas têm
o direito de gerir e usar suas terras de acordo
com seus próprios valores e prioridades,
por outro há cada vez mais necessidade
de oferta de serviços públicos,
para que os crescentes problemas de transporte
e saneamento, por exemplo, possam ser resolvidos.
Pela proposta aprovada,
o município será dividido em
seis regiões administrativas, sendo
uma delas referente à área da
sede municipal e as demais relativas às
bacias hidrográficas dos principais
rios da região, que por sua vez correspondem
a regiões culturais dos povos que há
séculos habitam a região (veja
mapa ao lado). Cada região contará
com um conselho de política territorial,
formado por representantes indicados pela
população residente, o qual,
dentre outras competências, deverá
coordenar a elaboração de um
plano diretor regional e dialogar com a prefeitura
para definir as prioridades de investimento
para aquela região.
Como os povos indígenas
da região, coordenados pela Federação
das Organizações Indígenas
do Rio Negro (Foirn), já deram início
ao macrozoneamento de suas terras, identificando
potencialidades para a exploração
sustentável dos recursos naturais e
definindo formas próprias de desenvolvimento
territorial, há uma base para a elaboração
dos planos diretores regionais. Estes planos
regionais deverão se preocupar também
com o crescimento e urbanização
de algumas comunidades indígenas, formas
de aprimorar o transporte público dentro
da região, dentre outras questões.
Outra novidade é
a criação de um fundo municipal
de desenvolvimento territorial, que será
gerido democraticamente e deverá viabilizar
o investimento em infra-estrutura de saneamento,
transportes e habitação de acordo
com as prioridades e peculiaridades de cada
região, estabelecidas nos respectivos
planos diretores regionais. Com a criação
desse fundo e a definição de
um plano claro de desenvolvimento territorial,
o município poderá acessar recursos
disponíveis no governo federal ou estadual
para implementar seu plano diretor.
Mas talvez a maior novidade
do projeto de lei aprovado seja a regulamentação,
em nível municipal, do direito de consulta
prévia previsto na Convenção
169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT). Esse tratado internacional,
ratificado pelo Brasil em 2003, dispõe
que qualquer plano, projeto ou política
governamental que afete os direitos coletivos
dos povos indígenas sobre suas terras,
recursos ou cultura só poderá
ser executado se houver um processo prévio
de consulta com os povos interessados.
Apesar de já estar
em vigor em nosso país, a Convenção
169 tem ainda pouca visibilidade e aplicação,
tanto pelo judiciário como pelos gestores
públicos. Por essa razão, ao
regulamentar o mecanismo de consulta prévia
em nível municipal, São Gabriel
da Cachoeira se torna o primeiro município
brasileiro a abrir portas para a integral
implementação da convenção
em território nacional.
A minuta do Plano Diretor
aprovada deverá passar por uma última
revisão, por parte da prefeitura, antes
de ser encaminhada para a Câmara Municipal,
que deverá votá-la até
outubro, data limite colocada pelo Estatuto
das Cidades para aprovação dos
planos diretores municipais. Leia aqui a minuta
do Projeto de Lei de São Gabriel da
Cachoeira.
Raul Silva Telles do Valle.