14/09/2006
- Em carta aberta, o premiado jornalista paraense
Lúcio Flávio Pinto, editor do
Jornal Pessoal, revela os bastidores de uma
decisão judicial que o condenou por
ter chamado, em artigo publicado no ano 2000,
o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida
de "pirata fundiário". Almeida
é conhecido por reivindicar a propriedade
de uma área de cerca de sete milhões
de hectares na região da Terra do Meio,
no Pará. O caso revela os descaminhos
da Justiça paraense no combate a uma
das mais graves ameaças à integridade
da Amazônia: a grilagem de terras.
Leia abaixo a carta aberta
do jornalista Lúcio Flávio Pinto.
Para saber mais sobre os conflitos socioambientais
na Terra do Meio, clique aqui, aqui, aqui,
aqui e aqui.
À opinião
pública
Chamar o maior grileiro
de terras do mundo de pirata fundiário
constitui ato ilícito no Pará,
obrigando quem utilizar a expressão
a indenizar o suposto ofendido por dano moral.
Com base nesse entendimento, a 3ª Câmara
Cível do Tribunal de Justiça
do Estado manteve a condenação
que me foi imposta no juízo singular.
No ano passado, o juiz Amílcar Guimarães,
exercendo interinamente a 4ª Vara Cível
do fórum de Belém (é
titular da 1ª Vara), acolheu a ação
de indenização contra mim proposta
pelo empresário Cecílio do Rego
Almeida e me condenou a pagar-lhe oito mil
reais, mais acréscimos, que resultarão
num valor bem maior.
Meu “crime” foi uma matéria
que escrevi no meu Jornal Pessoal, em 2000,
comentando reportagem de capa da revista Veja
de uma semana antes, que apontava o dono da
Construtora C. R. Almeida como “o maior grileiro
do mundo”. Com base em um título de
terra que ninguém jamais viu e todos
os órgãos públicos negam
que exista, o empresário se declarava
– e continua a se declarar – dono de uma área
que poderia chegar a sete milhões de
hectares no vale do rio Xingu, no Pará,
região conhecida como “Terra do Meio”,
na qual há a maior concentração
de mogno da Amazônia (o mogno é
o produto de maior valor da região).
Se formasse um Estado, esse megalatifúndio
constituiria o 21º maior Estado brasileiro.
C. R. Almeida propôs
a ação em São Paulo.
Mas como o foro era incompetente, a demanda
foi transferida para a comarca de Belém,
onde o Jornal Pessoal, uma newsletter quinzenal
independente que edito desde 1987, tem sua
sede. Durante mais de quatro anos a ação
foi instruída na 4ª Vara Cível.
A juíza responsável pelo processo,
Luzia do Socorro dos Santos, se ausentou temporariamente
para fazer um curso no Rio de Janeiro. O juiz
Amílcar Guimarães a substituiria
por apenas três dias, mas, de fato,
só assumiu a Vara no último
dia, 17 de junho do ano passado, uma sexta-feira.
Nesse dia ele pediu ao cartório que
os autos, com quase 400 páginas, lhe
fossem conclusos e os levou para sua casa.
Só os devolveu na terça-feira,
dia 21, quando a juíza substituta já
estava no exercício da Vara. Junto
com os autos veio a sua sentença condenatória,
datada de quatro dias antes, como se a tivesse
lavrado no último dia do seu exercício
legal na função.
Representei contra o magistrado,
mostrando que a sentença era ilegal,
que o processo não estava pronto para
ser sentenciado (estava pendente informação
da instância superior sobre um recurso
de agravo que formulei exatamente contra o
julgamento antecipado da lide, que o julgador
efetivo pretendia realizar), que os autos
sequer estavam numerados e que a sentença
revelava a tendenciosidade e o desequilíbrio
do sentenciante. A Corregedora Geral de Justiça
acolheu a representação, mas,
por maioria, o Conselho da Magistratura decidiu
não processar o juiz. Recorri em julho
dessa decisão, mas o embargo de declaração
ainda não foi apreciado.
No plano judicial, apelei
da condenação. A relatora do
recurso na 3ª Câmara Cível,
desembargadora Maria Rita Xavier, manteve
a condenação, apenas concedendo
uma redução no valor da indenização.
A revisora, desembargadora Sônia Parente,
pediu vistas. Na sessão de hoje ela
apresentou seu voto, discordando da posição
da relatora. Argumentou que a grilagem de
terras da C. R. Almeida no Xingu é
fato público e notório, comprovado
por diversas matérias jornalísticas
juntadas aos autos, além de pronunciamentos
unânimes de órgãos públicos
que se manifestaram oficialmente sobre a questão,
incluindo a Polícia Federal, o Ministério
Público Federal e a Justiça
Federal. Eu apenas aplicara ao autor da grilagem
uma expressão de uso corrente nas áreas
de confronto, conforme ela própria
pôde constatar quando atuou como juíza
numa dessas áreas, o município
de Paragominas.
A desembargadora-revisora
disse que a matéria do Jornal Pessoal
estava resguardada pela liberdade de expressão
e de imprensa, tuteladas pela Constituição
Federal em vigor. O texto jornalístico
expressava uma situação conhecida
e lamentada pelos que se preocupam com o futuro
da Amazônia, assolada por agressões
como a devastação da natureza,
a apropriação ilícita
do seu patrimônio e até mesmo
o trabalho escravo. Muito emocionada ao ler
esse trecho do seu voto, a desembargadora
disse que Castro Alves, se voltasse agora,
encontraria um novo navio negreiro nos caminhões
que trafegam pelas estradas amazônicas
carregando trabalhadores como escravos. E
manifestaria sua indignação
da mesma maneira que eu, ao escrever no Jornal
Pessoal.
Ela salientou que a expressão
em si, de “pirata fundiário”, é
apenas um detalhe e irrelevante, porque ela
foi aplicada a um fato real e grave, noticiado
em vários outros jornais. “Por que
só este jornal de pequena circulação,
que se edita aqui entre nós, é
punido?”, indagou.
Suas judiciosas observações,
porém, não tiveram eco. A desembargadora
Luzia Nadja Nascimento, esposa de Manoel Santino
Nascimento, que deixou a chefia do Ministério
Público do Estado para ser secretário
de segurança do governo, sem maiores
considerações, apresentou logo
seu voto, acompanhando a relatora. Nem permitiu
que o presidente da sessão, desembargador
Geraldo Corrêa Lima, apresentasse as
observações que pretendia fazer.
Sua decisão já estava tomada.
Como havia apenas as três
desembargadoras no momento em que a votação
foi iniciada, em maio, os dois outros desembargadores
que se encontravam na sessão de hoje
da 3ª Câmara Cível não
puderam votar. Por 2 a 1, minha condenação
foi mantida. Agora me resta apresentar o recurso
que poderá provocar a reapreciação
da questão junto ao Superior Tribunal
de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal,
em Brasília.
Esse entendimento, de que
é ato ilícito aplicar a expressão
“pirata” àquele que é proclamado
“o maior grileiro do mundo”, é exclusivo
da justiça do Pará. Cecílio
do Rego Almeida também processou a
revista Veja, seu repórter, um procurador
público do Estado do Pará e
um vereador de Altamira pelo mesmo motivo,
mas todos foram absolvidos pela justiça
de São Paulo. Ao invés de condená-los,
como aqui se fez comigo, o juiz Gustavo Santini
Teodoro, da 23ª Vara Cível, elogiou-os
por defender o interesse público. Justamente
no Estado que sofre a apropriação
indébita do seu patrimônio fundiário,
com a mais escandalosa fraude de terras, a
grilagem é protegida e quem denuncia
o grileiro é punido.
Lúcio Flávio Pinto