06/10/2006
- Localizada no centro do Pará, a Terra
do Meio é uma das regiões mais
importantes para conservação
da sociobiodiversidade da Amazônia,
mas também o palco de um dos maiores
conflitos fundiários no Brasil. Seu
destino pode servir para avaliar a real capacidade
do Poder Públido para desenvolver e
proteger a floresta amazônica. A partir
de hoje, o ISA publica um conjunto de reportagens
especiais e artigos que pretende apontar alguns
dos principais problemas socioambientais da
região. O leitor irá encontrar
fotos, mapas, tabelas e informações
sobre o processo de ocupação
da área, a atuação dos
principais grupos econômicos locais,
as ações ambientais do governo
e suas fragilidades, os problemas enfrentados
pelas populações tradicionais,
as Unidades de Conservação de
conservação criadas recentemente,
entre outros. Confira também as NSAs
já elaboradas sobre o assunto.
O Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) confirma a intenção
de criar, até o fim do ano, a Reserva
Extrativista (Resex) do Médio Xingu
e o governo paraense promete decretar, dentro
do mesmo prazo, a Floresta Estadual do Iriri
e a Área de Proteção
Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, todas na
Terra do Meio, no centro do Pará. As
três Unidades de Conservação
(UCs) poderão somar-se a outras cinco
já existentes, além de duas
Terras Indígenas (TIs), que cobrirão,
assim, a totalidade dos 7,9 milhões
de hectares da região. A Terra do Meio
é assim denominada por situar-se entre
o rio Xingu e seu afluente Iriri, abrangendo
ainda trechos dos municípios de Altamira
e São Félix do Xingu em meio
a oito TIs.
A região é
reconhecida por pesquisadores, organizações
da sociedade civil e, ao menos no discurso,
pelo governo como uma das mais importantes
para a conservação da sociobiodiversidade
da floresta amazônica, com uma riqueza
biológica e genética ainda pouco
conhecida. Lá habitam mais de 200 famílias
de ribeirinhos abandonadas pelo Poder Público,
mas fundamentais para a manutenção
dos ecossistemas locais e detentoras de um
conjunto de conhecimentos tradicionais de
valor igualmente inestimável.
A Terra do Meio tem mais
de 90% de seu território ainda bem
conservados, mas sofre com o avanço
da fronteira agrícola e um intenso
conflito fundiário que envolve desde
as comunidades locais e fazendeiros até
poderosos grupos econômicos nacionais.
A área é alvo de grileiros,
pistoleiros, garimpos e madeireiras ilegais
por causa de seus imensos estoques de madeiras-de-lei,
minérios, terras públicas e
devolutas.
As duas maiores UCs da região
– a Estação Ecológica
(Esec) da Terra do Meio, com 3,3 milhões
de hectares, e o Parque Nacional (Parna) da
Serra do Pardo, com 445 mil hectares – foram
decretadas, em 17 de fevereiro de 2005, como
parte de um grande pacote ambiental que serviu
como resposta do governo federal à
série de assassinatos de trabalhadores
rurais e líderes do movimento social
do Pará, principalmente à morte
da freira estadunidense Dorothy Stang, ocorrida
alguns dias antes (confira abaixo), em Anapu,
700 quilômetros a sudoeste de Belém.
As medidas em reação
ao crime também incluíram operações
de fiscalização do Ibama e ações
de regularização fundiária
do Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra), entre outros.
Muitas das ações já estavam
previstas no Plano de Ação para
Prevenção e Controle do Desmatamento
na Amazônia, lançado pelo governo
federal, em março de 2005, mas foram
antecipadas por causa das mortes. Em novembro
de 2004, já havia sido criada a Resex
do Riozinho do Anfrísio, com 736 mil
hectares. Em junho de 2006, foi instituída
a Resex do Iriri, com 398,9 mil hectares.
Criação
de áreas protegidas contra a devastação
A movimentação
dos órgãos do Estado brasileiro
e a oficialização das áreas
protegidas causaram grande repercussão
nos municípios ao redor da Terra do
Meio. A instalação do Ministério
Público Federal (MPF), da Justiça
Federal e de uma das bases operativas definidas
pelo plano de combate ao desmatamento, em
Altamira, por exemplo, inibiram a prática
do desmatamento ilegal, da grilagem e da violência
cometida contra ribeirinhos. Os grandes, médios
e pequenos criminosos que impunham uma ordem
paralela ao Estado na região – exatamente
como acontece em muitas favelas de grandes
cidades do País – assustaram-se com
as notícias sobre a repressão.
O resultado é que houve uma queda no
desmatamento no período imediatamente
posterior às ações do
governo. Segundo dados do ISA, isso só
não teria acontecido na Resex do Riozinho
do Anfrísio.
Apesar da presença
relativa do Poder Público depois do
assassinato de Dorothy Stang, a região
continua pressionada pela demanda por madeira
e novas terras vindas das cidades ao seu redor.
São Félix do Xingu, município
mais próximo por via terrestre, deve
ser pelo quinto ano consecutivo o campeão
do desmatamento da Amazônia. Integrantes
dos movimentos sociais levantam indícios
de que a devastação já
voltou à Terra do Meio depois do impacto
inicial causado pelas medidas oficiais. Segundo
o Greenpeace, que sobrevoou há pouco
tempo a região, continuam ocorrendo
queimadas, extração ilegal de
madeira, movimentação de caminhões
e tratores. Dados do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe) também confirmam
um número razoável de focos
de calor, nos últimos meses, na Esec
e no Parna, UCs de proteção
integral onde são proibidas queimadas.
Os dados de desmatamento
sobre o Pará como um todo também
reforçam os indícios de que
a situação na Terra do Meio
talvez não seja tão boa. Números
ainda não consolidados do Sistema de
Detecção de Desmatamento em
Tempo Real (Deter) dão conta de que
o Estado apresentou um aumento de até
50% na taxa de desflorestamento, entre os
períodos 2004-2005 e 2005-2006, e foi
recordista em focos de calor. Em agosto, foram
registrados 33,1 mil focos, (mais de 30% do
total na Amazônia), sendo 1.801 em UCs
e 1.925 em TIs.
Implementação das UCs
é demorada
O governo federal admite
que tem dado mais prioridade à formalização
de UCs do que à sua implementação
- o que pode abrir espaço ao desmatamento.
Em 2006, o Programa Áreas Protegidas
da Amazônia (Arpa) disponibilizou mais
de R$ 2,3 milhões para a Esec, o Parna
e as duas Resex já criadas. Até
setembro, foram gastos pouco mais de R$ 130
mil, apenas 5,6% do total. Segundo o Ibama,
por falta de pessoal capacitado e pela demora
dos trâmites no serviço público
para compra de equipamentos e contratação
de serviços. Apenas três funcionários
da gerência-executiva do órgão
ambiental em Altamira foram destacados para
cuidar exclusivamente dos 4,9 millhões
de hectares das quatro UCs, território
maior que o do Espírito Santo.
“Acho um absurdo que ainda
não tenhamos uma equipe operando lá
[na Esec e no Parna]. A pressão é
grande para que se faça”, assegura
o secretário de Biodiversidade e Florestas
do Ministério do Meio Ambiente (MMA),
João Paulo Capobianco. Apesar da situação,
ele garante que a região continua sendo
uma prioridade nos planos do governo federal.
“Mas lá as UCs pelo menos têm
recursos. Tem UC que nem tem recursos”. Capobianco
confirma que várias áreas protegidas
atravessam uma “fase de transição
difícil” por causa dos processos burocráticos
complicados para formação e
nomeação dos funcionários
responsáveis por elas.
O mosaico da Terra
do Meio
As UCs da Terra do Meio
foram propostas em um estudo realizado, em
2002, pelo Instituto Socioambiental (ISA)
sob encomenda do MMA. O mesmo trabalho apontou
a necessidade de englobá-las em um
mosaico. Esta figura jurídica está
prevista pelo Sistema Nacional de Unidades
de Conservação (SNUC, Lei nº
9.985/00) e é reconhecida como instrumento
de vanguarda na conservação
da biodiversidade, mas ainda não devidamente
testado no País. As áreas protegidas
de um mosaico são geridas de forma
compartilhada, com participação
não apenas do órgão público
responsável, mas também da sociedade
civil organizada e de comunidades locais.
Isso implica melhor aproveitamento dos recursos
e dos funcionários de cada uma das
UCs a partir de um planejamento estratégico
integrado para sua proteção,
monitoramento e uso do conjunto.
Apesar da previsão
legal, até hoje apenas dois mosaicos
foram formalmente instituídos no Brasil.
O governo federal não regulamentou
sua aplicação nem foi capaz
de formular uma política estruturada
para estimulá-la. O mosaico de áreas
protegidas da Terra do Meio permanece sendo
uma promessa enquanto algumas de suas UCs
continuam no papel e outras nem mesmo foram
inscritas na letra da Lei. É bom lembrar
que essas UCs têm destinações
diferentes – algumas são de uso sustentável
e outras de proteção integral,
o que complica ainda mais sua administração.
Por tudo isso a Terra do
Meio é um desafio à capacidade
do Estado brasileiro de formular, coordenar
e implantar políticas socioambientais
e de ordenamento territorial. O destino da
região pode ser uma boa pista para
saber se o Poder Público será
capaz, nos próximos anos, de proteger
Amazônia e colocar em prática
uma alternativa sustentável ao modelo
de desenvolvimento predatório que nela
impera hoje.
Um corredor de biodiversidade
de 28 milhões de hectares
A proteção
da Terra do Meio poderá significar
também a formação de
um outro grande conjunto de 19 TIs e dez UCs
contíguas, ao longo da Bacia do Rio
Xingu, desde o nordeste do Mato Grosso até
o centro do Pará, com um total de 28
milhões de hectares - o equivalente
ao território do Equador - e uma população
de mais de 12 mil pessoas, entre não-indígenas
e 25 etnias indígenas. Trata-se de
um dos maiores corredores de biodiversidade
do mundo e o segundo maior do Brasil, ainda
mais importante para a conservação
por se tratar de uma ligação
entre os dois maiores biomas nacionais – a
Amazônia e o Cerrado – fundamental para
a manutenção das populações
de várias espécies, algumas
endêmicas (confira artigo de Márcio
Santilli sobre o tema).
Os corredores ecológicos também
estão previstos pelo SNUC, mas igualmente
carecem de regulamentação. As
experiências com este tipo de zona de
amortecimento ambiental também são
muito poucas no País, não existem
recursos e diretrizes governamentais consistentes
para estimular a sua implantação.
Por sua vez, as TIs são reconhecidas
há algum tempo como essenciais à
preservação da biodiversidade,
o que foi reforçado no Plano Nacional
de Áreas Protegidas lançado
recentemente pelo governo federal.
A formação
de um território legalmente protegido
na Bacia do Rio Xingu com essa extensão
e importância, portanto, amplia o desafio
representado pela Terra do Meio. A pergunta
que se coloca mais uma vez é: o Poder
Público terá condições
de gerir e resguardar um conjunto tão
grande de áreas com diferentes destinações
e órgãos responsáveis
(Ibama e Fundação Nacional do
Índio-Funai), levando em conta o quadro
de restrições orçamentárias
e de desarticulação político-administrativa
já tradicionanal ao longo de sucessivos
governos?
O assassinato de
Dorothy Stang
No início da manhã
de 12 de fevereiro de 2005, a freira estadunidense
naturalizada brasileira Doroty Stang, 73 anos,
andava por uma estrada do Projeto de Desenvolvimento
Sustentável (PDS) Esperança,
do Incra, a cerca de 45 quilômetros
da sede urbana de Anapu (PA), para visitar
uma comunidade de agricultores próxima.
A missionária foi abordada por dois
homens que lhe perguntaram se estava armada.
Ela teria respondido que sim e apontado uma
bíblia, segundo uma testemunha. Depois,
leu alguns trechos do livro. Em seguida, foi
assassinada com sete tiros.
Irmã Dorothy, como
era conhecida, vinha sendo ameaçada
de morte por denunciar a ação
ilegal de grileiros de terras, fazendeiros
e madeireiros contra trabalhadores rurais
e assentados na região da rodovia Transamazônica
(BR-320). A religiosa era integrante da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) e trabalhava na Amazônia
desde os anos 1970, defendendo a reforma agrária
e a floresta. Órgãos dos governos
federal e paraense foram alertados das ameaças
pelo menos um ano antes do crime.
Na semana seguinte, mais
sete pessoas, entre trabalhadores rurais e
líderes do movimento social, foram
assassinadas no interior do Pará. O
assassinato repercutiu dentro e fora do País,
reforçou a imagem de que a Amazônia
seria uma terra sem lei e resultou em desgaste
político à administração
federal. A ministra do Meio Ambiente, Marina
Silva, o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva e outras autoridades insistiram que
a violência era uma reação
às medidas governamentais de regularização
fundiária e proteção
ambiental. Do início do mandato de
Luiz Inácio Lula da Silva até
o crime contra Dorothy, cerca de 50 pequenos
agricultores e ativistas sociais foram assassinados
no Pará.
No dia 17 de fevereiro de
2005, Marina Silva anunciou a oficialização
de 5,2 milhões de hectares em áreas
protegidas em toda a Amazônia – 3,7
milhões na Terra do Meio – e o envio
do Exército e da Polícia Federal
à região da rodovia Transamazônica.
Também foram interditados para estudos
8,2 milhões de hectares na área
de influência da rodovia Cuiabá-Santarém
(BR-163), no Pará, e encaminhado ao
Congresso Nacional o Projeto de Lei de Gestão
de Florestas Públicas. A intenção
do governo seria garantir manutenção
da “ordem pública e do Estado de Direito
no Pará”.
Oswaldo Braga de Souza.