11/10/2006
- A Aeronáutica planejava implodir
uma formação rochosa considerada
sagrada pelos povos indígenas de Iauaretê,
distrito de São Gabriel da Cachoeira
(AM), para executar a ampliação
da pista de pouso na localidade. Após
mobilização de lideranças
indígenas, contudo, os planos militares
foram revistos e a obra deve ser feita sem
ameaçar o patrimônio cultural
indígena da região.
Os índios que vivem
em Iauaretê, uma quase-cidade formada
por dez comunidades indígenas às
margens do alto Uaupés, na linha da
fronteira Brasil-Colômbia, no Alto Rio
Negro (AM), foram surpreendidos em setembro
passado por duas ações contraditórias
do Estado brasileiro. Ao mesmo tempo em que
receberam do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), ligado ao Ministério da Cultura,
o anúncio do registro da “Cachoeira
de Iauaretê” como patrimônio cultural
imaterial brasileiro, tiveram a confirmação
de que a Aeronáutica, por meio da Comissão
de Aeroportos da Amazônia (Comara),
planejava dinamitar uma afloração
rochosa de importância cultural equivalente.
Aprovado no começo
de agosto pelo Iphan, o registro da Cachoeira
de Iauaretê marca um importante avanço
no processo de revitalização
cultural promovido por lideranças indígenas
da região, que inclui também
a reconstrução de malocas, a
retomada de práticas rituais nas comunidades
e a implementação de escolas
indígenas, entre outras iniciativas.
Saiba mais sobre o assunto aqui.
Em visita a Iauaretê,
em setembro passado, para informar a população
local sobre a aprovação do registro
e discutir as ações a serem
empreendidas a partir de 2007 na área,
os técnicos do Iphan e do ISA souberam
da preocupação corrente entre
os moradores do povoado sobre o andamento
das obras da Comara. Planejava-se a implosão
por dinamites da Serra do Bem-Te-Vi, um grande
afloramento rochoso situado fora da área
delimitada para a Aeronáutica, e que
seria transformado em pedra britada para o
aumento planejado da pista de pouso. O problema
é que essa serra é, do ponto
de vista indígena, a morada espiritual
do ancestral dos principais clãs tariano,
Kamewa Perisi, e boa parte da população
de Iauaretê estava apreensiva, pois
entendia que a implosão desse lugar
traria ao povoado uma série de doenças,
como febres e diarréias.
Mediações
Nessa mesma ocasião,
o Iphan foi informado por um oficial local
da Comara de que qualquer alteração
nos planos passaria agora por uma decisão
superior, envolvendo o comando da Aeronáutica
e até o Ministério da Defesa.
Isso porque uma estrada de cerca de dois quilômetros
até a serra já havia sido aberta.
Acompanhados de alguns professores tariano,
os técnicos do Iphan e do ISA percorreram
a estrada até a serra, tomando suas
coordenadas geografias e constatando que o
lugar ultrapassa em cerca de um quilômetro
a área negociada em 2004 entre a Comara
e os índios de Iauaretê.
Com essas informações,
alguns professores tariano, apoiados pelos
técnicos do ISA e do Iphan e respaldados
pela Coordenação das Organizações
Indígenas do Distrito de Iauaretê
(Coidi), endereçaram ao presidente
do Iphan, Luís Fernando de Almeida,
um ofício solicitando intervenção
junto aos órgãos militares.
A carta apontava que a preservação
da serra, o registro das histórias
a ela relacionadas e sua inclusão em
um mapa mais amplo dos lugares de referência
cultural dos Tariano é, agora, parte
das ações de salvaguarda vinculadas
ao registro da Cachoeira de Iauaretê.
O problema é que
o registro da Cachoeira de Iauaretê
não possui um status legal equivalente
ao de um tombamento, e não abarca todos
os lugares sagrados tariano. A defesa de sua
integridade passaria, assim, pelo fato de
que se trata de um lugar de relevância
cultural situado no interior de uma área
indígena homologada por decreto presidencial.
Além do mais, sua utilização
para a produção de material
de construção, de acordo com
vários moradores de Iauaretê,
não chegou a ser suficientemente discutida
com todos os grupos que se sentem diretamente
afetados por sua destruição.
Apesar de seu súbito envolvimento na
questão, o Iphan tratou de levar o
caso ao Ministro da Defesa, Waldir Pires que,
por sua vez, notificou o comando da Aeronáutica
e a presidência da Comara a respeito
destes fatos.
A reivindicação
indígena surtiu efeito. No começo
de outubro a Comara anunciou o cancelamento
imediato das obras na Serra do Bem-Te-Vi.
Afirmou também que avaliaria outras
opções para finalizar a obra
e que outras alternativas passariam a ser
negociadas com as comunidades de Iauaretê
e com o acompanhamento do Iphan e da Coidi.
É muito provável que a produção
de material de construção da
pista venha a afetar algumas comunidades,
para as quais deverão ser oferecidas
compensações ou benfeitorias.
E o saneamento básico?
É importante lembrar
que quando a Aeronáutica chegou a Iauaretê,
em setembro de 2004, para negociar espaço
para a ampliação da pista e
implantação de um radar do Sistema
de Vigilância da Amazônia (Sivam)
no local, informou aos índios que “uma
cidade com capacidade de receber aeronaves
de médio e grande porte tem muito mais
chances de se desenvolver”. Com o aumento
da pista, diziam ainda os oficiais presentes,
“Iauaretê poderá participar muito
mais ativamente do desenvolvimento da Amazônia”.
Essa argumentação
merece um comentário final: sendo o
valor total da obra de quase R$ 30 milhões,
quanto custaria implantar um sistema básico
de saneamento para os cerca de 3.000 moradores
de Iauaretê? Talvez investir nesse serviço
básico fosse uma medida justa, já
que nessa pequena cidade que está a
se formar na fronteira do Brasil com a Colômbia
seus moradores indígenas concordaram
em ceder uma enorme área existente
bem ao lado de suas casas em prol da “segurança
nacional”. A implantação do
sistema de saneamento seria, afinal, o desenvolvimento
chegando de fato, junto com as grandes aeronaves
e radares.
O povo e as origens
de Iauaretê
O povoado de Iauaretê
está situado no município de
São Gabriel da Cachoeira (AM), fica
dentro da Terra Indígena Alto Rio Negro,
no extremo noroeste da Amazônia brasileira.
A localidade é o ponto onde o rio Uaupés
adentra o território brasileiro, após
percorrer uma extensa zona desde suas nascentes
na Colômbia e delimitar por largo trecho
a fronteira entre os dois países. Seu
nome, como o de várias outras dessa
região de fronteira, é definido
nas inúmeras narrativas míticas
até hoje guardadas pela memória
social dos povos indígenas da área.
Iauaretê é a cachoeira das onças,
local onde em um passado remoto viveu uma
gente-onça, propensa à guerra
e ao canibalismo, e cujo extermínio
coube aos irmãos Diroá, personagens-deuses
dos mitos indígenas, que legariam aos
homens de hoje vários rituais e conhecimentos
xamânicos.
Iauaretê foi também
uma povoação de grande importância
durante a história mais recente de
colonização da região.
Situada no ponto de confluência dos
rios Uaupés e Papuri, sub-regiões
densamente povoadas pelos índios Tariano,
Tukano, Pira-Tapuia, Wanano, Arapasso, Tuyuka
e outros, serviu como ponto de referência
para inúmeros viajantes que percorreram
a área desde o final do século
XVIII, para seringueiros e comerciantes que
exploravam a mão-de-obra indígena
e, finalmente, como base para os missionários
salesianos que em 1930 implantaram ali uma
grande missão dedicada à catequese
dos índios. Em cinco décadas
de funcionamento, seus internatos receberam
centenas de alunos indígenas. No final
dos anos 1980, foram construídos em
Iauaretê um pelotão do Exército
e uma pista de pouso, no âmbito de um
programa de defesa e colonização
da fronteira norte-amazônica, o chamado
Projeto Calha Norte. A população
local hoje é de cerca de 3000 pessoas,
e o aspecto do lugar é o de uma pequena
cidade, com energia elétrica, telefonia,
televisão, colégios e comércio.
Essas mudanças no
cenário e o novo estilo de vida que
os índios passaram a adotar é
o motivo pelo qual, em 2004, algumas das lideranças
locais solicitaram ao Iphan o registro da
Cachoeira de Iauaretê como patrimônio
imaterial no Livro de Lugares, no contexto
do Decreto 3551/2000 (que dispõe sobre
o registro e cria o Programa Nacional de Patrimônio
Imaterial). Atendo à solicitação
dessas lideranças, o Iphan desenvolveu
entre 2004 e 2005 extenso trabalho de documentação
da cachoeira, produzindo um dossiê sobre
os significados culturais do lugar e de seus
diversos acidentes geográficos – rochas,
pedrais, canais e ilhas que cristalizam os
feitos dos seres criadores do começo
dos tempos. Em agosto de 2006, o Conselho
Consultivo do órgão federal
aprovou o pedido de registro, baseando-se
na documentação técnica
produzida por técnicos do órgão
e do ISA. A Cachoeira de Iauaretê é,
agora, o primeiro bem cultural que figura
do recém-aberto Livro dos Lugares,
ato de reconhecimento pelo Estado que implica
no desenvolvimento de outras ações
de salvaguarda visando à conservação
desse patrimônio cultural.
Geraldo Andrello.