11/10/2006
- Como se não bastasse a confusão
e os conflitos criados pela grilagem, o governo
nunca desenvolveu na região qualquer
política pública de ordenamento
territorial. A criação de UCs
e decisões recentes da Justiça,
porém, abrem caminho para legalização
fundiária. Este é o tema da
quarta reportagem do Especial que o ISA publica
sobre a Terra do Meio, no Pará.
A existência de uma
imensa faixa de terras devolutas ou públicas
sobre as quais o Estado sempre teve um domínio
apenas teórico transformou a Terra
do Meio (PA), nos últimos 20 anos,
em um grande palco do comércio imobiliário
ilegal nas mãos de atravessadores especializados.
O esquema que associa desmatamento ilegal
e grilagem de terras penetrou na região
com muita força quando os antigos seringalistas,
e mesmo vários ribeirinhos que migraram
em busca de melhores condições
de vida, começaram a vender o direito
do uso de suas terras, no final dos anos 1980.
Várias dessas áreas passaram
a ser desmatadas por madeireiras ilegais como
uma forma de comprovar sua posse, critério
usado pelos órgãos fundiários
para a legalização da terra
por vários anos (confira artigo de
Tarcísio Feitosa sobre a Terra do Meio).
A partir daí, um
leque variado de todo o tipo de ilícitos
imobiliários passou a ser usado para
transformar simples documentos de posse, contratos
de arrendamento ou de concessão de
uso de áreas de alguns poucos hectares
em títulos de propriedade, válidos
na aparência, de latifúndios
gigantescos, alguns do tamanho de países
da Europa. Registros sem títulos de
domínio ou sem comprovação
de registros anteriores; duplicação
de matrículas com novas matrículas
ou com matrícula da mesma terra em
comarcas diferentes; registros efetuados com
base em sentenças de partilhas de bens,
sem prova de domínio ou sem matrícula
anterior estão entre os vários
expedientes usados pelos grileiros na Terra
do Meio.
Como se não bastasse
a confusão e os conflitos criados pelas
fraudes, o governo nunca desenvolveu na região
qualquer política pública de
ordenamento territorial. Muitas vezes, a falta
de organização dos arquivos
do Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra) e do Instituto
de Terras do Pará (Iterpa) não
permite nem mesmo definir com certeza o status
de certas áreas. Em muitas delas, os
processos de titulação estão
inacabados ou as informações
sobre eles se perderam. O verdadeiro caos
fundiário da Terra do Meio inclui desde
áreas sobrepostas, com dupla titulação,
passando por terras com procedimentos de titulação
duvidosos, com domínio ou limites indefinidos
ou desconhecidos, até aquelas em litígio
– sendo que muitas delas combinam mais de
um desses situações.
Nova perspectiva
A criação
recente de algumas Unidades de Conservação
(UCs), no entanto, abriu uma nova perspectiva
para o enfrentamento da questão. Os
decretos de criação das UCs
obrigam o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) a fazer o mapeamento detalhado das
posses existentes no interior das áreas,
desapropriar as terras que tenham títulos
válidos e indenizar as benfeitorias
construídas de boa fé.
“O grande desafio na Terra
do Meio é conseguir articular as ações
dos diferentes órgãos fundiários”,
avalia Boris Alexandre César, coordenador
de Regularização Fundiária
da Diretoria de Ecossistemas do Ibama. Ele
argumenta que o processo de regularização
das UCs ainda é lento tanto pela falta
de pessoal capacitado no Ibama como pela complexidade
do problema, incluindo a necessidade de negociar
a retirada de moradores com ocupação
tradicional nas áreas de proteção
integral. O mapeamento das posses da Estação
Ecológica (Esec) da Terra do Meio e
do Parque Nacional (Parna) da Serra do Pardo,
sob responsabilidade da Direc, mal foi iniciado,
mais de um ano e meio depois de sua decretação
(confira). Nas Reservas Extrativistas (Resex)
do Riozinho do Anfrísio e do Iriri,
o processo de regularização
deve durar ainda pelo menos dois anos (saiba
mais). Os ribeirinhos que moram nestas áreas
de uso sustentável podem continuar
em suas terras por um contrato de concessão
de uso.
“A regularização
fundiária da Terra do Meio é
um dos principais obstáculos à
implementação efetiva de suas
unidades de conservação”, analisa
Cristina Velásquez, assessora do Programa
Xingu do Instituto Sociambiental (ISA). Ela
conta que ainda há lacunas e imprecisões
na regulamentação das UCs, sobretudo
no que diz respeito às Resex e Reservas
de Desenvolvimento Sustentável (RDS).
Cristina avalia que a legislação
ainda não tem instrumentos capazes
de lidar com situações complexas
como as que se apresentam na região.
“Avançar neste aspecto também
é imprescindível.”
Os conflitos fundiários
são os principais responsáveis
por ameaças e violências cometidos
por grileiros contra ribeirinhos, incluindo
a expulsão de suas terras e assassinatos.
Nas duas últimas décadas, ocorreram
cerca de 500 assassinatos relacionados a conflitos
de terra no Pará. Segundo a Comissão
Pastoral da Terra (CPT), apenas em São
Félix do Xingu, no sudeste da Terra
do Meio, 31 trabalhadores rurais foram assassinados
e nenhuma investigação foi finalizada.
Decisões
Recentes decisões
da Justiça no Pará também
reforçaram o caminho aberto para a
legalização das terras na região.
No dia 30 de junho, o juiz federal de Altamira
Herculano Martins Nacif concedeu uma liminar,
pedida em Ação Civil Pública
pelo MPF, determinando a indisponibilidade
da área de mais de 1,12 milhão
de hectares às margens do rio Xingu
que a Amazônia Projetos Ecológicos
Ltda., subsidiária do conglomerado
empresarial CR Almeida, reivindica como sua.
Nacif determinou ainda a saída dos
funcionários da firma do local e proibiu
o pagamento de indenização por
desapropriação da terra pelo
Ibama. No mérito, a ação
pede cancelamento de matrícula, registro
e averbações existentes sobre
a fazenda. As terras sobrepõem-se à
Resex do Iriri, à Esec e ao Parna,
além de cobrir integralmente a área
prevista para a Resex do Médio Xingu.
O Iterpa também move ações
judiciais contra a Amazônia Projetos
Ecológicos e, assim como o MPF, alega
que os documentos da terra são fraudados.
Em sua decisão, o
juiz explica que grilagem na Terra do Meio
"evoluiu para um sofisticado esquema
que conta com a participação
de funcionários públicos, órgãos
governamentais, laranjas e outras pessoas
mal intencionadas, que levam a cabo verdadeiros
devaneios técnicos que tendem a servir
de respaldo para esquentar os documentos fraudulentos".
Nacif comenta que a situação
denunciada pelo MPF "aparentemente representa
não um caso isolado, mas uma prática
corriqueira perpetrada por empresas de envergadura,
por vezes, internacional, sendo sempre utilizadas
como fachada para práticas delituosas,
buscando-se com isso a impunidade".
O procurador federal em
Altamira e autor da ação, Marco
Antônio Delfino, lembra que área
foi formada a partir da união de cinco
seringais arrendados pelo Poder Público
a particulares no auge da economia da borracha.
Mais tarde, eles foram transformados em posses,
registrados e georreferenciados ilegalmente
com a ajuda de funcionários do cartório
de Altamira, que ficou sob intervenção
da justiça estadual durante anos até
ser fechado definitivamente, em abril, por
causa dos casos notórios de fraude.
Fraude generalizada
Mas a decisão da
Justiça Federal não é
a única que ameaça o esquema
local de grilagem. No dia 23 de junho, a desembargadora
Osmarina Onadir Sampaio Nery, corregedora
de justiça das comarcas do interior
do Pará, determinou o bloqueio das
matrículas de todos os imóveis
rurais do estado com mais de 2,5 mil hectares.
As pessoas que se dizem donas das terras deverão
apresentar a sua documentação
ao Iterpa para provar sua validade. A medida
foi tomada para enfrentar situação
de fraude imobiliária generalizada
no estado. Osmarina lembra que a Constituição
Federal, através dos anos, sempre definiu
limites para os tamanhos das áreas
que poderiam ser transferidas a particulares
na Amazônia e eles foram sistematicamente
desrespeitados.
A deliberação
põe em risco os planos da CR Almeida
para outro latifúndio gigantesco na
Terra do Meio, com nada menos que 4,7 milhões
de hectares sobrepostos às Resex do
Riozinho do Anfrísio e do Iriri, à
toda extensão da Floresta Nacional
de Altamira, a dois assentamentos do Incra,
à área prevista para a Floresta
Estadual do Iriri e às TIs Xypaia,
Curuaya e Baú. A “Ceciliolândia”,
como já foi apelidada, equivale a duas
vezes o território da Bélgica.
O Iterpa e o MPF têm ações
judiciais, inclusive para apurar responsabilidade
criminal, contra a Indústria, Comércio,
Exportação e Navegação
do Xingu Ltda. (Incenxil), empresa também
pertencente à CR Almeida que se diz
dona da fazenda. O MPF considera-a “a maior
área grilada do Brasil”. O mérito
das duas ações pode ser julgado
nas próximas semanas.
Propriedades não
têm fundamento jurídico
“Essas propriedades não
têm fundamento jurídico algum,
são flagrantemente irregulares”, acredita
Marco Antônio Delfino. “Acho que a grilagem
no Pará tende a sofrer um refluxo.
A tendência é de diminuir, pelo
menos esses casos escabrosos”, avalia o procurador.
Ele acredita que as decisões judiciais
abrem o caminho para a decretação
da Resex do Médio Xingu no local e
para regularização fundiária
em toda a Terra do Meio. O procurador explica
ainda que as ações do MPF pretendem
impedir que a CR Almeida continue intimidando
a população local.
Áreas reivindicadas
por empresas do grupo CR Almeida na Terra
do Meio (clique aqui para ampliar).
Nos últimos anos,
os representantes da empresa passaram a contratar
como empregados vários ribeirinhos,
a distribuir cestas básicas e remédios,
além de transportar pessoas doentes
ou falecidas para a cidade. Chegaram a prometer
construir escolas e postos de saúde.
Tudo para conquistar a confiança da
comunidade para o que seria um projeto alternativo
de desenvolvimento sustentável (leia
mais).
Uma norma editada pelo Incra
e pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA), em dezembro de 2004,
já tinha dado um passo importante para
tentar conter a grilagem em toda a Amazônia
Legal. A Portaria nº 10 de dezembro de
2005 suspendeu a emissão do protocolo
de requerimento do Certificado de Cadastro
de Imóvel Rural (CCIR) em posses localizadas
na região. Ela passou a exigir o georreferenciamento
de cada área. A expedição
do protocolo passou a ser negada quando constatada
a superposição do imóvel
rural com terras da União. O CCIR é
necessário para obtenção
de crédito rural, para a realização
de registros imobiliários, transações
bancárias e comerciais (confira).
Para André Lima,
coordenador, do Programa de Política
e Direito Socioambiental do ISA, outro problema
bastante preocupante diz respeito às
populações locais tradicionais
não abrigadas por UCs. “A criação
de UCs empurra a grilagem de terras para áreas
adjacentes não protegidas legalmente,
habitadas por populações desprovidas
de qualquer título ou garantia fundiária.
Para complicar, nenhum órgão
governamental tem um levantamento consistente
sobre essas populações que habitam
as florestas na Amazônia, mas que não
estão no mapa”, diz. Lima concorda
que é indispensável a implantação
de uma política que envolva os governos
federal e estadual, Ministério Público,
órgãos governamentais fundiários,
ambientais e indigenistas, movimentos sociais
e organizações não-governamentais
para um levantamento rápido sobre essas
populações. “Precisamos de medidas
urgentes para a garantia de sustentabilidade
nos territórios dessas comunidades”.
Oswaldo Braga de Souza.