10/10/2006
- A terceira reportagem do Especial publicado
pelo ISA sobre a Terra do Meio, no Pará,
revela que as duas reservas extrativistas
criadas na região estão dando
seus primeiros passos por meio de operações
de fiscalização, reuniões
comunitárias e expedições
organizadas pelo Ibama. No entanto, a situação
de abandono de ribeirinhos mudou pouco e o
problema fundiário de muitos deles
ainda precisa ser resolvido.
As duas Reservas Extrativistas
(Resex) da Terra do Meio, no Pará,
começam a dar os primeiros passos no
caminho de sua consolidação,
mesmo que lentamente. Com uma série
de dificuldades, o Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) vem tentando monitorar as duas áreas
e prestar apoio aos seus moradores. O presidente
Lula decretou a Resex do Riozinho do Anfrísio,
em novembro de 2004, com 736 mil hectares,
e, em junho último, a Resex do Iriri,
com 398,9 mil hectares.
De lá para cá,
a prefeitura do município de Altamira,
onde estão localizadas as duas áreas,
contratou agentes comunitários de saúde
e técnicos para realizar testes de
malária – mas só depois de uma
reclamação do Ministério
Público Federal (MPF). Desde meados
do ano passado, o Ibama organizou reuniões
comunitárias e expedições
para cadastramento, emissão de documentos,
atendimento médico e esclarecimento
da população. Também
foram realizadas algumas operações
de fiscalização. O Exército
esteve presente por algumas semanas na Resex
do Riozinho do Anfrísio para garantir
a segurança de lideranças ameaçadas
por defender suas terras.
As medidas foram tomadas
depois de fevereiro de 2005, quando o governo
federal criou a Estação Ecológica
(Esec) da Terra do Meio e o Parque Nacional
(Parna) da Serra do Pardo, também na
região. As duas UCs foram parte do
pacote ambiental lançado em resposta
à série de assassinatos de trabalhadores
rurais e líderes do movimento social
no Pará, em especial, da freira missionária
Doroty Stang, no dia 12 daquele mês.
A decretação das áreas
e as primeiras ações do governo
fizeram cair, pelo menos em um primeiro momento,
o desmatamento, o preço das terras
no mercado local de grilagem e o número
de denúncias de casos de violência
praticada por grileiros contra os "beiradeiros",
como são conhecidos os ribeirinhos.
A situação
de abandono dos moradores da região,
no entanto, mudou pouco. O quadro de saúde
das cerca de 200 famílias que vivem
na Terra do Meio é grave: o índice
de mortes por doenças como pneumonia,
malária e diarréia, por exemplo,
é alto. O atendimento médico
ainda é raro e o transporte de pacientes
é muito difícil – algumas localidades
ficam a mais de quatro dias de viagem de barco
de Altamira, cidade mais próxima. O
analfabetismo beira os 100%, mas ainda não
se sabe quando serão construídas
escolas no local. Muitas pessoas continuam
sem documento de identidade (saiba mais).
Comunidades começam
a se organizar
A figura da Resex garante
legalmente a conservação dos
recursos naturais, as atividades econômicas
e a posse coletiva da terra das populações
tradicionais (seringueiros, castanheiros,
babaçueiros, caiçaras, sertanejos
etc). A regularização fundiária
propiciada por esse tipo de UC de uso sustentável
facilita o acesso ao financiamento agrícola,
programas de segurança alimentar e
investimentos na produção local
- a informação vem sendo divulgada
com a ajuda do Ibama, fazendo com que as comunidades
tomem consciência de seus direitos.
Com intermediação do MPF e de
organizações da sociedade civil,
elas já desenvolvem iniciativas de
geração de renda e começam
a cobrar o acesso a saúde, educação
e segurança.
Na Resex do Riozinho do
Anfrísio, um pequeno projeto de apoio
ao agroextrativismo está sendo financiado
pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA)
desde o ano passado. Foram distribuídos
quatro motores de popa e equipamentos para
extração e beneficiamento da
copaíba e da andiroba. Dois barracões
já foram construídos e, nas
próximas semanas, devem ser erguidos
mais dois. As edificações poderão
abrigar futuras escolas, vão servir
para reuniões comunitárias e
para armazenamento da produção
das 47 famílias de beiradeiros da reserva.
O Ibama também deverá construir
uma pequena base no local, nos próximos
meses.
Apesar do otimismo de vários
moradores, fontes do próprio Ibama
lembram que grupos de Trairão e Rurópolis,
municípios próximos, continuam
desmatando nos limites da Resex. De acordo
com dados do Laboratório de Geoprocessamento
do ISA, o desmatamento teria aumentado no
interior da área na ordem de 198% na
comparação entre 2002-2004 e
2004-2005 (confira tabela abaixo). Um garimpo
voltou à atividade nas últimas
semanas. Apenas um funcionário foi
designado para cuidar da reserva, quando seriam
necessários pelo menos três.
A falta de pessoal limita o gasto do dinheiro
que já está liberado para a
UC. Dos R$ 1000,7 mil previstos no Plano Operativo
Anual (POA) de 2006, elaborado pelo Programa
de Áreas Protegidas da Amazônia
(Arpa), apenas R$ 130 mil haviam sido usados
até o final de setembro, pouco mais
de 17% do total.
O Ibama argumenta que e
a demora nos trâmites para a contratação
de serviços e a compra de equipamentos,
além da dificuldade de acesso na época
da seca, quando os rios ficam muito baixos,
também estariam emperrando a implementação
da reserva. Desde agosto, não se tem
informações sobre o desmatamento
porque o técnico responsável
pelo monitoramento via satélite da
Resex está fora, em operações
de campo. A gerência-executiva do Ibama
em Altamira garante que deve ocorrer uma operação
de fiscalização contra desmatamentos
e garimpos clandestinos nos próximos
meses.
Trabalhos engatinham
no Iriri
Na Resex do Iriri, criada
há poucos meses, os trabalhos estão
engatinhando. Um funcionário ainda
não foi nomeado para cuidar da área.
Até o final de setembro, não
havia sido gasto nenhum centavo dos R$ 685
mil disponibilizados pelo Arpa para este ano.
A previsão é que uma equipe
de saúde paga pela prefeitura de Altamira
suba o rio Iriri nas próximas semanas.
De acordo com Paulo Rodrigues Cambuí,
presidente da Associação dos
Moradores da Resex do Iriri, um invasor que
desmatou e está ocupando 1,5 mil alqueires
dentro da reserva realizou recentemente um
novo desmatamento de 180 alqueires. Cambuí
afirma que notificou o Ibama sobre o problema,
mas nada foi feito até agora. “Desde
janeiro, não recebemos a visita de
uma equipe de fiscais. Eles dizem que não
têm recursos para nos atender. Não
sei mais a quem me dirigir.”
No meio de setembro, Paulão,
como é conhecido, foi até Altamira
prestar depoimento ao MPF e à PF sobre
a atuação de pistoleiros. Alguns
dias antes, dois homens armados desceram o
rio Iriri, rondando a sua casa e intimidando
outros moradores. Paulão conta que
uma pessoa chegou a lhe dizer no rádio
que ele deveria deixar a presidência
da associação e que sua vida
estaria valendo R$ 50 mil. “Essa pessoa, que
não conheço e não se
identificou, me disse que quando minha cabeça
estivesse valendo R$ 100 mil viria atrás
de mim”. Segundo o ribeirinho, neste caso,
até agora também não
foi tomada nenhuma providência por parte
das autoridades.
Terra do Meio continua
ameaçada
Representantes do movimento
social e de organizações não-governamentais
avaliam que a Terra do Meio continua ameaçada
por madeireiras e fazendas ilegais e que algumas
atividades ilícitas já teriam
sido reiniciadas. O receio é de que
o governo não tenha condições
de manter presença efetiva para inibir
a ação dos criminosos. Tarcísio
Feitosa, membro da Comissão Pastoral
da Terra (CPT) em Altamira, confirma que as
mudanças ainda são muito pequenas
na vida dos beiradeiros. “Mudou alguma coisa
porque as três esferas de governo e
a sociedade brasileira agora sabem que essa
população existe, mas em campo
a situação não se alterou
muito”. Ele conta que algumas “fazendas” voltaram
recentemente à atividade nas duas Resex,
com realização de desmatamentos
e queimadas ilegais. O Ibama foi comunicado
do problema, mas até agora não
tomou nenhuma providência. Feitosa está
descrente de uma ação mais enérgica
do Poder Público na região para
combater os crimes ambientais.
O próprio coordenador
do Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentável
de Populações Tradicionais (CNPT)
do Ibama, Alexandre Cordeiro, teme a retomada
do desmatamento quando “baixar a poeira” da
decretação das áreas.
Ele admite que as ações do governo
na região ainda são limitadas.
“Estamos com uma presença ainda insuficiente.
O Estado brasileiro não botou o seu
dedo ali. Não temos cidadania plena
ali. Não temos controle do espaço.
Ainda é terra de ninguém.” O
servidor acredita que a falta de pessoal só
deve ser resolvida no início do ano
que vem, com o ingresso de 50 analistas ambientais
recém-concursados no CNPT. Destes,
cinco seriam destinados às Resex do
Riozinho do Anfrísio e do Iriri.
Cordeiro informa que estão
sendo investidos recursos em pequenas operações
de fiscalização, no mapeamento
das posses irregulares existentes nas reservas(primeira
fase no processo de regularização
fundiária), na capacitação
e na mobilização da comunidade.
O consultor responsável pelo diagnóstico
rural participativo e pelos estudos para criação
do conselho deliberativo da Resex do Riozinho
do Anfrísio já foi contratado
e o contrato para a realização
do trabalho no Iriri deve ser fechado nas
próximas semanas. O colegiado deve
ser composto por representantes das diversas
localidades, que precisam receber uma formação
mínima. É o primeiro passo para
a elaboração e a execução
do plano de manejo da Resex e para a assinatura
do contrato de concessão real de uso
aos ribeirinhos, etapa final da regularização
fundiária.
Negociações
paralisadas
Enquanto os moradores do
Riozinho do Anfrísio e do Iriri pelo
menos conseguiram avançar na solução
de seu problema fundiário com a decretação
das Resex, a situação de outras
quase cem famílias de beiradeiros espalhadas
pela Terra do Meio ainda precisa ser resolvida.
Alexandre Cordeiro afirma que o governo pretende
oficializar, até o fim do ano, a Resex
do Médio Xingu na faixa de 100 quilômetros
ao longo do rio, totalizando uma área
de 303 mil hectares, onde moram cerca de 50
famílias. Os estudos para o decreto
da UC estariam sendo finalizados. Já
os ribeirinhos que vivem nas UCs de proteção
integral, que não permitem moradia,
e na Terra Indígena Cachoeira Seca
terão de deixá-las. Muitos,
porém, ainda não foram convencidos
a fazê-lo e resistem à idéia.
As negociações para a transferência
das famílias estão paralisadas.
Segundo Cordeiro, o CNPT aguarda, há
alguns meses, que a Diretoria de Ecossistemas
(Direc) do Ibama elabore os termos de compromisso
que autorizam a permanência temporária
em suas posses e garantem o reassentamento
em outras terras. No caso da Terra do Meio,
esses moradores deverão ser fixados
nas duas Resex já criadas e na outra
que deve ser instituída nos próximos
meses. A legislação também
obriga o Ibama – e a Fundação
Nacional do Índio (Funai), no caso
da TI – a indenizar as benfeitorias construídas
de boa fé.
Oswaldo Braga de Souza.