16/10/2006
- O Especial sobre a Terra do Meio (PA) publicado
pelo ISA chega ao fim com um artigo do jornalista
paraense Lúcio Flávio Pinto*.
Ele aborda a tragédia vivida pela árvore
mais valiosa da Amazônia, o mogno, e
conta detalhes da operação montada
pela empresa CR Almeida para tentar apoderar-se
de uma grande quantidade da madeira-de-lei
apreendida pelo governo. Lúcio Flávio
já ganhou alguns prêmios Esso
de jornalismo e é reconhecido como
um dos principais defensores da floresta amazônica
no País.
O engenheiro agrônomo
Adalberto Veríssimo costuma dizer que
Deus entregou diretamente ao homem as sementes
de mogno. A hipótese procede. O mogno
é uma árvore bonita de se ver
na mata, destacando-se por seu porte esbelto,
sua altura (de 30 a 40 metros) e sua cor.
Impressiona tanto ou mais ainda quando se
transforma num móvel ou num painel:
é leve e ao mesmo tempo resistente,
sólida e maleável, pode durar
séculos, indiferentemente aos insetos
e aos maus tratos do homem, e cativar por
sua cor natural, melhor do que qualquer outra
que o computador imaginar como sucedâneo
ou alternativa.
Os presidentes dos Estados
Unidos têm utilizado, há várias
décadas, móveis de mogno na
Casa Branca, em Washington. A marinha inglesa,
uma das mais eficientes de todos os tempos,
também se beneficiou das qualidades
físicas e químicas da madeira.
Qualquer autor de thriller sabe que, se descrever
como sendo de mogno aquela escrivaninha sobre
a qual o personagem se debruça, dar-lhe-á
uma aparência de nobreza e solidez.
Em algumas décadas
mais, entretanto, o mogno poderá se
confinar ao terreno da ficção,
aos museus e a poucos redutos de confinamento.
É provável que Beto Veríssimo,
um jovem agrônomo nordestino que se
apaixonou pela floresta amazônica e
não saiu mais de Belém, antes
mesmo de se aposentar já terá
dificuldades para localizar árvores
de mogno nas suas constantes excursões
pela mata nativa do Pará, o segundo
Estado brasileiro em área desmatada
e em índice de derrubadas da Amazônia,
mesmo sendo o segundo mais extenso (perde
apenas para o Amazonas), do tamanho da Colômbia,
com seus 1,2 milhão de quilômetros
quadrados.
Ouro verde
O mogno, a mais bela e mais
valiosa madeira da Amazônia, região
que concentra 56% das florestas tropicais
do planeta, está acabando. Já
acabou no sul do Pará, onde sua presença
era de 5 a 10 vezes maior do que nas áreas
onde a madeira está sendo agora caçada,
cortada e vendida como se fosse ouro (na verdade,
o ouro verde vale atualmente mais do que o
ouro amarelo).
Beto fica feliz quando,
nas suas excursões ao Acre, encontra
uma árvore de mogno por hectare. Na
área de influência de Rio Maria,
no sul do Pará, a densidade podia chegar
a 11 árvores por hectare. Hoje, mogno
é conversa para boi pastar ou para
choro nessa região. No princípio
da sua ocupação, muito mogno
deve ter sido destruído nas queimadas.
O que os pioneiros queriam mesmo era formar
pastagens para seu gado, incumbido de, ao
menor custo (monetariamente falando), “amansar
a terra”, na tal filosofia ditada pela pata
bovina (em sentido literal e figurado).
Depois, quando a madeira
foi usada como reforço de capital para
a execução do empreendimento
ainda prioritário, o “projeto agropecuário”
subsidiado pelo governo federal, muito mogno
foi extraído, mas à custa da
destruição de muitas outras
árvores de menor valor. Por um ou outro
caminho, dos anos 60 aos 80, o vale do Araguaia-Tocantins,
na busca de um “modelo de ocupação”
da nova fronteira do país, destruiu
uma fabulosa mina de madeira. Ainda há
alguma iniciativa de plantio da árvore,
mas quem a conhece intimamente descrê
dos resultados. Como na longa farra da Sudam,
extinta em 2002 sob um mar lodoso de corrupção,
é mais uma placa para agradar inglês.
Segundo o Instituto do Homem
e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon),
ao qual Veríssimo pertence, entre 1971
e 2001 o Brasil produziu aproximadamente 5,7
milhões de metros cúbicos serrados
de mogno. Pelo menos quatro milhões
foram exportados, uns 75% do total para os
Estados Unidos e a Inglaterra. Essa exploração
representou algo bem perto de 4 bilhões
de dólares em faturamento, considerando-se
o preço médio histórico,
de US$ 700 o metro cúbico. Atualmente,
os valores variam entre US$ 1,6 mil o m3,
no mercado interno, e US$ 2,5 mil, no exterior,
segundo a tabela do Ibama (Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Beneficiado, porém, cada m3 pode ir
parar em US$ 8 mil. Ouro passa a ser produto
de segunda grandeza nessa pauta de valores.
Caso de polícia
A febre do mogno é
uma variedade vegetal da obsessão que
provocou as incríveis ondas de garimpagem.
Por serem mais convencionais, epopéias
como a de Serra Pelada atraíram mais
atenção – e espanto – da opinião
pública. O que está acontecendo
em tão pouco tempo com o mogno, uma
das mais valiosas madeiras da história
da humanidade, tem significado ainda mais
profundo do que a maioria dos booms auríferos.
Só não tem o mesmo impacto.
Só não tinha,
aliás. Quatro anos atrás, a
TV Globo exibiu para todo País as imagens
e as informações sobre o que
foi classificado como “a maior apreensão
de madeira da história do Brasil”.
Provavelmente por ser neófita no assunto,
a Globo não sustentou a reportagem
com informações checadas ou
corretas, mas as imagens – falando por mil
palavras – supriram essa deficiência.
Ao seu modo, a televisão
desempenhou mais satisfatoriamente uma função
que milhares de artigos escritos até
então não conseguiram: provocar
o interesse da opinião pública
para um drama muito grave, que começou
e poderá se consumar antes que a geração
de Beto Veríssimo encerre seu período
de vida ativa. Seremos contemporâneos
da extinção do mogno, impotentes
para reverter o mal que temos causado, a partir
de uma presumível dádiva divina,
na forma das sementes dessa árvore
excepcional?
Em escala menor de utilização,
os parentes do mesmo gênero da árvore
brasileira na América Central e Caribe
já não existem mais. A pressão
sobre as últimas concentrações,
na Amazônia latino-americana, mas, sobretudo,
na área predominante do Brasil, se
tornou um autêntico caso de polícia.
Os extratores de mogno se multiplicaram e
sua audácia resultou em imagens patéticas,
como as enormes jangadas, formadas por milhares
de toras de madeira, que a TV Globo captou
e que já se tornaram rotineiras na
área mais rica depois (e já
bem abaixo) do Araguaia, a da Terra do Meio,
entre os rios Xingu e Iriri, no Pará.
Rotineiras porque não provocaram o
choque de, três décadas antes,
em plena ditadura, com as cenas de caminhões
saindo da mata com meia dúzia de toras,
autêntica sangria vegetal. Agora, a
sensibilidade parece embotada, apesar da democracia
vigente.
O Ibama diz ter apreendido
na espetaculosa operação madeira
no valor de R$ 300 milhões. Não
disse o número de toras ou a quantidade
de metros cúbicos. Em qualquer hipótese,
o valor era tratado aos milhares. A esmagadora
maioria dessas árvores foi extraída
dentro de reservas indígenas, principalmente
na dos famosos Kayapós. Não
mais por meio de invasão das reservas:
agora, com a ajuda dos próprios índios.
O que eles provavelmente ganharam com sua
colaboração representa 150 vezes
menos do que faturou o agente comercial, na
ponta da linha de intermediações
que vai da jungle à metrópole.
Os índios alegam,
em sua defesa, que não têm outra
fonte de renda com a ruína da Fundação
Nacional do Índio (Funai) e a evaporação
da política indigenista pública,
que se desmancha no ar como restos de uma
categoria primitiva a ser colocada sob a lápide
da história, no entendimento de um
sociólogo da modernização
(e com poder de transformar em fatos suas
idéias, como o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, em cujo mandato ocorreram
os maiores abates de mogno). E que precisam
se vestir, comer e beber – em amplo sentido
neste último item.
Com muitas boas razões
pode-se construir uma tragédia, como
a do mogno. Ninguém vai para o inferno,
mas nem assim o mal deixa de se consumar.
Gênio, Dante colocou mais gente no purgatório
do que no inferno e no paraíso da sua
Divina Comédia. A ocupação
da Amazônia se ajusta muito bem nesse
enredo.
Controle internacional
Contra a posição
do Brasil, o mogno foi incluído no
anexo II da Convenção sobre
o Comércio Internacional das Espécies
da Flora e da Fauna (Cites). Isto significa
que a exploração e a comercialização
da espécie estão sujeitas ao
controle não apenas do governo nacional,
mas também dos outros países
que integram o colegiado, de exportadores
e importadores, com a aplicação
das normas existentes a respeito.
O governo brasileiro, o
mais interessado no assunto, por ser o Brasil
o maior produtor e vendedor de mogno no mundo,
considerou dispensável apertar o controle
sobre a espécie, que, na próxima
abordagem, pode passar para o Anexo I, das
espécies em extinção.
Garante que tem feito tudo que é possível
para acabar com a exploração
ilegal e predatória da madeira, o que
não é verdade, ainda que mereça
ser reconhecido o decidido esforço
oficial a respeito. Ou a intenção,
dantescamente falando.
Enquanto o Ibama e a Polícia
Federal aprendem milhares de toras de mogno
transportadas em jangadas pelo rio Xingu (a
grande avenida aquática para a qual
essas lúgubres embarcações
convergem de todos os pontos de drenagem da
bacia que possuem a espécie às
suas margens), acredita-se que no sul do país,
com destaque para São Paulo, haja outros
milhares de metros cúbicos estocados
e em beneficiamento. É madeira em ponto
de bala para seguir para o exterior, se possível
(com ganhos melhores), ou ter comercialização
interna, se os mecanismos de controle de embarque
internacional estiverem realmente azeitados
e o contrabando for inviável.
O esforço interno,
portanto, já não é mais
suficiente. Ou não é o bastante
a tempo de poder dar conta da selvageria da
predação da espécie,
em função do preço e
da exaustão de outras fontes de abastecimento
do ouro verde. Um controle internacional efetivo
seria a última chance de sobrevivência
para o mogno?
Muitos nem querem fazer
essa pergunta, mas ela precisa ser formulada
e, acima de tudo, necessita de uma resposta
eficaz e urgente. O debate se intensificou
depois que a senadora acreana Marina Silva
assumiu o Ministério do Meio Ambiente.
Sua indicação foi saudada ao
mesmo tempo com entusiasmo e preocupação,
como uma enorme vitória e uma inquietante
dúvida.
Marina tentou transformar
em política federal a experiência
que se tornou a razão da sua vida e
a explicação para o seu sucesso,
tanto no seu Acre natal quanto nas praças
mundiais que a tomaram como aliada e parceira.
Não foi exatamente por acaso que o
presidente eleito Luiz Inácio Lula
da Silva deixou para confirmar em Washington
uma indicação que já
se tinha como certa no Brasil, quando assumiu
o governo, há quatro anos.
O governador do Acre, Jorge
Viana, conterrâneo e correligionário
da futura ministra, observou que a decisão
de Lula de confirmar Marina como ministra
nos Estados Unidos tinha um simbolismo muito
grande: foi justamente nos EUA que o sindicalista
Chico Mendes se fortaleceu politicamente para
lutar em favor do desenvolvimento sustentável
do Acre e da Amazônia.
Essa aliança teve
um resultado inegavelmente positivo: projetou
mundialmente o antigo seringalista, criando
eco para sua pregação em defesa
do uso preferencial da floresta na Amazônia,
e de um uso múltiplo, não apenas
pelas formas convencionais, como a produção
de madeira sólida. É esse entendimento
que está por trás da “Florestania”,
uma concepção de desenvolvimento
distinta da que se encontra em vigor ou predomina,
embora então – como ainda – difusa
e vaporosa.
Essa aliança superestimou
o significado de experiências localizadas
e de difícil disseminação,
ignorando as especificidades do Acre. No Estado
da ministra o uso dos recursos naturais é
mais “sustentável” do que nas demais
unidades federativas da região, mas
o Acre continua a ser também o mais
pobre da Amazônia, mesmo partindo para
o terceiro governo seguido do PT.
Brava mulher do mais recôndito
sertão amazônico, a ministra
tentou cumprir seu papel de abrir todas as
portas ao debate e arejar todos os ambientes
com perguntas que buscam resposta e um autor
atrás do seu grande enredo: a salvação
da madeira que Deus legou aos homens e os
homens, demasiadamente humanos, estão
destruindo numa velocidade digna de inferno.
Terra do Meio
O lócus principal
dessa tragédia é uma área
na margem direita do rio Amazonas, entre dois
dos seus principais afluentes, o Xingu e o
Tapajós, bem no centro dessa metade
do Estado do Pará, cercada por frentes
de expansão por suas laterais leste
e oeste, tendo como referência grandes
eixos rodoviários. É a “Terra
do Meio”, um reduto de floresta nativa com
a maior densidade de mogno existente na Amazônia.
Foi esse o cenário,
em novembro de 2002, para uma cinematográfica
operação de guerra – a maior
de todas – em defesa dessa árvore valiosa,
comandada pelo Greenpeace e o Ibama, com a
cobertura da Polícia Federal, que diz
muito sobre as características e perspectivas
desse enredo dramático. Ao alcance
de lentes de câmeras de televisão
e de vídeo, agentes federais, trajando
roupas de camuflagem e portando metralhadoras,
desciam de helicópteros em movimento
para apreender toras de madeira estocadas
em áreas de armazenamento conhecidas
como esplanadas, na beira do rio, prontas
para serem transportadas em jangadas. Feito
o registro da ação salvadora,
todos foram embora com a certeza da missão
cumprida.
Semanas depois, sem o décor
hollywoodiano anterior, uma cena parecida
se repetiu. Desta vez, quem comandava as ações
era o próprio então ministro
do meio ambiente, José Carlos Carvalho.
Ele viajou direto de Brasília num avião
da FAB, levando consigo o presidente do Ibama,
Rômulo Barreto Melo, além de
fiscais e agentes federais (sintomaticamente,
não requisitou pessoal local, de Altamira
e Santarém: só usou servidores
deslocados da capital federal). Informado
de que as operações anteriores,
além de inúteis, serviam para
regularizar madeira extraída ilegalmente,
o ministro quis agir de surpresa e com o controle
total dos seus atos. Pretendia passar tudo
a limpo para que as ervas daninhas não
voltassem a crescer, como sempre acontecia.
No ano seguinte, depois
que o cenário para as cenas de guerra
ecológica explícita se desfez
e todos voltaram às suas distantes
rotinas, na área permaneceu em plena
atividade o principal personagem, embora invisível:
a Construtora C. R. Almeida. Foi ela que se
antecipou aos emissários do governo
e do Greenpeace, reunindo informações
e juntando madeira de diversa procedência,
em condições de ser localizada
e “apreendida” pelos agentes do governo, para,
logo em seguida, ser colocada sob o controle
de um “fiel depositário”. E foi ela
quem indicou essa pessoa, a quem foi delegada
a guarda de aproximadamente 20 mil metros
cúbicos de mogno, no valor de 60 milhões
de reais. E foi ainda quem lhe deu as ordens
para gerir o patrimônio resultante da
apreensão.
Enredo típico de
uma velha fábula: a raposa cuidando
do galinheiro. A Construtora C. R. Almeida,
através de extensões e intermediários,
é acusada, por todos os órgãos
das administrações federal e
estadual relacionados aos setores fundiário
e florestal, além de policial, de estar
tentando se apropriar ilicitamente de uma
área que pode chegar a sete milhões
de hectares, embora esse território
(maior do que a ilha de Marajó, que
seria o 21ª mais extenso Estado brasileiro)
integre o patrimônio público
na forma de reservas indígenas, reservas
florestais, núcleos de colonização
e zona militar.
Há 10 anos, o Instituto
de Terras do Pará (Iterpa) e o Ministério
Público Federal tentam cancelar registros
imobiliários que a empresa conseguiu
fazer no cartório da comarca de Altamira,
contando para isso com a conivência
de serventuários e magistrados. É
o maior golpe imobiliário do país,
segundo O Livro Branco da Grilagem, editado
pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA).
Utilizando o poder que montou
em todo o vale do Xingu a partir de uma grande
base em Altamira, onde colocou advogados em
tempo integral e gerentes com recursos para
mobilizar pessoal, e periodicamente com a
cobertura da Polícia Civil e da Polícia
Militar, a C. R. Almeida pode estar não
só praticando a maior de todas as grilagens
do Brasil, com possibilidade ainda de legalizá-la,
apesar da resistência oficial, mas também
tentou armar um golpe inteligente para consumar
um dos maiores desvios de madeira de que se
tem notícia. E ainda posando de ambientalista,
ao lado do Greenpeace e do Ibama.
Operação
ministerial
Tudo começou em setembro
de 2002. As madeireiras estavam cortando mogno
em volta da Terra do Meio, não respeitando
nem as reservas indígenas. Os personagens
dessa nova investida eram os de sempre. À
frente, Osmar Alves Ferreira, apelidado de
“o rei do mogno” e apresentado à mídia
como a grande (e quase a única) ameaça
à preservação da valiosa
espécie vegetal.
De fato, usando como fachada
alguns projetos de manejo florestal completamente
ilegais, Osmar comandava um grupo que tem
sido o maior cortador de mogno da região.
Mas sua atuação é apenas
local. Ele tira a árvore da mata e
a coloca num ponto de coleta. A partir daí
entram em cena personagens muito mais graúdos,
que tratam da colocação da madeira
no mercado internacional, a um preço
final várias vezes multiplicado em
relação aos valores que constituem
o universo de domínio de Osmar e sua
troupe (ou grupos concorrentes). Mas este
ator principal não se expõe:
atua nos bastidores.
Depois que os cortadores
locais de madeira derrubaram as árvores
no meio da mata e arrastaram-nas para próximo
do primeiro curso d’água, que desemboca
no Iriri e, em seguida, na via principal,
o Xingu, através do qual as toras amarradas
chegam a Altamira, os advogados da C. R. Almeida
propuseram uma ação de interdito
proibitório, alegando que as madeireiras
estavam invadindo suas terras (que dizem pertencer
à empreiteira graças a uma decisão
do Tribunal de Justiça do Pará,
que reformou sentença contrária
aos interesses da empresa dada pelo juiz Torquato
de Alencar). O objetivo: imobilizar todos
os concorrentes pela via judicial para só
a C. R. Almeida, livre e desembaraçada,
com o monopólio da iniciativa, poder
continuar a agir.
O juiz de Altamira , Jackson
Sodré Ferraz, concedeu o pedido. De
posse da ordem judicial, os advogados requisitaram
tropa da Policia Militar para cumprir a medida.
A empresa, naturalmente, deu as “condições
necessárias” para que a policia agisse.
Assumiu todas as despesas da operação:
a gratificação de cada militar
e o custeio semanal de transporte aéreo
e fluvial, além da alimentação
da tropa.
Mais ainda: a empresa recebeu
a prerrogativa de indicar o fiel depositário
da madeira e equipamentos apreendidos: o comerciante
Wandeir dos Reis Costa, ex-madeireiro de Altamira.
Com essa retaguarda, começou a operação
de juntar a madeira que estava espalhada nas
esplanadas, embora alguns observadores desconfiassem
que praticamente não havia madeira
na área que a C. R. Almeida alegava
lhe pertencer.
Tranqüilamente, a empresa
começou a fazer a madeira que estava
perto do rio e atada descer até chegar
a Ururuará, o primeiro ponto de apoio,
e ser levada para terra. As toras foram imediatamente
transferidas para a serraria de Cláudio
Valle, vereador de Altamira. Lentamente, a
madeira começou a ser cortada. Outra
parte do estoque iria para a serraria de um
irmão do fiel depositário.
Em Brasília, o ministro
do meio ambiente recebeu um relato dessa história,
que deixava mal o governo e instituições
que se declaram defensoras do meio ambiente,
no mínimo na condição
de inocentes úteis nas mãos
de espertos manipuladores. Surpreso e preocupado,
o ministro decidiu que uma checagem para valer
exigia três requisitos: surpresa, rapidez
e participação de personagens
distanciados da cena local. Por isso, partiu
direto de Brasília com toda a sua equipe
para verificar pessoalmente as informações
que lhe foram transmitidas.
Do aeroporto de Altamira,
o ministro foi diretamente para a serraria
de Cláudio Valle apreender a madeira.
Surpresos, os atores das velhas encenações
perceberam que José Carlos Carvalho
chegara com um roteiro bem traçado
de toda a história. Imediatamente ele
determinou que 1.800 toras de mogno, no valor
de R$ 15 milhões, fossem novamente
apreendidas. Mandou que fossem também
apreendidos as máquinas e equipamentos
que encontrou na Fazenda Juvilândia,
onde a madeira se encontrava, incluindo dois
aviões, 28 caminhões, dois tratores
de grande porte, uma balsa e 10 carros. Desautorizou
o fiel depositário. E prometeu remover
os agentes do Ibama de Altamira. Admitiu que
a conivência pudesse ser ainda mais
ampla.
O inédito desempenho
da principal autoridade pública do
setor no cenário do maior saque florestal
do país deixou atrás de si um
rastro de protestos e promessas de reação.
As coisas não deveriam voltar a ser
como antes, depois que a comitiva de José
Carvalho se foi. Os interesses que se mantinham
ocultos foram revelados e contrariados. No
entanto, apesar das conquistas e vitórias,
é pouco provável que a extração
clandestina de mogno, com todo o seu rico
e poderoso comércio paralelo, tenha
sido finalmente interrompida.
Só com a madeira
apreendida e identificada, o negócio
sustado pela operação ministerial
envolvia aproximadamente R$ 100 milhões.
Quando o crime atinge essa dimensão,
combatê-lo de verdade requer como ponto
de partida o que o Ministério do Meio
Ambiente começou a fazer há
quatro anos. O ponto de chegada, entretanto,
ainda está bem distante. O mogno resistirá
até lá? Ou, sua dizimação
servirá de atestado de óbito
para a Terra do Meio, que deixará de
ser um maciço remanescente de floresta
cercado de estradas devastadoras por todos
os lados?
N.E.: parte da madeira apreendida
pelo Ibama foi doada a organizações
não-governamentais e ao movimento social
paraenses para criação de um
fundo destinado ao financiamento de projetos
de proteção ambiental, manejo
florestal comunitário e ações
de desenvolvimento sustentável e inclusão
social. O Fundo Dema hoje é gerenciado
pela Federação de Órgãos
para Assistência Social e Educacional
(Fase), pela Fundação Viver,
Produzir e Preservar (FVPP) e pela Prelazia
do Xingu. O nome do fundo foi dado em homenagem
ao apelido de Ademir Alfeu Fredericci, líder
do movimento popular da região da rodovia
Transamazônica no Pará, assassinado
em 25 de agosto de 2001 por lutar contra grileiros
e madeireiras ilegais em defesa de agricultores
familiares e trabalhadores rurais.
*Como editor do Jornal Pessoal,
quinzenário que edita em Belém
do Pará há 19 anos, Lúcio
Flávio Pinto foi condenado, no ano
passado, pelo juiz interino da 4ª vara
cível do fórum local, a indenizar
o empresário Cecílio do Rego
Almeida por chamá-lo de "pirata
fundiário". A 3ª Câmara
Cível Isolada do Tribunal de Justiça
do Estado manteve a condenação,
considerando a expressão ofensiva.
O jornalista também foi processado
oito vezes por causa de matérias que
escreveu sobre a grilagem: quatro vezes por
dois desembargadores que deram sentenças
favoráveis a Cecílio Almeida
(João Alberto Paiva e Maria do Céu
Cabral Duarte), outra vez pelo empresário
e duas vezes pelo madeireiro Wandeir dos Reis
Costa, nomeado pela justiça fiel depositário
da madeira apreendida. O Ministério
do Meio Ambiente tentou desconstituí-lo,
sem conseguir. Os registros imobiliários
fraudulentos foram bloqueados pela Corregedoria
de Justiça, que demitiu as escrivães
responsáveis pelo cartório de
imóveis de Altamira. Mas C. R. Almeida
continua a ser o homem mais poderoso da Terra
do Meio.