01-11-2006
- Manaus
Paulo Adário, coordenador da campanha
da Amazônia, do Greenpeace
Lamentavelmente ausente
do debate político-eleitoral, a questão
ambiental finalmente conseguiu algum espaço
na mídia em meio às eleições.
Foi preciso, no entanto, que o tema viesse
de fora do país - e travestido de ameaça
à soberania nacional. Pelo menos é
assim que foi recebida a proposta de “privatização”de
grandes áreas da Amazônia para
impedir que o desmatamento da região
continue a aumentar o risco de mudanças
climáticas em todo o mundo. O plano,
que teria sido apresentado pelo ministro de
Meio Ambiente britânico, David Miliband,
durante reunião no México, segundo
um jornal britânico, prevê a compra
de grandes áreas da Amazônia
para proteger a biodiversidade e o clima global.
Essas áreas seriam administradas por
um consórcio internacional. A reação
da imprensa brasileira foi imediata, o governo
brasileiro se mexeu, Miliband desmentiu a
história e a honra nacional foi salva.
Foi mesmo? A idéia
de recorrer à iniciativa internacional
para impedir que a contínua destruição
da Amazônia coloque todo o planeta em
risco não é nova. Andou circulando
nos meios de comunicação lá
pelo final dos anos 80, na boca da Eco-92,
e desde então volta e meia bate na
trave da mídia igual cobrança
de falta do Ronaldinho Gaúcho.
A idéia é
baseada num teorema bem simples: a gigantesca
cobertura florestal da Amazônia tem
papel fundamental no equilíbrio climático
e no ciclo das chuvas. Os bilhões de
toneladas de CO2 (gás que provoca o
aquecimento global) estocados nas árvores
amazônicas, se liberados para a atmosfera
podem colocar todo o planeta em risco. O desmatamento
é responsável por 75% das emissões
brasileiras de gases-estufa e acabar com o
desmatamento aumenta a segurança global.
Como o Brasil (e outros países da bacia
amazônica), carente de recursos, não
conseguem ou não querem parar com a
destruição da floresta, por
que não criar um consórcio internacional
que compre grandes áreas para preservação?
CQD. A humanidade agradece.
A proposta de comprar a
Amazônia para protegê-la, além
de ingênua, é irrealizável
e, em vez de ajudar, atrapalha os defensores
da floresta, já que dá argumentos
para os destruidores da região - que
vêm em qualquer iniciativa de proteção
do meio ambiente e dos povos tradicionais
como manobra do 'imperialismo' e dos defensores
da "internacionalização
da Amazônia". A reação
de alarme provocada pelo caso Miliband é
um exemplo disso.
Em primeiro lugar, é
preciso deixar claro: a Amazônia, como
região, não está à
venda. É patrimônio de 9 países:
Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia,
Venezuela, Equador, Guiana, Suriname e Guiana
Francesa. O nosso pedaço é maior
(60% do total) – e também maior é
nossa responsabilidade. Se o governo brasileiro
- e a iniciativa privada que destrói
a floresta em nome de um pretenso desenvolvimento
econômico - não fizerem sua parte
de forma consistente para conter o desastre,
o pânico mundial quanto a mudanças
climáticas tende a aumentar a pressão
internacional sobre o Brasil, reduzindo cada
vez mais o poder de negociação
do país na arena global.
Vamos imaginar, porém,
que você seja um comprador insistente,
como o milionário sueco-inglês
Johan Eliash, (que comprou baratinho as florestas
da madeireira Gethal no rio Madeira), ou o
milionário chinês Lu Weiguang,
que diz ter comprado enorme área indígena
no Mato Grosso (alô Funai, alô
Polícia Federal!) ou mesmo os meninos
da Google, que andaram há pouco por
Manaus analisando a compra de florestas.
Dono da multinacional de
artigos esportivos Head, o entusiasmado Eliash
foi sem dúvida o inspirador da nova
onda de privatização. Ele chegou
a propor, numa convenção da
seguradora Lloyds em Londres, a compra de
toda a Amazônia. Segundo ele, as seguradoras
gastam e gastarão mais com o pagamento
de prêmios e indenizações
resultantes de catástrofes climáticas
do que o que ele considera ser o preço
da Amazônia. Fico espantado que Eliash
seja um empresário de sucesso: a conta
que ele faz (baseada no que pagou por hectare)
desconhece a lei básica dos negócios:
a da oferta e procura. Bastaria que aumentasse
a demanda por florestas amazônicas para
que o preço da terra ficasse estratosférico.
Mesmo que a proposta de
Eliash fosse possível, a compra do
remanescente de áreas de floresta amazônica
para proteção resultaria numa
gigantesca escassez de madeira no mercado.
Recurso escasso é recurso valorizado:
seria preciso colocar um policial atrás
de cada árvore para impedir a invasão
do movimento dos sem-tora e de madeireiros
ávidos. Imagine o conflito social e
político resultante e a péssima
repercussão na mídia global.
Um pouco de aritmética
ajuda a clarear a fumaça: cerca de
33% da Amazônia brasileira são
terras indígenas e áreas de
proteção integral e uso sustentável.
Por lei, essas áreas não podem
ser comercializadas. Há ainda uns 6%
ocupados por assentamentos. Disputar tais
áreas é problema na certa. Do
restante, cerca de 24% são de áreas
privadas e 37% são públicas,
sob “controle” da União, estados e
municípios. Boa parte das áreas
privadas é grilada ou tem sérios
problemas de documentação. São
um mau negócio e certeza de anos gastos
em tribunais, enquanto a farra da destruição
corre solta na mata. Além do mais,
a grande maioria dessas áreas “privadas”
já está desmatada - logo, não
serve para o tal comprador de florestas em
grande escala.
De olho nas áreas
públicas, meu senhor? É absolutamente
garantido de que nenhum governante - presidente,
governador ou prefeito - será capaz
de colocar à venda esse patrimônio
público sem ter que enfrentar uma gigantesca
revolta popular.
Mas nem tudo está
perdido para o investidor. Pela nova lei de
gestão das florestas, as terras com
florestas públicas não podem
mais ser vendidas – mas poderiam ser concedidas
para exploração e uso responsável,
desde que não sejam disputadas por
comunidades locais e não sejam áreas
de alto valor de conservação
a serem protegidas.
O governo federal pretende
dedicar, nos próximos dez anos, cerca
de 3% das áreas públicas aos
chamados "distritos florestais"
onde a exploração seletiva do
recurso florestal poderá ser feita
de acordo com a lei.
Não é improvável
que empresas internacionais se credenciem
a disputar essas florestas, já que,
segundo a Constituição basta
a elas serem registradas no país e
obedecer às leis para ter os mesmos
direitos das empresas 100% nacionais. Essas
empresas terão que pagar royalties
para a exploração da área
num prazo máximo de 40 anos. É
admissível que empresas ou milionários
interessados na conservação
decidam pagar os royalties sem derrubar a
floresta.
Embora politicamente inaplicável,
a tese de privatizar a Amazônia tem
pelo menos um mérito: alertar o governo
e os brasileiros para a urgente necessidade
de adotar medidas concretas para acabar com
o desmatamento e conter a expansão
do agronegócio e da indústria
madeireira predatória na região.
Foi a expansão descontrolada dessas
atividades, aliada à transferência
de grande números de colonos para a
Amazônia, que resultou na destruição,
nos últimos 35 anos, de uma área
de floresta maior do que a França.
Quando os cientistas foram fazer a conta do
impacto dessa destruição contínua
e muitas vezes oculta dos olhos da opinião
pública (e discretamente celebrada
cada vez que saem as estatísticas de
desempenho das exportações de
soja e carne), descobriram que o desmatamento
havia transformado o Brasil no quarto maior
vilão do clima global.
Nos últimos dois
anos, a taxa anual de desmatamento da Amazônia
caiu, revertendo uma tendência de alta
que vinha desde 1997 e que teve seu pico no
segundo ano do governo Lula, em 2004 (quando
27.200 km2 de florestas vieram abaixo, o segundo
maior índice da história depois
dos 29 mil km2 do início do governo
FHC). Essa queda sem dúvida se deve
a iniciativas do governo federal – como a
criação de áreas protegidas
e a repressão a atividades ilegais
– mas também, e muito, à da
crise no agronegócio e à supervalorização
do real.
Apesar disso, a área
anual posta abaixo pela sanha das motosseras
continua alarmante, e os fatores que levam
ao desmatamento (ênfase a um modelo
econômico baseado em exportação
de commodities para equilibrar as contas públicas,
inexistência de verdadeira reforma agrária,
injustiça social, fragilidade estrutural
do estado, falta de estímulo a atividades
sustentáveis etc) continuam vivinhos
da silva.
Acabar com o desmatamento
exige políticas públicas consistentes
e de longo prazo, e passa por uma mobilização
nacional que inclua a adoção
de iniciativas de desenvolvimento responsável
que beneficiem os 22 milhões de brasileiros
que moram na Amazônia mas que mantenham
a floresta de pé. Isso passa por uma
revisão de prioridades no orçamento
federal, com mais recursos públicos
que permitam a criação e implementação
de grandes áreas protegidas que mantenham
sojeiros, pecuaristas e madeireiros longe
da floresta.
Moratórias, como
a recém conquista moratória
no desmatamento para soja, ajudam a ganhar
tempo para que o estado brasileiro se dedique
a essa missão histórica: provar
que é possível transformar “este
país” numa potência econômica
sem destruir a Amazônia.
A salvação
da Amazônia, no entanto, passa também
por uma mudança de postura internacional,
já que é excessivo o consumo
de produtos oriundos da região como
a madeira, cujas exportações
cresceram mais de 70% em volume e dobraram
em valor no governo Lula, ou como a soja,
que é cultivada em áreas desmatadas
para depois ser exportada para alimentar frangos,
porcos e gado na Europa e na Ásia.
Essa mudança pode estar a caminho:
basta que as empresas consumidoras européias
aprofundem sua decisão de não
comprar soja e outros produtos que contribuam
para o desmatamento.
Se governos, instituições
multilaterais e grandes empresários
querem realmente investir na Amazônia
para ajudar o clima global e o meio ambiente,
a melhor maneira é colocar mais recursos
em programas como o PPG7, o programa dos países
ricos que carreia recursos para o governo
brasileiro aplicar na Amazônia e Mata
Atlântica; ou no Projeto Arpa, que promete
criar e implementar 50 milhões de hectares
de áreas protegidas e de uso sustentável.
Uma boa aplicação de vultuosas
somas de recursos seria no fortalecimento
do Ibama, da Polícia Federal, da Funai,
do Incra, já que preservação
está diretamente ligada a governança.
E também em projetos privados de recuperação
e recomposição de reserva legal
em propriedades rurais que hoje não
respeitem a lei e em RPPN – reservas privadas
de proteção.
Falar em pôr dinheiro
para conservar as florestas pelo benefício
que trazem para o planeta é o reconhecimento
claro de que os serviços ambientais
que elas proporcionam ao planeta têm
valor monetário. Logo, que se pague
por estes serviços ao Brasil e outros
países em desenvolvimento que detêm
as florestas. Com uma contrapartida, claro:
de investir em desenvolvimento sustentável
e conservação, de aumentar a
governança e combater a corrupção.
Ou que se coloque recursos
num fundo mundial destinado a ajudar os países
em desenvolvimento, como o Brasil, a reduzir
suas emissões de desmatamento, conforme
propôs o governo Brasileiro em Roma,
no início do mês de setembro.
Aproveite-se o entusiasmo
e se lance um movimento internacional destinado
a criar um fundo de financiamento para a criação
e implementação da rede global
de áreas protegidas e de uso sustentável
prevista pela CDB – a Convenção
da Diversidade Biológica - que permita
aos países da ONU cumprir com as chamadas
Metas do Milênio, que incluem a reversão
da perda de biodiversidade até 2015.
Segundo cientistas e especialistas
reunidos no último Congresso Mundial
de Parques (Durban, África do Sul,
2003), precisamos de pelo menos uns US$ 20
bilhões de dólares por ano para
isso, nos próximos 8 anos. Mãos
à obra, senhores.