06/11/2006
- A primeira entrevista do Especial sobre
desmatamento é com o secretário
de Biodiversidade e Florestas do Ministério
do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco.
Nela, ele reconhece as dificuldades enfrentadas
para estabelecer uma política de incentivos
econômicos para manter a floresta de
pé e classifica como “uma falsa estatística”
a média anual de desflorestamento da
administração Lula, que é
superior à do mandato de FHC. Para
Capobianco, o grande diferencial da gestão
de Marina Silva à frente do ministério
é uma disputa efetiva por um novo modelo
de desenvolvimento na Amazônia.
As expressões “ação
estruturante” e “transversalidade” estão
entre as mais repetidas entre os representantes
da área ambiental da administração
federal. Pretendem apontar o que é
considerado pelo Ministério do Meio
Ambiente (MMA) como a grande inovação
em políticas públicas concretizada
pela ministra Marina Silva, em especial com
o Plano de Ação para a Prevenção
e Controle do Desmatamento na Amazônia.
No primeiro caso, trata-se de iniciativas
que concorreriam para mudar os fundamentos
da economia e da forma de ocupação
na Amazônia, para implantar um modelo
de desenvolvimento sustentável na região
e, assim, manter quedas permanentes nas taxas
de desmatamento. No segundo, o que seria a
articulação inédita entre
vários ministérios para enfrentar
os problemas ambientais do País.
Na entrevista que se segue,
concedida ao ISA, o secretário de Biodiversidade
e Florestas do MMA, João Paulo Capobianco,
faz um balanço das chamadas “ações
estruturantes” e da “transversalidade” colocadas
em prática pelo ministério.
Ele reconhece, por exemplo, as dificuldades
enfrentadas dentro do governo para estabelecer
uma política de incentivos econômicos
em defesa da floresta e classifica como “uma
falsa estatística” a média anual
de desflorestamento da administração
Lula, que é superior à do mandato
de FHC. De acordo com o biólogo e doutor
em Agricultura e Meio Ambiente pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), o grande diferencial
da gestão de Marina Silva é
a disputa efetiva por um novo modelo de desenvolvimento
na Amazônia. Capobianco é um
dos formuladores do plano de combate ao desmatamento
e um dos técnicos mais próximos
à ministra. Ele foi um dos fundadores
da Fundação SOS Mata, da Rede
de ONGs da Mata Atlântica, e do ISA.
Capobianco: A descentralização
da gestão florestal não significa
que o governo federal não tem mais
responsabilidade sobre o desmatamento da Amazônia.
ISA – Quais são
os principais méritos e as principais
lacunas da política contra o desmatamento
na Amazônia do governo Lula?
João Paulo
Capobianco – O principal mérito
é a tentativa e a perspectiva que estamos
criando ao adotar medidas que poderão
reverter definitivamente o desmatamento no
médio e no longo prazo. Ou seja, garantia
de reduções no curto prazo,
mas que não sejam reduções
episódicas e que de fato consolidem
um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia.
Eu diria que existem ações que
não são lacunas, mas cuja maturação
não acontece em um, dois ou três
anos. Por exemplo, a implantação
da Lei de Gestão de Florestas Públicas.
Isto é uma questão concreta.
Obter a lei e conseguir as condições
para isso foi algo extremamente importante.
Agora, nós temos de implementar.
Como está
essa implementação?
Está na fase de estruturação,
que, dentro do governo, é um processo
complexo. Implantar um sistema operacional
de gestão pública de florestas,
implementar o Serviço Florestal Brasileiro
(SFB), regulamentar a legislação,
no sentido de que ela possa ser efetiva, construir
as parcerias e as coalizões de interesses
que possam viabilizar concretamente esse sistema.
É o que estamos fazendo agora e nós
temos pouco tempo. Porque o que estará
em jogo no próximo governo em relação
à gestão de florestas, na minha
opinião, não é se isso
é bom ou é ruim, se isso terá
continuidade ou não. É de fato
se existe confiabilidade, se poderemos desenvolver
uma agenda como esta, que é complexa
e controversa para alguns setores. Estamos
apostando que sim. Que é possível
criar as condições, implantar
o Serviço Florestal Brasileiro, o cadastro
das florestas públicas, iniciar os
processos para que tenhamos já algumas
licitações em curso, dando ao
próximo governo esta tranquilidade,
esta segurança de que pode seguir em
frente e acelerar inclusive. Então
esta é que é a dificuldade.
Uma dificuldade inerente ao sistema público
brasileiro.
Qual é a
perspectiva do sistema começar a funcionar
na prática?
Ainda este ano. A lei prevê
que, ao longo da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santárém),
já podemos dar início. Estamos
investindo fortíssimo nos planos de
manejo das Florestas Nacionais ao longo da
estrada para ter nelas uma perspectiva de
curto prazo. Estamos trabalhando também
para colocar de pé e funcionando o
Cadastro Nacional de Florestas Públicas,
que vai ser o elemento central no sistema
de gestão de florestas. Em parceria
com outros estados, como é o caso da
agenda com o Pará e o Mato Grosso,
estamos avançando também. O
Pará tem uma boa perspectiva de criar
a sua agência [de gestão florestal]
e as suas florestas estaduais agora. O Mato
Grosso também.
Há falta
de empenho dos estados no plano de combate
ao desmatamento? Como isso entra na agenda
do governo federal?
Temos a perspectiva concreta
de alguns estados assumirem o compromisso
político de colaborar para reverter
o processo de desmatamento e simultaneamente
colaborar para implantar processos de valorização
da floresta em pé. Na minha avaliação,
Acre, Amapá, Mato Grosso e Pará
vão nessa direção, por
caminhos diferentes, com comportamentos diferenciados.
Esses quatro estados estão com essa
agenda.
Qual tem sido o
papel do governo federal no repasse da gestão
florestal? Não é um repasse,
porque unidades da federação
têm competências na matéria.
Mas qual o papel ideal do governo federal
nesse contexto e que papel tem exercido hoje?
O que a Lei de Gestão
colocou de forma cabal era aquilo que já
era o correto: o papel do Ibama tem de ser
mantido e fortalecido numa visão regional,
na questão de normas gerais, de regulamentação
geral e de apoio à implantação
dessa agenda. Ao longo dos anos, o Ibama foi
tragado para uma agenda de “varejo”, ou seja,
licenciando, suprindo, em tese, o papel dos
Estados, onde não quiseram assumir
ou se recusaram a assumir. A Lei de Gestão
define isto de forma clara e definitiva para
estados que vinham postergando esta atividade,
seja porque é mais cômodo isso
estar nas mãos do Ibama, seja porque
tinha uma política contrária.
O que acontece politicamente?
A lei define que os estados têm de assumir
uma liderança no âmbito de seus
territórios na vertente da conservação.
A lei não diz para descentralizar,
para fazer o que quiser. A lei diz: descentraliza
para gerir e conservar a floresta pública
de forma responsável. Esta é
uma agenda que não interessava aos
estados. Pelo contrário, muitos estados
fomentavam a conversão de floresta
enquanto o Ibama tentava protegê-las.
Agora ficou tudo explicitado. O governo federal
tem um papel que ele pode exercer em duas
frentes: uma, de manter seu poder supletivo,
de também ser responsável. Não
podemos repetir o que aconteceu no Mato Grosso,
que, uma vez montado o SLAPR [Sistema de Licenciamento
Ambiental das Propriedades Rurais], o governo
federal achou que isto era um problema do
estado. Isto não é um problema
do estado, é um problema do Ibama e
do governo federal. Você tem um papel
de apoiar e acompanhar essas iniciativas,
mas ao mesmo tempo de manter a inserção
nelas, de manter o monitoramento e também
de agir efetivamente. Na omissão de
uma unidade da federação, o
governo federal tem de agir.
O ISA fez um estudo
para o MMA sobre o Mato Grosso mostrando que
havia dois problemas sérios em especial:
a falta de transparência na gestão
e de responsabilização dos infratores.
Qual o papel do governo federal, em termos
de cobrança de efetividade?
Tem de ser feito um processo
articulado. Primeiro, nós vamos continuar
o monitoramento, em nível regional
e estadual, como é feito hoje. O Deter
[Sistema de Detecção em Tempo
Real do Desmatamento na Amazônia] vai
continuar existindo, mais aperfeiçoado
e inclusive sendo uma ferramenta de apoio
aos governos dos estados. A responsabilidade
sobre o desmatamento na Amazônia continua
sendo do governo federal. A lei diz que a
gestão, a responsabilidade pelo desmatamento
é de todas as esferas. O que está
sendo feito agora é uma agenda de co-responsabilização
dos estados e não o contrário.
Não de desresponsabilização
do governo federal. Esta é a única
forma de fazer uma gestão responsável
e efetiva.
Outra preocupação
em relação ao plano de combate
ao desmatamento é a maior ou menor
participação dos vários
ministérios. O senhor acha que o Ministério
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
vem se envolvendo ou poderia se envolver mais?
Na sua concepção
original, o plano prevê que a estratégia
de reversão do desmatamento na Amazônia
se baseia em várias frentes. Um de
seus pilares é o aumento da produtividade
em áreas já convertidas. E mais
do que isso: a reincorporação
na atividade produtiva das áreas abandonadas
ou subutilizadas. Isso é um elemento
central. Agora, esta ação não
depende apenas da vontade de um único
ministério, o Ministério da
Agricultura. Depende de um conjunto de ações
que envolvem normas para crédito público
e privado. Considerando que na Amazônia,
por exemplo, mais de 70% do crédito
é privado, temos de trabalhar com a
disponibilização de tecnologias,
com investimentos. O grande problema dessas
áreas convertidas e subutilizadas decorre
de dificuldades de produção,
pois são áreas que foram mal
utilizadas, solos pobres, rasos ou arenosos,
que acabaram perdendo capacidade produtiva.
Isto envolve investimentos. Temos de ter uma
política de recuperação
de solo e de microbacias.
A renegociação
da dívida do setor agrícola
foi uma oportunidade para a diferenciação
entre aqueles que têm algum compromisso
com o agronegócio sustentável
e aqueles que não têm. Houve
alguma iniciativa do MMA, no sentido de negociar
uma agenda mais proativa nesse tema?
Nós apresentamos
formalmente uma proposta de incluir nos contratos
de renegociação da dívida
condicionantes ambientais. Ou seja, o produtor
assumindo alguns compromissos em relação
à agenda ambiental, de recuperação
de APPs, áreas degradadas, reservas
legais etc. E compromissos inclusive com redução
de desmatamento como condição
para manutenção dessas prorrogações
de contrato. Agora, esse assunto mereceria
uma análise muito cuidadosa e muito
detalhada porque a questão da dívida
e do crédito desses agricultores é
muito complexa. Na realidade, estamos lidando
com uma situação em que qualquer
condicionante ou elemento adicional que você
coloque na renegociação como
condição, se torna ou inviável
ou letra morta. Este foi um processo que eu
ainda não tenho como lhe dizer que
isso aqui poderia ter entrado e se tivesse
entrado teria resultado. Tenho certeza de
que houve um esforço do governo que
envolveu os ministérios do Desenvolvimento
Agrário, da Agricultura e do Meio Ambiente
no sentido de que a negociação
resultasse em ganhos ambientais importantes.
Participei de mais de uma reunião de
alto nível buscando este entendimento
e foi difícil de viabilizar. Estávamos
discutindo como é que poderíamos
criar um incentivo em que o agricultor não
tivesse apenas a sua responsabilidade cobrada,
conforme está na lei, mas algum elemento
de crédito adicional que pudesse estimulá-lo
a fazer. Nós temos muitas dificuldades
para isso, que crescem exponencialmente, em
uma atividade em que o indivíduo toma
crédito e tem de pagar, e que o leve
a desenvolver uma atividade que não
vai trazer retorno econômico no cálculo
final da dívida e da sua capacidade
de pagamento. Esse tipo de compromisso pode
tornar inviável ao agricultor honrar
aquele compromisso financeiro, em um cenário
em que ele buscou a renegociação
porque não conseguiu fazê-lo.
Este é um assunto que precisa ser muito
trabalhado e eu acho que ainda não
está maduro.
O senhor acha então
que é muito difícil conseguir
crédito para este tipo de atividade
porque o agricultor está endividado
e a conta não fecha?
Esta é a dificuldade.
Há um entendimento do governo, envolvendo
o Ministério da Agricultura e os órgãos
de financiamento de que nós devemos
avançar nesta agenda, colocar este
elemento cada vez mais no Plano Safra, nas
renegociações de dívida.
Porque algumas pessoas pensam que há
uma má vontade, que não há
interesse em debater esta agenda, que esta
é uma agenda secundária para
o governo como um todo e para o Ministério
da Agricultura. Não é verdade.
Em diversas ocasiões, nós trabalhamos
para colocar esses elementos na negociação
e no Plano Safra. Temos esbarrado em dificuldades
objetivas. Por exemplo, o que diferencia o
crédito hoje é que você
tem uma taxa de juros que o governo estabelece
um diferencial para a atividade agrícola
em certas condições. Agora,
este juro menor é pago. O governo paga
para deixar de receber. Então, este
elemento entra numa análise de macroeconomia
que não é tão simples.
Todos os elementos que possam estimular o
uso responsável do ponto de vista ambiental
da propriedade estão sendo trabalhados.
O Plano Safra mesmo incluiu vários
pequenos ajustes no ano passado e neste ano.
Agora, aqueles que tratam da recuperação
de área degradada exigem investimento.
O proprietário tem de investir, ele
tem de plantar, usar mão-de-obra. Talvez
tenhamos de ter um programa em que o governo
tenha que fazer investimentos muito maiores
do que está disposto a fazer hoje.
O senhor acha que
não estabelecer uma política
de incentivos econômicos de combate
ao desmatamento foi um ponto fraco deste governo?
Foram feitas várias
propostas. Há várias tramitando,
que já foram objeto de muitas discussões
no governo. Não fomos capazes de conseguir
uma solução para isso ainda.
Um dos pontos altos dessa nova estratégia
da agricultura é o programa de integração
lavoura-pecuária. Eu entendo que este
programa pode trazer benefícios extremamente
importantes na linha de agregar valor, aumentar
produtividade e reduzir a pressão pela
expansão da fronteira agrícola
não só na Amazônia, mas
também no Cerrado e em todos os biomas.
Há um compromisso do governo como um
todo e do Ministério da Agricultura
de não incentivar a conversão
de floresta na Amazônia.
Como vamos transformar
isto em realidade?
Primeiro, fazendo aquilo que não compete
à Agricultura: destinar a terra pública,
reduzir a opção de converter
a floresta. Isto já estamos fazendo.
De outro lado, não haver crédito.
Hoje, o Banco da Amazônia (Basa) e os
fundos constitucionais estão fechados
para atividade agropecuária que desmata.
Isto foi agora, nos últimos dois, três
anos e já está consolidado dentro
do governo. Os bancos privados também
estão avançando nesta linha.
Alguns até radicalizaram e não
só não financiam projetos que
dependam de desmatamento, como também
não financiam agropecuária na
Amazônia. O que está faltando
é desenhar um programa que tenha viabilidade
de financiamento e incentivo para a melhor
utilização das áreas
já convertidas. Para isto, este programa
da agricultura é extremamente importante
porque está baseado nesta perspectiva:
como eu faço para melhor utilizar os
600 mil quilômetros quadrados que já
estão abertos na Amazônia e como
eu faço para reincorporar na produção
os 160 mil quilômetros quadrados subutilizados?
O Grupo de Trabalho de Florestas
do Fórum de ONGs e Movimentos Sociais
pelo Meio Ambiente (FBOMS) fez uma avaliação,
que já tem um ano, elogiando as iniciativas
de criação de UCs, de combate
ao desmatamento pela via da fiscalização,
mas avaliando que em boa medida o decréscimo
no desmatamento ocorreu porque o agronegócio
não está arriscando nos novos
desmatamentos.
Para mim isso é secundário...
A diferença que eu estou lutando para
ver nessa curva é uma redução
sustentável e permanente. Esta questão
de que somando a média do governo atual
deu mais do que nos governos anteriores é
uma falsa estatística. Para ser uma
boa estatística eu teria de comparar
oportunidades econômicas, presença
populacional na região. Eu não
faço cálculo simplesmente olhando
um elemento do cálculo. Eu faço
cálculo olhando a conjuntura. Qual
governo que em um período de aquecimento
da economia nacional reduziu o desmatamento?
Nenhum. Você até pode dizer que
o problema é conjuntural, que embora
houvesse aquecimento na economia nacional,
em determinada região houve uma crise
em relação às commodities.
E eu responderia que a crise foi mais significativa
na soja e não na pecuária...
mas que também existiu na pecuária.
Então, fica uma guerra de interpretações
que não leva a nada porque nós
não estamos competindo para saber quem
desmatou mais ou menos. Nós estamos
competindo por um novo modelo de desenvolvimento
para a Amazônia.
ISA, Oswaldo Braga e André Lima.