Assassinado
em 1988, o seringueiro e líder sindical
deixou legado de luta ambiental em prol dos
povos da floresta amazônica
Deigma Turazi/ABr - Brasília
- O dia 22 de dezembro de 1988 ficou marcado
no calendário histórico do Brasil.
Naquela quinta-feira, o seringueiro-ecologista
e líder sindical Francisco Alves Mendes,
o Chico Mendes, foi assassinado. Morreu uma
semana depois de completar 44 anos, na cidade
de Xapuri, no Acre, quase na fronteira com
a Bolívia, vítima de um tiro
de espingarda calibre 20. O crime, atribuído
a Darly Alves da Silva e seu filho Darci Alves
Pereira, teve repercussão internacional
imediata - o que, por ironia, serviu para
apresentar a luta de Chico Mendes também
aos brasileiros.
No final dos anos 70 e início
da década de 80, Chico Mendes já
era considerado um símbolo da luta
pela preservação do meio ambiente
no Acre e dos interesses dos povos da floresta,
que sobreviviam do que ela gerava: do látex
extraído dos seringais, da coleta das
castanhas e de todo tipo de fruto que a mata
produzia. Ele mesmo começara a trabalhar
menino, aos nove anos, nos seringais de Porto
Rico. Nessa mesma época, fazendeiros,
posseiros e grileiros, vindos principalmente
do sul do país, começaram a
instalar-se na região, adquirindo terras
a preço muito baixo. Eram estimulados
pelos governos federal e estadual, interessados
em povoar a região e, assim, garantir
a soberania do Brasil sobre a Amazônia.
Previa-se que, até
1971, seriam aplicados na região, só
do acordo bilateral entre o Brasil e os Estados
Unidos, US$ 3,5 bilhões. Somente em
1970 foram desmatados 300 mil hectares de
selva no Acre, numa escala que atingiria,
cinco anos depois, 11.469.751 hectares. No
governo militar seguinte, do general Ernesto
Geisel, os planos agropecuários ao
longo da Transamazônica foram abandonados.
Foi lançado, então, o Polamazônia,
um projeto que tinha como objetivo investimentos
mais ambiciosos por parte de grupos econômicos
fortes. Estima-se que tenham sido investidos
na Amazônia US$ 1 bilhão em financiamentos,
metade dos quais na pecuária de exportação.
Um desses investimentos,
que acabou não dando certo por pressão
de Chico Mendes e de seus companheiros, foi
a desativação da Fazenda Bordon,
localizada no município de Xapuri,
que representava o maior projeto agropecuário
do Acre. Em 1985, três anos antes do
assassinato de Mendes, a empresa tinha faturado
US$ 140 milhões com a exportação
de carne para a Alemanha, Estados Unidos,
Inglaterra e Iraque. Os proprietários
da fazenda pretendiam desmatar 200 alqueires
por ano para a criação de pasto
e aumentar o rebanho, que já chegava
a quase quatro mil cabeças de gado.
Chico Mendes liderou vários “empates”
– manifestações pacíficas
que consistiam, basicamente, em abraçar
árvores para impedir o corte. Por conta
disso, o grupo desistiu do empreendimento
e abandonou de vez o projeto.
Chico, produto de uma mistura
de cearense com índio, um ‘caboco’,
como os nativos mais autênticos são
chamados, tinha voz mansa, jeito afável,
modos tranqüilos, mas era um militante
destemido. Tinha a vida intimamente vinculada
ao látex e ao extrativismo. Com isso,
reagiu à ação das motosserras
e aos milhares de incêndios provocados
pelos novos ocupantes da floresta, que punham
abaixo seringais, expulsavam os posseiros
nativos e povos indígenas para criar
gado de corte. Interesses tão distintos
o levaram ao enfrentamento. De um lado, os
que queriam preservar a floresta e garantir
seu modo de vida centenário. Do outro,
um contingente expressivo de pessoas vindas
de todos os lados do país, interessadas
em enriquecer rapidamente, incentivadas pelas
facilidades oferecidas pelo governo: crédito
agrícola, subsídios e aquisição
de terra a preços módicos.
Chico Mendes era o presidente
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri.
Organizou os empates a partir do Conselho
Nacional dos Seringueiros - entidade criada
num encontro em Brasília por iniciativa
dele Chico. O de maior repercussão
foi realizado no Seringal Cachoeira. No início
de 1988, o movimento dos seringueiros do Acre
já tinha realizado, desde março
de 1976, cerca de 45 empates, sofrido 30 derrotas
e conseguido 15 vitórias.
UMA PEDRA NO SAPATO
Em entrevista à imprensa,
Chico Mendes denunciou a intensidade e o ritmo
com que a floresta estava sendo desmatada:
“Só na minha região, de 1970
a 1975, foram destruídas pelo fogo
e pelas motosserras, 180 mil seringueiras,
80 mil castanheiras e mais de 1,2 milhão
de árvores de madeira de lei, sem contar
as várias espécies de árvores
medicinais que foram abaixo para dar lugar
às pastagens”, avisou. Essa campanha
teria sido uma das razões de seu assassinato.
Em março de 1987,
Chico fez um discurso cheio de denúncias
na reunião do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID) em Miami (EUA). Pediu
a suspensão do financiamento do organismo
para o prosseguimento da construção
da BR-364, que cortava o estado de Rondônia
e se estenderia até o Acre. O objetivo
do governo, na época, era criar uma
saída para o Pacífico, a fim
de escoar a produção gerada
nos estados amazônicos e no Centro-Oeste
pelos portos do Peru. Chico sabia que a estrada
tinha provocado danos significativos para
os seringueiros de Rondônia, em razão
do desmatamento e das queimadas provocadas
pelos fazendeiros.
Com o apelo de Chico Mendes,
o BID suspendeu o financiamento para a expansão
da BR-364 e passou a exigir do governo brasileiro
estudos de impacto ambiental na Amazônia.
Além do BID, o Senado dos Estados Unidos,
onde o seringueiro também foi convidado
a falar, fez recomendações a
diversos bancos que patrocinavam projetos
desenvolvimentistas na região. Alertou-os
de abusos ao meio ambiente como os ocorridos
em Rondônia. Outro episódio fez
crescer a ira dos fazendeiros acreanos contra
Mendes: o reconhecimento ao seu trabalho,
pela Organização das Nações
Unidas. Em 1987, a ONU conferiu a ele o Prêmio
Global 500, de preservação ambiental.
Chico Mendes foi o único brasileiro,
até hoje, a conquistar este título.
Por causa das pressões
internacionais, o então presidente
José Sarney começou a atender
alguns dos pleitos dos seringueiros. Criou
reservas extrativistas para resguardar a floresta
e garantir a subsistência dos seringueiros,
dando início à desapropriação
de terras. Entre elas estava o Seringal Cachoeira,
recém-comprado por Darly Alves da Silva,
posteriormente condenado como o mandante da
morte de Chico justamente.
A União Democrática
Ruralista (UDR) também foi apontada,
na época do crime, como uma das muitas
entidades presentes no Acre que teriam interesse
em sua morte, insuflando Darly a buscar um
desfecho para as intervenções
de Chico Mendes. Segundo o juiz Adair Longuini,
presidente do Tribunal de Júri do caso
Chico Mendes, é “inegável” a
participação da UDR no caso.
“Falava-se, na época das investigações,
que outros fazendeiros e a UDR estavam por
trás do crime de Chico Mendes. É
inegável que a UDR tinha por finalidade
defender o interesse dos fazendeiros. Nada
se apurou contra ela. Sem dúvida, a
grande maioria dos fazendeiros era contra
a atuação de Chico Mendes, tido
para muitos como uma pedra no sapato”, diz
o juiz.
SERINGAL DA DISCÓRDIA
O Seringal Cachoeira, objeto
da disputa, foi a primeira reserva extrativista
criada pelo governo federal após a
morte de Chico e em sua homenagem batizada
como Reserva Extrativa Chico Mendes. A reserva
possui 25 mil hectares de floresta preservada.
Até hoje, foram criadas 19 reservas
extrativistas no Acre, Amazonas, Maranhão,
Rondônia, Pará, Amapá,
Rondônia,Tocantins, Bahia, Santa Catarina
e Rio de Janeiro. Os seringueiros de Xapuri,
Acre, estado-símbolo da luta pela preservação
da floresta e pelo desenvolvimento sustentável,
obtiveram, em março de 2002, o selo
verde concedido pelo Conselho de Manejo Florestal.
Tornaram-se, assim, a primeira comunidade
brasileira a explorar madeira segundo padrões
ambientais autorizados.
O selo do FSC (sigla do
conselho em inglês - organização
não governamental sediada no México)
é considerado a certificação
florestal mais importante do mundo. Para obtê-lo,
é preciso cumprir uma série
de normas, como cortar apenas árvores
de um diâmetro específico e arrastar
as toras sem danificar a mata. A madeira explorada
segundo essas determinações
tem o triplo do valor e pode ser comercializada
no emergente pólo de móveis
de Xapuri. Hoje, os trabalhadores rurais daquele
município comercializam alimentos,
medicamentos naturais e matérias-primas
para a indústria de cosméticos.
Também os índios tornaram-se
exportadores: os yawanawa, da região
de Tarauacá, exportam urucum para indústrias
de cosméticos dos Estados Unidos.
MORTE ANUNCIADA
Chico Mendes pressentiu
que iria morrer. Durante todo o ano de 1988,
anunciou que seria assassinado no dia 30 de
dezembro de 1988. Acabou errando a data em
apenas oito dias. Na época, ele enviou
uma carta a respeito ao presidente José
Sarney, ao ministro da Justiça, Paulo
Brossard, ao governador Flaviano Melo e ao
superintendente da Polícia Federal
no Acre, Mauro Spósito. Pedia proteção
policial e medidas mais severas para conter
as ameaças que vinha recebendo. Citava
um a um o nome das pessoas que o matariam,
entre elas Darly Alves da Silva, dono da Fazenda
Paraná, uma propriedade de três
mil hectares de terra de boa qualidade, localizada
à beira da rodovia BR-317, na altura
do quilômetro 165, e seu filho, Darci.
Na carta enviada ao superintendente
da Polícia Federal no Acre, em 30 de
novembro de 1988, 22 dias antes de morrer,
Chico Mendes deixou clara essa preocupação:
“Venho pela presente expressar-lhe
a nossa preocupação com relação
aos últimos acontecimentos relacionados
aos pistoleiros Darly e Alvarino Alves (irmão
de Darly), ambos proprietários da Fazenda
Paraná, em Xapuri. Como é do
conhecimento de V.Sas. desde o mês de
setembro do corrente ano foi expedido pelo
Excelentíssimo Senhor juiz de Direito
da Comarca de Umuarama, no Paraná,
um mandado de prisão para os referidos
pistoleiros, encaminhado para as suas mãos
para que fosse cumprido imediatamente.
Depois de alguns dias de
atraso (15 dias), o juiz da Comarca de Xapuri
(Adair Longuini, que presidiu o Tribunal de
Júri que condenou Darly e seu filho
Darci) recebe o mandado de prisão e,
na mesma hora manda executá-lo. A PM
de Xapuri, atendendo ordem do juiz, deslocou-se
imediatamente para a Fazenda Paraná,
a fim de cumprir a ordem e, para surpresa
da PM, ao cercar a residência dos pistoleiros,
os mesmos já estavam foragidos, ou
seja, tinham sido avisados com antecedência.
Na ocasião, houve
muita especulação de que o senhor
foi o autor do aviso ou seja, deu todas as
dicas para que os mesmos se livrassem da prisão.
As informações partem dos próprios
pistoleiros e de seus filhos, que se orgulham
em dizer que seus pais têm amigos, inclusive
na Polícia Federal, que os colocam
a par de tudo.
Nós, que apesar de
sermos muitas vezes acusados e caluniados
de agitadores, de criarmos a baderna, nunca
lutamos pela violência e nunca uma gota
de sangue foi derramada por nossa responsabilidade.
Enquanto isso, o senhor é sabedor de
que hoje sou obrigado a andar com dois guardas
de segurança, porque Darly e Alvarino
já disseram que só se entregarão
à Justiça depois de verem o
meu cadáver. Seus jagunços andam
à vontade por todos os lugares espalhando
a intimidação e, quando em Xapuri
a PM prende qualquer pistoleiro, a Polícia
Civil solta imediatamente por ordem do delegado
e do prefeito da cidade.
Não podemos ficar
calados diante de uma situação
dessa natureza. Não é possível
se ficar calado diante de tanta injustiça.
Nunca foi costume nosso criar atritos com
quem quer que seja. Mas agora não dá
para ficar no silêncio. São vidas
humanas que estão em jogo. São
dezenas de vidas que já foram ceifadas
brutal e covardemente. Esta carta é
no sentido de esclarecer quem está
por trás de tudo isso. O que significa
Darly e Alvarino ficarem em Brasiléia
(cidade próxima a Xapuri)? Muita gente
deve saber, menos as autoridades de segurança
daquele município.
Como fica o conceito da
PF e da Secretaria de Segurança diante
de tudo isso? Aqui encerro esta humilde carta,
mas que expressa a minha preocupação
por tudo que vem acontecendo, além
das informações surpreendentes?”
A suspeita de Chico sobre
a possível omissão do delegado
Mauro Spósito foi muito explorada na
época. Segundo Adair Longuini, que
ocupava o posto de juiz de Direito em Xapuri,
a morte de Mendes poderia ter sido evitada
se o superintendente da PF tivesse lhe encaminhado
imediatamente a carta precatória com
a ordem de prisão de Darly, emitida
pelo juiz de Umuarama, no Paraná, por
crimes cometidos por ele na localidade. “Na
minha concepção, Mauro Spósito
tinha interesse escuso, protegeu Darly Alves.
Não tenho a mínima dúvida
disso”, afirma Longuini.
Entretanto, a tese de Longuini,
que hoje atua como titular da 1ª Vara
Cível de Rio Branco, é contestada
pelo senador Romeu Tuma (PFL-SP), que em 1988
era diretor-geral da Polícia Federal,
com base em apuração feita à
época. O mandado de prisão,
segundo ele, obtido pessoalmente por Chico
Mendes em Umuarama, foi entregue ao bispo
de Rio Branco, dom Moacyr Grechi que, por
sua vez, o repassou a Spósito. Mas
a carta estava aberta. Somente depois de quinze
dias a precatória foi entregue a Longuini,
que imediatamente determinou a prisão
de Darly e de seu irmão Alvarino.
Mas eles haviam fugido.
Por conta das suspeitas que pesavam sobre
Spósito, o juiz Longuini pediu seu
afastamento das investigações
que apuravam quem seriam os autores da morte
de Chico Mendes. Em entrevista na época
do julgamento, Romeu Tuma afirmou que havia
faltado cautela por parte de Mauro Spósito.
“Faltou cautela ao doutor Mauro. Tudo serve
de lição para a gente aprender
e a gente tem de aprender nas horas da tristeza.
Eu tenho certeza que ninguém colhe
uma rosa sem se ferir nos espinhos que a protegem”,
afirmou Tuma.
Em novembro de 1988, um
mês antes de sua morte, Chico Mendes
denunciara, em entrevista no Rio de Janeiro:
“Eles vão me matar. Os nomes deles
eu digo: Darly e Alvarino Alves da Silva.
Eles já mandaram matar mais de 30 trabalhadores
e a Polícia Federal não fez
nada. Se descesse um enviado dos céus
e me garantisse que minha morte iria fortalecer
nossa luta, até que valeria a pena.
Mas a experiência nos ensina o contrário.
Então eu quero viver. Ato público
e enterros numerosos não salvarão
a Amazônia. Quero viver”, disse Chico
Mendes.
De acordo com Adair Longuini,
que acompanhou a reconstituição
do crime, a principal testemunha do caso,
o menino Genésio Ferreira da Silva,
de 14 anos, que trabalhava na Fazenda Paraná,
teria ouvido uma conversa entre Darly e Darci
na qual o filho, ao chegar em casa, contava
ao pai que o crime já tinha sido executado.
“O homem já está morto”, teria
dito Darci. Em resposta, Darly recomendou:
“Então prepara a vaca para o churrasco”.
Por causa dessa revelação
e correndo risco de morte, Genésio
passou a ser protegido primeiro pela Igreja
(Pastoral da Terra) e depois pelo escritor
Zuenir Ventura, que lançou recentemente
o livro “Chico Mendes - Crime e Castigo”.
Hoje, já maior de idade, Genésio
integra o Programa de Proteção
à Testemunha e seu paradeiro é
mantido em segredo.